Crônicas

SÓ ASSIM PODERÁ ACONTECER






Hoje não gostaria de recorrer a preâmbulos para descrever o que estou sentindo. Mas será que conseguirei  livrar-me dos preâmbulos? O preâmbulo seria um ou dois parágrafos descrevendo o  universo de Carl Seagan em permanente estado de expansão e mudança, mas se quero falar de seres humanos, e não de constelações e galáxias, por que haveria de buscar no universo uma metáfora a ser entendida? 

Não há nada mais palpável e mais concreto para o ser humano do que os seres humanos. Eles estão aí, ao alcance da nossa (in)compreensão a cada dia, estão disponíveis ao exercício de nossas comprovações mais íntimas e mais esclarecedoras, acerca de nós mesmos, desde a  mais sublime fraternidade, à  mais vil humanidade. Todos os dias podemos conferir a quantas anda o nosso processo de evolução, apenas observando – sem microscópio e sem telescópio.  Olhando. Apenas vendo, de pertinho, de juntinho, de coladinho,   numa espécie de arco voltáico que se tenta realizar entre dois automóveis e que não costuma dar muito certo, mas pelo menos serve para aprender algo sobre mecânica. Não quântica.

 Nem todo aprendizado ocorre com experiências bem sucedidas. As experiências mal sucedidas são as que mais nos ensinam a não esquecer.  Experiências que são totalmente esquecidas não propiciam a aprendizagem. Há que se ficar na metade ideal entre “não sei se caminho a segunda milha com essa pessoa, ou se mostro a ela que a melhor coisa a fazer é caminhar na direção oposta porque a luz não tem comunhão com as trevas. Muitas vezes, a ausência ensina mais do que a presença. E isso não é necessariamente falta de amor. Quem ama, educa, ensina, cuida e propicia o aprendizado. 

Eu disse que não faria uma introdução e parece que é a sina de todo ser inteligente: introduzir-se antes de dizer a que veio. Todo ser inteligente precisa fazer e receber uma introdução. 

Nesse caso específico,  eu o faço porque tenho dificuldade de lhe dizer à queima roupa: - “você tem mudado ou permanece o mesmo, ano após ano?” Não faço essa pergunta para os seres que se consideram tortos, para aqueles que cresceram ouvindo a família dizer de si: “ pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto.” Faço essa pergunta - apenas a título de reflexão- para aqueles que são retos, para aqueles que são ilibados, para aqueles que no ato de viver deram certo. Ou deram errado. Mas vivem, e por estarem vivos, deveriam estar vivos em estado de permanente evolução. 

A evolução do ser humano não é tão simples quanto parece, não é tão óbvia quanto Darwin propunha, não é tão aparente quanto os estágios de nascimento, crescimento e morte. A evolução do ser humano é em última análise, uma evolução espiritual. Somos seres espirituais. Caminhamos em direção ao abandono inexorável da matéria. Em algum ponto do caminho, a matéria desprender-se-á de nós,  e nós nos desprenderemos da matéria.  Esse fato, de facílima comprovação científica,  deveria  fazer-nos pensar: “se em algum ponto do caminho, tenho que abandonar a casca, não seria sensato, que nos acostumássemos gradativamente a receber a idéia? Não seria coerente que, a cada dia, nos transportássemos, pouco a pouco, para um estágio superior de existência, de maneira que,  quando acontecesse o transporte definitivo, pouca coisa restasse a ser transladada em nós?”

Esta semana, minha filha muda de endereço. Há cerca de um mês, ela vem transportando os seus pertences para o novo ninho. Devagar, foi planejando e realizando tudo: começou levando as roupas de inverno, já que estamos em plena primavera,  e as roupas de inverno não lhe são mais necessárias, nesta época do ano.  Hoje, faltando dois dias para o casamento,   vejo a enorme pilha de DVD’s que ela separou, juntamente com os seus livros.  Creio que são as últimas coisas a serem transportadas, embora, a cada dia ela me peça para levar algo que é meu, e que ela gosta. Mas, quase tudo já foi conduzido. Abro as portas dos armários  e estão vazios. Olho o quarto e já pressinto a  falta. Ela  preparou-se antecipadamente  para a mudança, e eu venho me preparando para acordar e não ter mais a quem trazer, pela manhã, o café na cama. E assim no sábado, quando o sol se levantar,  não terei surpresas:  estarei preparada para absorver o impacto, sem a síndrome do ninho vazio que o acompanha.

Isso é planejamento do consciente para o inconsciente. Já que o inconsciente não se planeja, e às vezes, parece ser burro,  o consciente precisa abastecê-lo com esse tipo de informação.

Mas o mundo inteligente não exerce esse mesmo planejamento quando se trata de evoluir espiritualmente para facilitar o transporte final. Às vezes, eu volto ao passado voluntariamente. Na verdade, “voluntariamente” não seria o termo. Mas  volto. E constato que, alguns daqueles de quem me separei, há mais de vinte anos, continuam em volta de uma mesa, fazendo discursos, assentados nos mesmos lugares, exercendo as mesmas funções, satisfazendo os mesmos anseios terrenais, e nada neles parece registrar algum vestígio da evolução espiritual que é característica dos seres espirituais. Eles são terráqueos convictos, com os pés bem amarrados às correntes da terra. Mas eu não aguento, porque não sou! Sou uma cidadã do céu em estágio de evolução na terra. Aqui não é a minha Pátria definitiva.  

Eu não aguento os seres irremediavelmente humanistas e prezo muito quando eles respeitam a minha opção. Cada um na sua.  Porque os seres adaptados ao humanismo constroem seus ninhos em torno do humanismo. O humanismo  é o centro e é a periferia. É o Alpha e o  Ômega das suas vidas. Ele – o humanismo – é a sua razão de existir de forma tão humana. E tão rasa. E tão feliz. E tão paradoxal. Os humanistas fazem discursos humanistas louvando a humanidade do homem e não percebem que tudo quanto o homem precisa é de menos humanidade. O homem não precisa ser mais humano do que já é. O homem precisa ser divino. O homem não precisa de muitas palavras, ele precisa apenas da lembrança de que em algum lugar Deus existe, importa-se e vê. 

Sinto que o mundo necessita de um humanismo revisitado. A idéia não é que se deixe de ser humanamente homem, em um dia, para nos tornarmos seres evoluidos espiritualmente, em outro dia. A idéia não comporta esforço físico, mental ou intelectual do tipo: “tenho que promover a privação dos meus sentidos.”  

A idéia é que, a cada dia, nos tornemos mais semelhantes a Cristo, aquele que já nasceu com a sua humanidade em nível de excelência máxima.  Ele já nasceu assim, mas nós - não. Nós temos que buscar essa excelência,  dia após dia, livrando-nos de hábitos estabelecidos, soltando as amarras que nos mantém  ancorados a um mesmo porto, cujo significado pode  resumir-se a uma  única palavra:   esquecidos! 

Precisamos indagar: o que mudou em nós desde o último verão?  O que conquistamos com o nosso universo de atuação? De que maneira o mundo foi transformado pelas nossas palavras? Servimos o universo com a nosssa sensibilidade inteligente ou nos deixamos vencer pela insensibilidade poética, vaga e bruta que louva o pau e louva a pedra mas não realiza a síntese final? 


 Precisamos nos fazer uma última e definitiva pergunta: “Por que gastamos tempo com coisas importantes e nos esquecemos das essenciais?” *

 Entre o que é importante e o que é essencial, há uma linha fina, que precisa ser delimitada. Essa delimitação faz parte da grande busca.  Em buscando, encontraremos. Em encontrando, comprovaremos: como seres espirituais, a nossa busca não se dá por um caminho  alternativo, mas pelo único caminho possível. Porque como disse Santo Agostinho: “ Tu nos criaste para ti mesmo e a nossa alma nunca encontrará descanso até que descanse em ti.” 


Só assim o encontro de um ser consigo mesmo, poderá acontecer.


* http://igrejalibertas.org/textos/alma_sarada. 

Ana Ribas


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PRECISEI ESCREVER


Novembro tem-me sido um mês de aprendizado. Aprendi várias lições celestiais. A primeira delas aconteceu quando a minha cadeira de escritora desfez-se  no ar. Não, eu não estava sentada na cadeira. Estava deitada no sofá, ao lado.  De repente, a cadeira arriou e eu pensei: “Deus o que significa isso?” Às vezes, a gente é burrinha mesmo. Significava apenas: “tudo o que é sólido não desmancha no ar.”   

Comprei outra cadeira.

Naquele mesmo dia, o meu gato Alemão, invadiu um território desconhecido, abriu uma gaiola, e trouxe na boca um passarinho. Chegou aqui, tranquilamente, com o bichinho na boca e foi o maior auê. 

Quando finalmente, conseguimos arrancar o bichinho da boca do Alemão, estava morto o passarinho. Na barriga, o buraco fundo dos dentes do Alemão. Um buraco fundo e fino como as dores que a gente coleciona na vida.  

Fiquei magoada por demais com o Alemão, porque ele não matou o passarinho por ter fome de comida, ele matou por ter fome de sangue. E aí, confesso: chorei excessivamente para os padrões normais. Um despropósito um adulto chorar por um passarinho, mas eu chorei: era um canário, amarelinho. 

 Todos que estavam em volta, começando pela Nalva, brigaram comigo. Teve até quem dissesse que eu precisava de terapia. O povo não entende muito bem a minha dor e o meu amor pelos bichos, mas Deus entende. 

Nalva jogou o canário no lixo e eu fiquei pensando: a quem pertenceria esse ser indefeso? Era um canário de gaiola, que mal se debateu para morrer. Morreu quieto, manso, bobo.  Por certo tinha um dono. Senti a dor do dono. Que se juntou à minha dor. De modo que fiquei toda dolorosa: mais do que o normal! 

Pela manhã: Chorei, fui malhar, voltei, comi, dormi, sai, orei, não necessariamente nessa ordem. Pela tarde,  a lembrança já me era uma dor controlada. Pela noite, ao jogar mais lixo na lata de lixo, de lá de dentro, do meio dos escombros, um passarinho me olha assustado, com os dois olhos muito abertos, o bico entreaberto, sem rumo, incerto. Mas vivo!!!  

 Com o bicho na mão, sentindo o seu coraçãozinho  bater descontroladamente, ao mesmo compasso estrupiado  do meu,  tive a divina inspiração de ir até a casa do Moacir Mazzei e da Marly. Quem sabe, eles não adotariam o amarelinho? Eles não adotaram, naquela noite. Eles haviam adotado há 2 anos: eram os verdadeiros donos. Temos pois aí um passarinho que estava morto e reviveu, que estava perdido e foi achado.   

  Os feitos de Deus não deixam muito espaço  para o fazer humano. Os feitos de Deus são parábolas na terra. Cristo não esclarecia as suas parábolas, porque no momento em que se tem que esclarecer uma parábola essa parábola deixa de ser parábola para tornar-se  fábula. 

Eu não vim ao mundo para narrar fábulas. Não sei bem porque vim ao mundo, mas para narrar fábulas, sei que não foi. Deve ter sido para narrar parábolas.

Naquele mesmo dia, um e-mail me chega de além mar. Ele dizia: “ Salmos 124:7 – “ A nossa alma escapou como um pássaro do laço dos passarinheiros; o laço quebrou-se e nós escapamos.” 

De São Paulo, Sandra, ligou-me ontem a tarde. Minha primogênita esteve pregando numa igreja do bairro Bom Retiro. Ela tinha nas mãos, uma revista evangélica com uma reportagem de página inteira sobre um site. O Título da reportagem é:  “ Você conhece um girassol amarelo?” 

Eita Deus!!! A revista sairá na próxima semana. Revista de pequena circulação nacional, mas o âmbito de circulação do Deus que eu sirvo é grande. Tão grande que nesta tarde eu só queria louvar. Mas precisei escrever.

Ana Ribas


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HOJE É DIA DE PEDREIRO


Este é o tipo de título que não vai atrair muitas pessoas: só dois tipos de pessoas – as que se interessam por pedras e as que constroem altares. 



Mas isso  vale para quem elaborar uma reflexão.  Só que hoje é sexta feira e nos escritórios, nas empresas, nas escolas, ninguém está a fim de fazer reflexões elaboradas.  O povo quer algo leve, para finalizar o expediente, para dar uma lambida nos olhos, enquanto engana o chefe até a hora de voltar correndo para casa. Eu sempre me pergunto, a quantas andará o R.L. na lista dos sites que ajudam a diminuir o cansaço do fim de uma jornada. E eu sempre me respondo: é um site bem cotado. As sábados e domingos, o povo tem coisa melhor a fazer. Qualquer dia, escreverei algo especial para vocês trabalhadores do Brasil. E escreverei no meio da semana, quando o calendário enrosca e o relógio para.

Mas hoje não. Hoje eu tenho algo mais difícil para fazer: renunciar ao meu brinquedo favorito e carregar pedras. 

 Descobri aqui no RL a minha vocação para repentista. Que coisa! Não sei quantos de vocês já tiveram o prazer de versejar em repentismo. É very arrebatador! Também não sei quantos de vocês já duelaram em prosa. É very extasiante. E como isso é revelador para mim que, normalmente, sou uma mosquinha morta, dessas que não fazem mal a ninguém. Em casa, sou feita de amores, canduras e doçuras insuspeitáveis. Que só os de casa conhecem.  Ao vivo, sou doce como o mel.  Contudo, quando alguém me chama para um duelo de palavras, eu fico numa excitação que me deixa completamente à mercê da criança com distúrbio de conduta que habita em mim. Eu fico sem noção de limites. Eu viro uma menina hiperativa a caminho de uma sessão de circo mambembe. Quando o palhaço entra em cena, e diz: “respeitável público!!!” eu quero entrar no picadeiro. Quando o leão mostra os dentes, eu quero passar a mão na juba. Quando o trapezista se apresenta, eu quero subir na corda. Quando o elefante levanta um pezinho, eu quero morrer de tanto me enternecer com aquele montão de ternura cinzenta e sem graça.   Eu fico essa. Comendo pipoca. 

Mas eu, que já vinha de várias funções circenses no decorrer da semana, recebi vários toques de anjos.Obrigada aos meus amigos anjos: anjos querendo me levar para casa. Querendo me acalmar. Querendo me botar para dormir. E eu, que nada! Até que ontem, pela boca de Balaão, o próprio Deus me fez ver que o mundo é um circo pegando fogo com pimenta,  mas nem por isso eu tenho que ser a tocha que coloca mais fogo no circo. Então, obedeci. Desde ontem, estou assim: obedecida. 

Quando tal me ocorre, ser repreendida por Deus, usando instrumentos que eu jamais suspeitaria serem mensageiros de Deus, imediatamente eu ligo para a pastora Wilma, para ser mais repreendida. Eu gosto quando Deus me repreende, me põe limites.  Eu gosto. Então, liguei para a pastora Wilma por volta das 18 horas, mas ela estava em outra ligação, com um povo da Inglaterra. Pastora Wilma é international. Mas com um telefone numa mão e o outro telefone na outra, ela me disse: “Ana me ligue por volta de 23 horas. 

HUM: Trem das onze! Eu já sabia que o trem das onze é o último trem que leva a gente de volta para a casa. Que coisa: aqui nem tem trem. Mas tem. 

Então comecei a me preparar para pegar o trem. Porque funciona assim: quando  Deus vai falar comigo, algumas horas antes, eu me recolho toda. Eu me recolho toda como o aluno que infringiu as regras da escola. Como o filho que amassou o carro do pai. Como o gato que matou o passarinho na gaiola. Eu me recolho toda como o último passarinho que ficou vivo depois da passagem do gato: o coração aos pulos, bum, bum, bum. Eu temo mais a Deus do que tudo. E eu temo porque sei que na função de brincar eu me brinquei excessivamente, e porque sei que na função de viver eu só posso respirar. E pausadamente. 

Deitei-me então, e fiquei olhando para o teto, mal vivendo, mal pensando, mal respirando, mal existindo, e ainda assim toda acesa, toda acordada, toda consciente de que Deus existe e me vê e  23 horas. 

Fui eu quem liguei para Wilma. E quando ela disse: “alô!”  tornei-me mais dócil do que um cordeiro a caminho do abatedouro. Que ser sou eu, capaz de tantas metamorfoses ambulantes! Que ser irreconhecível sou eu que nem mesmo sei quem sou! 

- Pastora Wilma, eu quero carregar a sua mala. Você me deixa? – Já comecei assim, para dizer a que vim. 

Sempre tive vontade de grudar na pastora Wilma na busca de uma alquimia que passasse a santidade dela para mim. Por osmose.  Eliseu não grudou em Elias? E Eliseu não superou Elias? Pois então: eu quero grudar na pastora Wilma e quero ficar só do tamanho dela. Nem precisa ser maior. Nem precisa. 

Mas a pastora Wilma não se impressiona com arroubos de humildade. Ela só me diz assim: 

- “ vamos orar Ana Maria, curve a sua cabeça agora.” 

Algum vivente do lado de lá do Equador sabe o que significa : “ curve a sua cabeça, agora?” Significa que quando a oração começou eu estava de joelhos sobre e cama, e quando terminou, eu estava de quatro no chão. E nem sei como caí. Só isso. 

O que Deus me falou é segredo de rei e nem morta vou contar. Mas ele viu tudo! Ele sabe tudo! Ele mede tudo. Ele pesa tudo! Ele tem uma balança com precisão milimétrica. E ele julga tudo! 

O azar é que Deus também perdoa tudo. Às vezes, a gente acha que Deus perdoa demais. Quando nós somos o de menos. Mas Deus é um Deus que perdoa, quando qualquer pecador se arrepende. A condição é o arrependimento. 

Eu sempre me arrependo: vivo arrependida. Viver arrependida é a minha condição de existir. Só que aí, começo a querer me justificar e descubro que  Deus não dá muita bola para as minhas justificativas. Deus é como a pastora Wilma: não se impressiona com conversa fiada. Deus é um Deus que nos justifica mas ele não recebe as nossas justificativas. Interessante esse aspecto do caráter de Deus. Ouça esse diálogo, esse diálogo vai encerrar este texto:

- “ Deus, o Senhor sabe há quanto tempo jogam-me pedras, sem que eu sequer suspeitasse? Há 8 meses, Deus! 



- Não "há 8 meses", mas desde que você nasceu. Contudo, quantas pedras lhe atingiram até agora?



- Eita Deus! É verdade: nenhuma. – Já fui me entusiasmando.



- Pois então. Nenhuma pedra lhe atingiu e nem vai lhe atingir porque quem desvia as pedras do seu caminho sou eu. Agora, com as pedras que lhe jogaram, construa um altar. Ele vai se chamar “Altar ao Deus Conhecido.” 



- Como o altar ao “Deus Desconhecido” que existe na Grécia?



- Isso! Como o altar ao Deus desconhecido que existe na Grécia. 



- E o que eu faço com as pedras que ainda me jogarão?



- Aumente a altura do altar. Vá edificando pedra sob pedra porque você foi chamada para edificar altares e não para ser moleque de rua atirando pedras nas pessoas que estão apenas passando. 



- Mas Deus, jogaram antes em mim. Mas Deus, só mais um pouquinho: faltou dizer isso, faltou dizer aquilo, faltou dizer aquilo outro. 



- Pssiuuu. Calada!

Nesta manhã de altares, levantei pois sem pernas. Os braços estão comigo. Com eles eu abraço quem eu quiser. Ou melhor, eu abraço quem Deus quiser abraçar.   E hoje, Deus quer abraçar o mundo com os meus braços, com as minhas pernas, e com todo o meu ser. Deus quer abraçar o mundo de forma amplificada. Deus quer abraçar a terra desordenada com a acalmia do céu que não se agita. Que parece estar imóvel, mas apenas parece. O céu está em atividade laboriosa com um nexo causal que irrita as pessoas sem noção de nexo. E de plexo. E de amplexos.   

Com a súbita compreensão celestial que me tocou, com a mansa  suavidade que me invadiu, com o melhor do meu ser que sufoca, esgana e mata nesta  nesta hora o pior do meu ser, eu vou trabalhar na construção do seu altar. 



Porque sou obediente. E porque hoje é dia de pedreiro. 


Ana Ribas


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COM QUE PERNA EU ANDO?






No livro “A Louca da Casa” a escritora espanhola Rosa Montero usa uma fábula para defender a liberdade que todo escritor deve ter ao desenvolver o seu processo criativo: “Uma barata má e invejosa, irritada porque a centopéia tinha muito mais patas do que ela, disse ao miríapode com malévola adulação: “Que graça maravilhosa você possui ao caminhar, que coordenação incrível, não sei como consegue se locomover tão sinuosa e facilmente com todas essas patas, poderia me explicar como faz?” A centopéia, vaidosa, estudou-se a si mesma e depois com toda boa vontade informou o procedimento: “É muito fácil; basta mexer as cinquenta patas do lado direito para adiante, enquanto mexe para trás, sincronizadamente, as cinquenta do lado esquerdo e vice-versa.” A barata fingiu admiração: “ que fantástico! Poderia me fazer uma demonstração?” E a centopéia nunca mais conseguiu se mexer.” Montero, Rosa – “A Louca da Casa”- editora Agir, pág. 37. 

Mas isso é porque eu não estava dentro das páginas do livro. Porque se eu estivesse, teria dito à centopéia: “Filhinha, mesmo sem saber como, nesta manhã de quinta feira, você deve mexer-se. Mexa-se simplesmente, uma perninha para lá, outra para cá, e ainda que lhe falte molejo para um rebolado literário do tipo enredo de escola de samba, ser-lhe-á  melhor do que ficar para sempre atolada em sentimentos de auto comiseração."

O processo de escrever é um prodígio em termos de individualidade solitária. Escreve-se em completa solidão e não há como desenvolver parcerias sem que a obra fique prejudicada. Escrevi um livro a quatro mãos e sei como é complicado o processo de dividir a cria. Duas mãos querem que o filho tenha olhos azuis, e as outras duas preferem que os olhos sejam negros. E o grande perigo é que a criança nasça, por fim, com um olho de cada cor. O leitor, que não é bobo, percebe. O leitor que tem o distanciamento crítico necessário identifica de longe: ali vai um ser cuja genética comprou uma briga de foice na hora de o conceber.

Quando entrei no RL, eu nada sabia de interação. Confesso para vocês que não conhecia esse método de  primeiro ler, para depois escrever. Eu escrevia e depois lia. E, para confessar um pouco mais, lia de forma desordenada, hoje um, amanhã o outro, e depois mais aquele outro. E as vezes esse amanhã, se perdia e eu nem mais lia. Com o tempo, as parcerias de identificação literária foram-se formando mas eu continuei, escrevendo primeiro, lendo depois. Se fosse um filme de ação, eu estaria em grande vantagem porque estaria atirando primeiro. Mas os filmes aqui não são propriamente de ação – são de revelação. Conforme se sabe, o escritor quando escreve, revela-se: em corpo, alma e espírito.  E se a “boca fala do que o coração está cheio”, a pena escreve o que o pensamento guarda como depósito sagrado.  É inevitável. 

Ocorre que, nem sempre o que o escritor pensa revelar é compreendido por todos da maneira como ele pensou revelar-se. O escritor já se sabe, é um grande inventor e muitas de suas narrativas nada mais são do que as suas fantasias, os seus personagens – trágicos ou cômicos- os seus melhores projetos de vida que nunca sairão do papel,  mas como papel recebe muito bem papel, desempenhamos todos os papéis, pensando que todos os leitores comprarão os nossos melhores papéis. Até porque de graça os ofertamos. 

Mas não é bem assim que acontece: os leitores compram não o que o escritor oferece, mas aquilo que querem comprar. Lebre para quem quer lebre, gato para quem quer gato, e gato por lebre para quem quer gato por lebre. O leitor tem a sua óptica, que ao interagir com o seu conceito de vida, faz com que o texto desemboque, afinal, na visão subjetiva e pessoal. Essa é a foz do rio, o momento apoteótico, em que, ele finalmente, está pronto para desembocar no mar. 


Mas: entre a nascente e a foz, o caminho. 

E é aqui no caminho que tenho encontrado certa dificuldade para estar escritora. Não encontro dificuldade em ser, mas encontro dificuldade em estar. A tal da interação que existe aqui,  entre escritores, e que só recentemente eu descobri, por vezes avança os limites do imaginário individual e alcança o imaginário coletivo. E aí instala-se um anacronismo crônico e contagiante com o qual responde-se -ontem- um texto que só será escrito amanhã. As respostas chegam antes dos questionamentos, e dessa maneira os temas não se originam, eles são originários. 


 Muitas vezes  pensei estar curada de ser agente ou paciente desse mal. E muitas vezes, fiquei em quarentena. Mesmo que muitíssimo bem intencionada, sem intenção de ferir, de magoar, de ofender, -que essa não é a minha praia,- já fui entendida como ofensora. Já recebi e-mails de gente que, sentindo-se ofendida revidou a ofensa e, consequentemente:  o texto. Que o texto é a nossa arma mais poderosa, a nossa bomba de Hiroshima.  Que atinge também Nagasaki e adjacências.  Já recebi e-mails de pessoas que eu sequer lembrava a existência, pensando ser o(a) protagonista da minha história. E depois, outra coisa não me restou fazer a não ser deixar de ler o que essa pessoa escrevia, para não alimentar mais a teia que sub-repticiamente se formaria. Porque dessas coisas, o capeta gosta. 

O que devo dizer de uma vez para sempre, nessa manhã de centopéias, é que  não conseguiria estabelecer sinapses neuronais em número suficiente para atender a tanta demanda. Eu simplesmente ficaria paralisada como a centopéia, se tivesse que limitar o meu processo criativo às interpretações individuais, nesse universo de individualidades compartilhadas. Mesmo que, nesse individual, estejam pessoas que conhecemos pelo nome, e que valorizamos como profissionais, e que respeitamos, como seres humanos.  Na hora de escrever, não dá. Quem pensa: vou escrever um texto para esta pessoa, encontra uma séria dificuldade: escrever um texto para essa pessoa. Mas escrever um texto, tendo na mente várias pessoas, querendo agradar a todos, ou desagradar a todos, não é uma dificuldade: é uma impossibilidade. Isso é algo que só o escritor de novelas domina. E domina sem conseguir entregar o papel de protagonista para todos os que sonham com ele. 

Nesta manhã de centopéia, eu quero dizer o seguinte: eu não sou escritora de novelas. Há quem seja e escreva com a leveza e a ficção que o tema exige, embolando os personagens da trama sem o devido cuidado que uma pessoa só precisaria conceder-se na vida real. Mas para um novelista, faz parte do show. 


Mas a minha vida não é novela. Aos que me seguem, como novela, eu recomendaria que mudassem de canal. Eu escrevo como quem escreve um livro e esse livro contém uma parte da minha história e uma parte da minha imaginação. Pela parte que ele contém de história, eu peço respeito. Pela parte que ele contém de imaginação, de fantasia, eu peço atenção: plágio é crime previsto no código civil com as devidas sanções que lhe são cabíveis por lei: no meu caso pela lei do coração, porque se eu quisesse ser jurista, teria que ter concluido o curso de direito. E eu só conclui o curso de História. 


Que "chic", se eu fosse plagiada todos os dias. Não sou. O que me sobra, pois, de consolo, é o velho ditado: “ninguém atira pedras em árvores sem frutos.” Mas vamos devagar, gente, porque o fruto nasceu para alimentar, e a árvore para oferecer o fruto, mas nem árvore e nem fruto vieram ao mundo para ser apedrejados.  Árvores com frutos vieram para missões mais nobres . E quem os reivindica é o próprio Deus.

Nessa manhã de centopéias, quero dizer com toda a sinceridade do meu coração: não sei se já fui a barata da fábula. Se fui, não o fui conscientemente. E hoje, no papel da centopéia que tenta se mexer, eu penso que o problema todo se origina no fato de que a tal interação precisa guardar as proporções corretas para que o antídoto não vire veneno. Em boa medida é saudável, além da medida mata. Guardemos, pois, a justa medida.

E agora seria, o caso de perguntar à centopéia: - viu centopéia como funciona? Funciona assim: você ora, Deus lhe ensina a andar de novo, e você anda e ainda escreve - de novo. Anda e escreve- outra vez.  Anda e escreve - e continua.  Escrevendo.  Embaixo do sangue de Jesus. 

Ana Ribas


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HEMORROIDA NÃO CURA GRIPE






Ela era loura, chiquérrima, vinda de Curitiba,   e dizia “lindíssimo” com uma classe e doçura que eu sequer suspeitava poder encontrar dentro de mim. Nos dávamos muito bem, apesar das diferenças. Ascender na “escala Richter” da sociedade dos poetas vivos, sempre me foi um tormento, um terremoto interior. Eu mal sabia como existir grosseiramente, como haveria de saber viver docemente, sem sobressaltos, sem atropelos, mansa como uma rosa silvestre? Eu não podia!


  Mas tentava. Como tentava! E para fazer o meu exercício diário de aspirante a imperatriz do reino, eu contava com ela, com os modos dela, com a maneira dela, com as receitas dela, com os doces que ela servia, com as modas que ela trazia, com tudo, enfim, o que ela me oferecia. Mas uma coisa eu não conseguia: era ter o “íssimo” com que ela encerrava todos os seus substantivos. Tudo lhe era de um “lindíssimo” similarizado  que me fazia corar de vergonha, pelo desejo de tomá-lo para mim. Para enfeitar o meu mundo sem adjetivos, sem advérbios e, até, sem muitos verbos. 


 Foi com ela que aprendi a andar suavemente pelos salões da “alta sociedade”. Foi ela também quem me apresentou para o tradicional “fondue”. Eu mal sabia que se podia comer queijo com vinho: foi ela! E chocolate com morango: também foi ela! E a combinar prata com prato: foi ela também! Um dia,  tivemos uma discussão boba, acerca de nada: ela dizia que hemorróidas não cura gripe. E eu dizia: “não cura, mas faz esquecer.” No fim, ela concordou que sim: que quando se tem um incômodo maior, o menor acaba diluído no mar de sangue. 


 Mas ela que me dava tudo quanto tinha,  não me dava o “ lindíssimo”. O “lindíssimo” era dela. Como também o “puríssimo”, o “amicíssimo”, o “perfeitíssimo”, todos os “íssimos” eram dela.  É bem verdade que ela não escrevia, ela só dizia. E quem não escreve não é dono. Ou é? 


 Eu pensava que não. E dessa maneira, secretamente, eu tinha o “lindíssimo” muito bem desenhado nos meus textos, naqueles que ficavam guardados na gaveta, sempre aguardando  o momento de poder sair do armário:  “tenho um cachorro lindíssimo.” Ou “ o céu  está hoje de um azul puríssimo.” Falar eu não podia – então escrevia.


 Mas com que pesar eu percebia que não alterava em nada o panorama do meu mundo sem superlativos: meus cachorros nunca podiam ser lindíssimos e nem os azuis do meu céu podiam ser puríssimos. No máximo, podiam ser lindos ou puros. Porque o “lindíssimo” e o “puríssimo” eram para sempre dela.  Aonde ela ia, tudo se fazia um grande superlativo, de modo que, a mim, só restava viver o mundo em suas ínfimas  regularidades.  


 Confesso que a idéia de ser assim “superlativada”  me era recorrente. Quando  a via de longe,  via-me  também de maneira lindíssima e impossível. E, para meu tormento, sempre que me acompanhava um acessório novo, uma bolsa nova, uma sandália nova, qualquer coisa nova,  – cópia fiel da que eu vira com ela – já podia pressentir a sua voz doce, suave,  modulada dizendo com a habitual candura chic : “menina, mas que bolsa lindíssima.” 


 Como que adivinhando o meu tormento, ela prolongava as sílabas do “lindíiiisima” fazendo com que eu ainda mais desejasse ter o que já lhe pertencia. Coloque a língua no céu da boca para dizer “ lindíssima” e você terá essa espécie dolorosa de “lindíssima”: coisa de gente que nasce com o bumbum pra lua, em lençóis de cetim, com monogramas bordados a fios de ouro no Tibet. 


 Mas assim que reconheci o selo da posse, passei a respeitar o que, afinal, lhe pertencia. Eu adoraria ter dito isso: mas não disse.   Sempre fui pessoa de respeitar direitos autorais. Até porque venho de uma época em que ainda não havia a praga da globalização. Essa praga que faz com que as palavras se disseminem com muita facilidade – como cachorro sem dono,  passando de mão em mão. As palavras – essas- não aprenderam a pertencer. Não guardaram intactas o sabor da domesticidade. São palavras fugidias: acostumaram-se a viver sem dono.  


 Hoje mesmo vi na web Ivete Sangalo dizendo que estava “sequelada.” Pois da primeira vez que algum sentimento deixar sequela em mim, também vou dizer: “ eu hoje estou sequelada.” Sem medo do plágio. Porque no momento mesmo em que Ivete inventou essa palavra e colocou na web, a palavra voou e veio parar aqui comigo. E pelo caminho arrumou 2.500 donos.


  Mas por esse tempo, eu não estava “sequelada”, eu só estava ligeiramente embabascada. Querendo, sem poder ter. Lambendo, sem poder engolir. Cheirando, sem poder provar. Coisas de olfato e de aspirante ao oficialato. Um dia, cresci. E cresci, observando a árvore na frente de casa. O trabalho que a natureza fez na árvore, eu disse: “Deus, faça em mim.” No “gran finale” da árvore, virá o meu. 


 Quando descobri Marilurdes, também descobri o “altamente competente.” Marilurdes patenteou essa expressão e onde vai, o “altamente competente” vai com ela. Não posso tomar para mim. Não posso. Pertence à Marilurdes. Como o “lindíssimo” pertence à minha amiga Eneida. E como “sol saariano” pertence à Rosa Montero.


 Em compensação, encontrei jogada na lata do lixo, a palavra “reverberação.”  Como também encontrei “cristalizar”. E sua variável mais próxima: “cristalinizar.” E a prima mais distante: “cintilância.” Quando descobri “cristalizar” sai “cristalinizando” tudo por pura caridade. Porque o mundo tem estado muito opaco e as vidraças estão sujas. Mas, assim que ficarem limpas, eu mudo. Não quero ser escritora de palavras da terra: meu negócio é o céu.   


Tenho palavras celestiais que são só minhas: que Deus mas deu.  Eu as escondo quando finjo que estou apenas escrevendo. Reservo as melhores, as mais raras, as mais devotas, para o meu uso secreto. Não irei expor à visitação pública as minhas palavras mais belas. Tenho medo que alguém roube as minhas palavras, da minha própria pessoa, se eu não as  souber guardar.  


Nessa hora, essa pessoa não sou eu – é a guardadora de palavras. Como existe o caçador de pipas, também existe a guardadora de palavras. Tarefa inglória e cansativa porque quando digo “não é todo dia que nasce uma rosa amarela no meu jardim” nesse mesmo dia, uma rosa amarela pode estar nascendo no jardim dos outros a 1.000 km de distância. Por isso guardei tanto tempo comigo a rosa amarela. Para descobrí-la, ontem, fantasiada de rosa vermelha em vestido púrpura. Mas é para uma dama lindíssima: que a dama seja pois, felicíssima. E que a borboleta sempre volte ao seu jardim. 


 Agora já foi, já era.  Amanhã, nascerão muitas rosas amarelas e eu vou ter que encontrar a minha semente de rosa lilás. Quando uma pessoa realmente deseja algo, consegue. E quando uma pessoa realmente fica magoada, perdoa. E esquece. E segue em frente. 


 “Serei dura, silenciosa e heróica.” – Clarice Lispector. 
Ana Ribas


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A GENTE É OU NÃO É






A viagem começara em São Paulo, e deveria estender-se por alguns dias. Israel é um país melhor compreendido quando se está em companhia de um pregador do Evangelho, com um bom conhecimento teológico e o completo domínio da geografia bíblica. Esse que nos acompanhava, tinha tudo isso e mais isso:  uma boa familiaridade com a Palavra de Deus, uma cerebração rápida, e uma fluência verbal que surfa em águas cristalinas,  dessas que, quanto mais se ouve,  mais se pede para ouvir.  

 Todo pregador que deseja falar às massas precisa ter o domínio desses “idiomas”: teologia, conhecimento bíblico, cultura geral e atualidades. Se juntarmos a isso algumas técnicas simples de psicologia, o êxito da missão está garantido. Presumindo-se que a missão seja impressionar e fazer adeptos. Mas dessas coisas eu ainda não entendia. Eu só entendia de sede e queria matar a sede não em Nova York,  não em Miami, mas no mar da Galiléia, onde existe muita água. 

 O itinerário nos levaria a reconstruir o caminho de Jesus na terra e algumas incursões do apóstolo Paulo pela Ásia. A comitiva era de aproximadamente 280 pessoas e o vôo da companhia X  estava praticamente  ocupado por esse povo todo. 

Isso posto presumo que seja interessante inserir aqui uma pesquisa ao dicionário. Ídolo: Figura representativa de uma divindade; pessoa a quem se presta demasiado respeito ou excessivo afeto. Idolatrar: amar excessivamente; venerar extraordinariamente. 

 O ídolo já estava conosco e o seu trono tinha algo do Rei Davi. O Rei Davi viajou na primeira classe, como convém à realeza,  e desembarcou em Israel, tendo à sua disposição um carro blindado do governo israelense, com batedores à frente. Nós, a comitiva de discípulos  o seguíamos, obedientes como colegiais, ligeiramente assustados com o aparato policial que houve no desembarque, e com as rígidas instruções que recebemos sobre como deveríamos nos comportar.

Seguimos a comitiva do rei logo atrás, em dois ou três ônibus, usufruindo de uma proteção que, naquele época se fazia ainda mais necessária. A coisa por lá fervia. 

Com o decorrer dos dias eu percebi que esse homem, involuntariamente, tinha também algo de Salomão. Salomão com as suas 2.000 esposas, todas evangélicas, todas carregando a Bíblia, todas absolutamente fascinadas pela aura de santidade que o envolvia.  E a “culpa” não era dele. Alguns adjetivos podiam ser aplicados à sua conduta, até ali irrepreensível: homem de Deus, servo de Deus, evangelista, profundo conhecedor da Palavra de Deus, autêntico adorador de Yavhé. 

Tudo isso, e mais isso: ele  viajava com  a sua única esposa, mas aquelas outras  1.999 pareciam não se dar conta de que para um homem de Deus,  uma mulher basta. 

Para um homem de Deus,  as outras 1.999 seriam dispensáveis até mesmo na hora de  disputar um lugar à mesa, no café da manhã, no almoço e no jantar. E mais dispensáveis, ainda, quando a presença se estendia para além do café, para além do almoço, para além do jantar,  e incursionava pelo campo da tietagem explícita, das fotos, dos autógrafos, todas querendo levar para casa a prova viva: "fui com ele a Jerusalém.   E falei com ele. E ele falou comigo. E ele gosta disso. E ele não gosta daquilo. E eu também gosto disso. E eu também não gosto daquilo".  A concordância e a empatia, nessas horas,  sempre são imediatas. Se não são, tornam-se. 

Na ocasião, custei um pouco para compreender o que estava acontecendo. Porque nada estava contecendo e ninguém sequer presumia que estivesse prestes a acontecer.  Só depois tive certeza de que aquilo que, na época, eu não soubera traduzir em reflexões, e nem deveria traduzí-las, eram, na verdade,  antevisões do futuro. 

Diga-se de passagem: não sou visionária e nem profeta. Não no sentido de predizer o futuro. Mas quando algo perfuma, perfuma. Quando algo cheira, cheira. E quando algo fede, começa fedendo aos poucos, e às vezes, a gente só percebe  quando o ambiente já se empestiou todo.

Nessas horas, é muito útil pertencer à turma do fundão. Aquela turma que comanda a bagunça, que renuncia ao primeiro lugar na sala de aula, exatamente para  ver além do que é conveniente ao professor, que o aluno veja. Eu sempre fui da turma do fundão.  Formamos, pois, a turma do fundão,  como sempre se forma, de maneira natural. Ninguém nos convida para ser do fundão: a gente é ou não é. 

 Com a turma do fundão fiquei livre dos banquetes, mas não fiquei livre da comida; fiquei livre das homenagens, mas não deixei de ser homenageada; fiquei livre de receber o diploma de peregrino em Israel, mas ele está comigo aqui em casa;  fiquei livre de engrossar o cordão que cada vez aumenta mais, e fui conhecer Israel como qualquer mortal. Correndo o sério risco de voltar mortalmente morta.

Mas não me arrependo. Vi em Israel tudo o que queria ver, para não ter que dizer: “tenho que retornar.” Não tenho mais nada. 

Contudo, quando se vê demais, corre-se o risco de ver além do necessário.  Vi então:  vi que a única mulher que pertencia àquele homem de Deus,  aquela que lhe fora dada por Deus, tinha uma melancolia crônica causada por esse festejar excessivo do mulherio em cima do marido: que ainda era o dela. Mas quem se importava com isso? Quem se importa com isso quando o ídolo domina o verbo, e do verbo fez-se o mundo, e além do mundo, também se fez todas as idéias completas, redondas e acabadas que o cérebro feminino precisa para as funções hormonais dizerem em total “des-hormonia”: “que homem, meu Deus!!!”

Nessas horas, Deus e o homem não se excluem, mas também não fazem uma boa parceria. Não, com a Bíblia na mão, e os hormônios em ebulição. 

 Vou me eximir de comentar o final, até porque o final só aconteceu propriamente, alguns meses depois, e eu não vi. Até porque, também,  não é meu objetivo falar de finais, mas de meios que evitem certos finais. Que não necessariamente precisam ser captados no final da vida, pode ser até  bem no começo. Melhor se forem no começo. 

Eu teria, se muito, uns 10 anos de idade quando um missionário capuchinho, em trabalho de missões, hospedou-se na casa dos meus pais, no pequeno povoado em que morávamos, fazendo da nossa casa um lugar de sussurros. 


A gritaria habitual deu lugar a um estranho silêncio, uma vez que a casa era de madeira, as paredes eram finas, e todo o mundo queria impressionar o padre com  bons modos.

 Que não tínhamos, essa é que era a verdade. Eu, inclusive, com os meus 10 anos de idade, nada sabia de como se devia viver em suavidade. Eu vivia como um cabrito: pulando e falando. Cabrito fala? Lógico que fala.  

  E foi assim falando como uma cabrita,  que  naquela noite, bem na hora do jantar, preparei uma frase para dizer em algum momento que pensei estratégico, e que, de novo, nem me lembro qual foi.  E a frase que escolhi foi esta:  “ Mãe, devagar com o andor que o santo é de barro.” 

Na hora todos os olhares se voltaram furibundos contra mim. Sou 8 anos mais nova do que o mais novo dos meus irmãos, todos assentados à mesa, mal respirando, mal comendo, mal deglutindo o procolo que lhes fora ensinado, e a santidade que lhes fora, subitamente requerida.  E que eu quebrara.  Fui duramente reprimida pela minha mãe por dizer uma frase daquela, bem na orelha do padre. E lá fora, no escuro da noite, meu irmão me deu uns pescoções, como se dizia em bom espanhol.  E eu que só queria entender porque  não podia dizer “devagar com o andor que o santo é de barro” -se eu havia guardado essa traçada exatamente para aquela hora, para impressionar o padre com o meu verbo-  fui dormir chorando:  já era besta aos 10 anos de idade.

Ninguém explicou-me porquê:  cansados estavam, todos, das minhas perguntas.  Mas como é natural, algum tempo depois, aprendi as sutilezas que envolvem os relacionamentos humanos e eclesiásticos. 

O que muito me serviu naquela viagem para evitar que eu subisse ao palco e declamasse o verbo, na hora imprópria. Mas vontade não me faltou.   Dessa vez, não era mais pelo não domínio das sutilezas que a frase me vinha: era exatamente por dominá-la em toda a sua extensão e profundidade.  Eu tinha vontade de pegar o microfone e dizer: “mulheres de Jerusalém e do Brasil,   devagar com o andor que o santo é de barro.  E tem dona!”

 Contudo,  não se leva uma bordoada à toa na vida. Levei uns pescoções do meu irmão para aprender que não se pode dizer diante dos santos de barro: “devagar com o andor que o santo é de barro.” E aprendi. Não se pode dizer impunemente o que causa indignação, mesmo que leve à reflexão.

Primeira reflexão: se os santos NÃO SÃO de barro, eles não deveriam ser carregados, deveriam locomover-se sozinhos. Segunda reflexão: se os santos SÃO de barro, eles não deveriam ser festejados como se  NÃO fossem. Em ambos os casos, aventar a possibilidade de que um santo de barro possa quebrar-se, seria a mesma coisa que negar a sua divindade.

Assim não se deve dizer jamais “devagar com o andor que o santo é de barro?”

 E como todos ali eram adultos, nada se disse, e  o santo se quebrou. Quebrou-se e  fez-se de novo. E fez-se de novo por um único motivo: porque o nosso Deus é um Deus que não desperdiça o material que lhe pertence.  Só por isso.

 Mas quem ajudou o santo a despencar do andor,  foi a turma da linha de frente – uma mão na Bíblia, e outra no andor. De onde se conclui que Bíblia fechada não é garantia de nada. Bíblia no papel, também não. A Bíblia tem que estar escrita por dentro do peito, nas tábuas do coração,  e se não estiver por dentro, não faz diferença alguma estar por fora. "TUDO ME É LÍCITO, MAS NEM TUDO ME CONVÉM." 

Nem sempre é um bom negócio estar na linha de frente. Às vezes, a turma do fundão se diverte mais, aprende mais e não se torna co-participante dos pecados dos outros.

Que cada um de nós já tem  um caminhão dos seus.  


Ana Ribas




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AS MENTIRAS QUE CONTAMOS.
ANA MARIA RIBAS.








Sou escritora porque em alguma parte do caminho intui que só pensar não daria conta da tempestade que se avizinhava. Então, comecei a falar para descobrir que ouvidos não comportariam os pensamentos que me delineavam. Então, tive que escrever. Escrever me garantiu o futuro. Só o futuro, o imenso futuro de gerações esculpidas em humanidade, poderão conter o pequeno enigma das almas que escrevem.  Escrevo, pois para prolongar a existência das cenas subjetivas que não consigo datar. 

Sou cristã porque, em um determinado dia, mês e ano,  descobri que era uma pecadora. Da pior espécie. Daquela espécie que se sente justificada por nunca ter matado, ou roubado, ou afrontado a lei dos homens. Daquela espécie que ousa abençoar as criancinhas. Tornei-me cristã quando passei a pedir que as criancinhas me abençoassem. Desde então, fiquei maximamente abençoada pela compreensão de que “aonde abundou o pecado superabundou a graça.” Depois disso descobri, enfim, o que é a essência do cristianismo. A essência do cristianismo é quando o homem desiste da própria bondade, olha para dentro e diz: “mas que ser irremediável!”  

Sou mulher porque não tenho sexo masculino e nem vocação para ser homem. Nasci mulher até a milésima parte das minhas entranhas. Nasci   para ser Eva, nasci para ser Madalena, e nasci para ser Maria, a mãe de Jesus.

 Num único dia sou Eva, sou Madalena e sou Maria. Quando sou Eva, Eva sou – a mãe de todos os viventes. Quando sou Madalena, fico esperando que o meu amigo e Senhor Jesus  liberte-me de todos os demônios que me campeiam, daqueles que, sozinha, não consigo exorcizar.  Quando sou Maria, choro pelo meu filho Jesus, pelo meu pequeno cordeiro sacrificado  em nome dos sacrilégios que, diariamente são cometidos contra a vida. 

  Se me fosse dado não ser escritora, não ser mulher, não ser Eva, não ser Madalena, e não ser Maria, se me fosse dado por um breve momento ser como Jesus, eu diria: “ não me dêem uma mãe. Não me dêem o destino de  filho desta que haverá de comportar tamanha dor” Se eu pudesse,  libertaria Maria da dor que rolando, rolando, rolando, veio parar bem no meio da palma da minha mão, fechada e dura. Eu sempre soube que essa dor seria minha. Eu sempre soube. 

Sou mãe porque tive filhos. E não queria tê-los: já naquela época eu tinha a desconcertante certeza de que o mundo não é o melhor lugar para se vivenciar o absurdo de um amor tão grande. Casei-me pensando  não contribuir para a perpetuação da espécie.  Mas, no meio do caminho, havia uma pedra: havia uma pedra no meio do caminho.  Um bonecão gordo, fofo, inteligente, sensível, feito de ternuras nunca dantes experimentadas, despertou-me  a maternidade que eu escondia a sete chaves.  César foi o meu primeiro amor de mãe. Traida fui por este ser: Césinha. 

(Ôoo gordão eu te saúdo com a nossa saudação particular “ ava gande compá”! A saudação dos césares mutuamente embabascados: você comigo e eu com você . E se você não me ligar esta semana -ainda- contarei para a sua secretária aquele nosso segredo higienista que você ainda não aprendeu.)

Fui mãe por culpa desse acidente de percurso, que nem era meu, mas que arranquei do colo da mãe, para  exercer a maternidade que  precocemente se delineava. E também porque nunca tive bonecas, só livros.   

 E de mãe de um, tornei-me mãe de outros três. E depois de uma multidão. (Henrique você entra aqui, tá? Não precisa ter crise existencial por causa disso). A filha mais velha, chegou total flex Ana Maria, por fora. Por dentro, uma mistura fina que corta no meio o pai e eu.  O filho do meio, nunca foi nem nosso,  e nem deste mundo. Tinha o selo da eternidade gravada em cada mínima ação, em cada mínimo gesto. “Alguns sem o saber hospedaram anjos” é a leitura mais correta da breve visitação que ele me fez.   A mais nova, essa me é a maternidade possível. As brigas e os afetos que derivam dessa humanidade me fazem lembrada: sou mãe! Sou a mãe  que cuida da cria, que lambe, que embola, mas que também se ausenta, e sabe a hora de dar o fora. 

E está chegando a hora. Dentro de poucos dias, ela vai partir para mais um vôo solo. Voa meu passarinho, voa! 

Sou pois um fenômeno que deriva dessas e de outras variantes imagináveis e possíveis. Mas na verdade, o que sou não se pode aprisionar ou descrever em palavras. Até porque as palavras, quando manejadas em causa própria, costumam ser melhores do que o objeto descrito.  O que sou é assim uma mistura de mortalidade com eternidade, um mix de odores e perfumes, um coquetel de sangue,  suor e lágrimas, evolvente em asas de anjos, vôos de serafins, e canto de querubins. Mezzo a mezzo.  Essa mistura me é  tão precária quanto o equilíbrio sobre uma corda bamba.  Mas  é a narrativa que posso fazer, dessa turbulenta e confusa sequência de leituras que fugiram da minha proposição inicial, da mesma forma como a escrita da vida, muitas vezes, nos escapa do controle que gostaríamos de exercer sobre ela. 


 Sem mentir demais: só um pouco. 


Ana Ribas


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NINGUÉM SEGURA UM COMETA PELO RABO. 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 





Às vezes, eu me pergunto sobre rótulos. Os rótulos que o mundo nos adiciona como parte dos ingredientes que lhes oferecemos. Nem sempre o rótulo é a essência exata do que o frasco contém, ou do que um pacote oferece.  Se eu mostro farinha de trigo, ovos, leite e açúcar, alguém pode dizer: “ aqui estão os ingredientes para se fazer um pão” sem jamais ter certeza se dali sairei com  um bolo. Tudo e nada depende da maneira como os ingredientes são acrescentados, tudo e nada depende da quantidade de cada elemento, tudo e nada depende das imprecisões das intenções, dessas que se volatizam e mudam a cada momento, como os ingredientes sob a pia da cozinha,  e a posição dos astros no céu. 

Cozinheiros somos todos os dias, astrônomos, só à noite, quando olhamos para a vastidão do infinito; alquimistas, só nos finais de semana;  interpretadores de mistérios, sempre.   Mesmo que a estrela mais próxima de nós, demore 300 anos para nos trazer a sua luz, podemos arriscar dizer todos os dias: “acabou de chegar aqui o brilho de 300 anos atrás.” Mas em que dia esse brilho foi liberado, não sabemos. Muito provavelmente quando Luiz XIV estava no poder. Essa proposição não estraga o brilho da estrela, mas macula a  composição poética. Corrompe a  poesia.  Fere os  brios. 

 -Como ousas óh  estrela, contrariar a minha poesia?  Óh céus, oh terra, óh mar, não sois dignos dos meus versos! Que queres que eu vos faça? Parar de versejar?”  

 Mas mesmo os cozinheiros, podem ter a sua comida estragada por um acréscimo de intenções no sal, e mesmo os astronônomos não conseguem conter o caminho dos astros no céu, e mesmo os alquimistas não podem tirar apenas ouro das suas poções extraordinárias, e mesmo os interpretadores de mistérios não os interpretam com a ciência das exatidões matemáticas. Tudo é vasto, tudo é amplo, tudo é indefinido e esse "tudo"  resume-se nisso: nenhum homem pode ser adequadamente interpretado nem pelo que ele fala, nem pelo que ele escreve,  e nem mesmo pelo que ele faz.

 Dentro do objetivismo do muito fazer há o mistério indefinido  que apenas se vislumbra, ainda que, por instantes, esse mistério pareça brilhante como a cauda de um cometa e se ofereça à contemplação de todos os mortais. No instante seguinte, já foi, já era, mergulhou na imensidão, porque essa era a sua missão: passar, brilhar, encantar e prosseguir sem revelação.   

Da mesma forma como ninguém consegue segurar um cometa pelo rabo, ninguém segura o mistério que um homem contém, ninguém alcança o seu mundo mais interior, onde reinam ele e a sua fantasia, onde reinam ele e os seus afetos sagrados e profanos, onde reinam ele com os seus anjos e com os seus demônios. 

Eu olho para a cabeça de uma pessoa e tento fixar com um prego aquele mínimo pensar que lhe passa, enquanto ela também olha para mim. E devo lhes dizer, para o vosso temor, que, às vezes, consigo. Trago lá de dentro aquele pensamento mais secreto e o exibo bem diante dos meus olhos, como uma jóia rara. Fico comovida quando me deparo com jóias raras e tenho com elas o máximo cuidado do colecionador. Contudo, na captura desse pensamento raríssimo,  algo me acontece:  ao mesmo tempo em que o tenho nas mãos, cintilante como jóia rara, procuro esconder que consegui, para não provocar no meu interlocutor o mais breve constrangimento. Sempre tenho esse cuidado.  Mas quem se constrange sou eu, ao constatar que aquele pensamento que arranquei a fórceps lá de dentro, já não é mais o pensamento que habita o santuário.  Outros já ocuparam o instante seguinte, e nesses eu  não consigo tocar. O que toquei, toquei. O outro, o que vem em seguida,  não toco mais: não com a frequência com que gostaria, não com a previsibilidade que me convinha para poder pensar: sou uma mulher que tenho a fórmula exata para enxergar todos os dias a nudez do rei, como o menino do conto de Andersen.  

Não há reis nús, há reis em trajes sumários, mas eles se escondem por trás dos muros de seus castelos. Nesta manhã, eu não tenho nenhuma vontade de escalar muros de castelos.  Nesta manhã,  desisto de ser interpretadora dos mistérios de todas as gentes,  desisto de ser alquimista, desisto de ser astrônoma, e escolho ser cozinheira.

 Nesta manhã de panelas, vou fazer o meu almoço. Só nesta manhã. Mas porque o mundo é orbicular e vasto,  e o infinito não consegue me conter eu volto. 


Ana Ribas


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NEM SEMPRE O VERDE É A MELHOR SOLUÇÃO. 






Num restaurante, meio lanchonete, meio cozinha de casa, estavam três amigos na casa dos vinte anos. A primeira, se acabando em cima de uma prato de pedreiro, amontanhado de feijoada, disse: 


- “Eu como para afogar as minhas mágoas.” 


O segundo, mandando bala no quinto chops entrou no lance, e se saiu com esta frase:


- “Eu bebo para matar a minha fome.” 


A terceira comendo as últimas folhas de alface, completou para encerrar o diálogo:


- “Eu pasto porque nasci.” 


A primeira teve obesidade mórbida, fez cirurgia de redução de estômago, exibe hoje a metade dos quilos que carregava aos 20 anos, e vive muitíssimo bem. 


O segundo teve cirrose hepática,  e morreu, antes dos 40 anos,  sem matar a fome que sentia.


A terceira continua pastando. 


Um beijo pra você Wilma Regiane de Carvalho. Saudades de você Ivan Miguel. 




Nem sempre o verde é a melhor solução. 


Ana Ribas


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SE COMO UMA COISA PUXA A OUTRA.






Esta é uma manhã que começa com uma narrativa. Que se estende para uma consideração. Que se amplia para enquadrar uma paisagem. Não há muita beleza nessa paisagem. Não há movimentos de luz e sombra na imagem.  Há apenas a cintilância de cristais reverberados em algum ponto que a lente não pode alcançar, mas que a escritora vai lhes apresentar. 

Começa assim: ontem a tarde eu estava considerando uma única possibilidade para a noite de sexta feira. Então, recebi um e-mail do Projeto “Há Vida Sensível na Terra.” Achei o e-mail de uma delicadeza total flex, respondi com as melhores palavras que pude encontrar  e a vida andou. 

Era aniversário da Silvia e havia a se considerar a possibilidade de participar de uma dessas festas que colocam um pobre frango morto na telha quente.  E maior é a multidão da região que acorre para o ver o frango esturricado na telha do que aqueles que viriam para vê-lo vivo, assustado, ciscando, tão filho de galinha. Eu não aguentaria a multidão enfurecida, e aguentaria muito menos pelos seus motivos canibais: afinal o que somos nós, se não assustados filhos de galinha, nesse mundo de tantas mortes possíveis? 

A segunda opção era pois, ficar. E ficar equivaleria a ficar. Foi então que algumas palavras do e-mail “há vida sensível na terra” começaram a ganhar força dentro de mim. Por que sim? Por que não? 

O jantar com Dany Ziroldo foi só uma consequência de se examinar com carinho uma possibilidade: a possibilidade de considerar novas possibilidades.

Dany Ziroldo é escritora do RL há quase 2 anos. Moramos na mesma pequena cidade, somos ambas seres que se descrevem,  mas não nos conhecíamos. Nem mesmo de vista. 


Um dia, Dany, que chegou primeiro ao RL, resolveu pesquisar no Google se havia mais alguém da city e  deparou-se com o meu nomezinho. De nome, ela me conhecia. 


-Mas então é assim: “essa mulher escreve? Esse ser que ninguém vê realmente existe?” 

A partir daí ela resolveu conferir e passamos a trocar e-mails e figurinhas. Mas não nos conhecíamos. 

Um dia, uma outra colega do RL fez a constatação: -“você mora na mesma cidade da Ana Maria? Como ela é?” A resposta foi: -“eu moro na mesma cidade, mas não a conheço ainda.” 

Verdade seja dita: há algum tempo eu vinha observando que esse conhecimento estava virtual demais para os limites desse estreito município e esse comentário só explicitou o que eu já sentia: vontade de conhecer a Dany Ziroldo. 

Mas nem sempre o toque interno nos encaminha diretamente para a resolução externa. Foi aí que surgiu o e-mail “vida sensível na terra.” Que não disse muito, mas ainda assim falou. E de tudo o que falou, sem assinar, sem caprichar muito na redação, uma mínima palavra ganhou força para remover a pedra. Afinal, eram várias pedras. Mas se a de dentro, já pesava tão pouco, por que não remover as demais que eram tão pequenas? 

Encontrar o telefone de Dany, assim de última hora não foi tarefa das mais fáceis. Mas também não foi impossível. Telefone na mão, trimmmm, do outro lado Dany ganhou a voz do verbo, e do verbo fez-se a ponte, e da ponte fez-se a vida. 

O jantar foi nesse lugarzinho aí, perto da rodoviária, onde se encontram três coisas que me enternecem: comida boa, mendigos de passagem pela cidade e cachorros com fome. Estranhamente, ontem a terra estava silenciosa: nem mendigos e nem cachorros – o céu preparou tudo. O céu preparou a  Dany Z. com o seu vasto mundo interior e contido, mais a Ana Maria com o meu vasto mundo interior esparramado por todo o Brasil via web – Ai meu Deus! - e mais a possibilidade de compartilhar tudo o que aprendemos no RL. 
Foi tanto mais tanto,  que a hora passou e nem nos demos conta. 

Conversar com alguém que escreve é um mundo que se cria à parte do mundo que lê. Porque o escritor é feito de idiossincrasias que são hilárias, de paixões que se equivalem, de angústias que se dimensionam exageradamente amplificadas, não somente no ato de escrever, mas a posteriore. Descobrimos Dany e eu, o que muitos de vocês já devem ter descoberto com certa compreensão antológica: o escritor é um ser que precisa desesperadamente de um ouvido. Mas esse ouvido precisa estar nos olhos. Podemos ser vocacionados para falar, para ouvir, e para sermos ouvidos,  mas a nossa preferência é sempre pelo papel. O papel nos atrai mais que tudo. O papel é o nosso palco e a nossa defesa. O papel é o nosso escudo. E só abrimos mão da caneta e do papel se realmente sentirmos que vale a pena a troca pelo mundo dos vivos.  Apenas se o mundo dos vivos não for mundano demais, raso demais, estreito demais, então nos movemos. 

E ontem, valeu a troca! Dany: há muito tempo eu não me esparramava tanto. Há muito tempo também eu não era ouvida tanto, por dois ouvidos atentos.  E há muito mais tempo ainda,  eu não sabia o que era ser tão falante. E tão menina. E tão explícita. E por que não dizer: também tão feliz!  O nosso jantar foi “tanto”. 

Alô terra! Há vida sensível na terra? Sim, há vida sensível na terra. Há um amor eficaz que resolve. Há uma capacidade de resolução que não depende de decretos, de apresentações, de explicitações. E nem mesmo de assinaturas. Você esqueceu de assinar o email, esqueceu de dizer o seu nome, mas não esqueceu de  exercer a sua sensibilidade. E sensibilidade não precisa ter nome, nem cpf, nem endereço, basta existir e fazer contato. 

Alô terra!!! Grande beijo para todos vocês – os seres sensíveis da terra. 

Ana Ribas


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UM LUGAR DE VOLTAR. 
ANA MARIA RIBAS. 





As descobertas sempre me impulsionam, e as similaridades sempre me comovem. Quando vejo o meu gato, o Alemão, voltando para casa, depois de umas incursões desbravadoras pelo quarteirão em que moramos,  eu penso: “ Quem ensinou você que aqui é a sua casa? Quem lhe disse que aqui é o seu lugar de voltar?” 

Então eu me comovo, porque ele sempre volta. Ele volta porque se sente acolhido, e não voltaria, caso se sentisse desprezado. Ele volta porque encontra afeto, e não voltaria, se encontrasse pancada. Ele volta porque encontra comida, e não voltaria, se o prato estivesse vazio. Ele volta porque encontra a segurança emocional que todo ser vivo precisa para não viver eternamente sobressaltado.  Alemão gosta de pertencer. Alemão sabe que me pertence e eu sei que pertenço ao Alemão. E nesse mútuo pertencer, eu espero pela volta do Alemão.  Então, ele volta. E quando ele volta, eu me volto. Por um segundo, nossos olhares se cruzam e nossas diferenças se resumem a um rabo. Apenas a um rabo. A sua plasticidade me impregna e a minha gravidade o embebe: a simbiose entre dois seres vivos se instala. 

Depois, eu olho para a Nalva. Nalva também me comove. Todas as manhãs ela chega timidamente, pesadamente, secularmente, e depois vai se soltando, até voltar a ser criança.  No muito fazer dos braços, ela desata o corpo todo e, distraída acaba libertando a alma. Nessa libertação, ela me surge inteira. Inteirissimamente Nalva. Não a Nalva que rege o coral da igreja, e que se equilibra precariamente sobre um salto fino, mas a Nalva pecadora redimida convicta de que o sangue de Jesus a justifica de todo pecado, até mesmo do pecado de andar descalça, sujando apenas o pé. O pé pode. Jesus disse que o corpo estava todo limpo, mas o pé precisava ser lavado. Porque o pé toca a terra. 

 Nalva também sempre volta. E volta, não apenas pela necessidade de ganhar o salário mínimo,  mas pelo máximo afeto que eu lhe dou, pela alegria brevíssima que a companhia dos tristes lhe proporciona. Nalva também sempre volta. E ai de mim, se Nalva não voltasse. Às vezes, tudo o que me sobra da presença dos vivos, atende pelo nome de Nalva.  


Do Alemão para Nalva, e de Nalva para o Milton. Milton consegue me tornar uma pessoa ainda mais comovida. Milton é quem faz a limpeza diária da piscina, e cuida, mensalmente dos limites estreitos do meu jardim. Que, a bem da verdade, não é mais um jardim, não por culpa de Milton, mas das cachorras. Para limpar a piscina, Milton liga um potente aspirador que gasta os tufos de energia,  e obviamente,  usa também a energia dos seus braços. Faça chuva ou faça sol, seja primavera ou verão, Milton  volta. 


Então, nessa compreensão equivocada de que voltar poderia ser um verbo inútil, eu disse para o Milton: - “Ô Milton, o verão está longe ainda. Não há necessidade de limpar essa piscina todo dia, não há necessidade de ligar esse aspirador. Relaxa um pouco, Milton: venha só 3 vezes por semana.” 

Ele concordou, sem oferecer nenhuma resistência. Mas toda manhã, às 5 horas da manhã, ouço a chave abrindo o portão de serviço,  pressinto os passos do Milton deslizando pelo corredor, adivinho a luz que se acende, a alegria dos meus gatos e cachorros libertados precocemente, ainda no escuro, ainda na madrugada, porque Milton volta. Tendo o céu por testemunha, e a última estrela da manhã por invocação, Milton cumpre a  muda vocação para o dever diário e profano do cloro que mata as bactérias e da barrilha que limpa.   Milton também sempre volta. 

 Ivo também sempre volta. Sai ainda de madrugada, mas lá pela hora do almoço, ele volta. E os meus meninos de rua,  sempre voltam. Voltam sob qualquer pretexto: um caderno que está faltando na bolsa da escola, um prato de comida que está faltando na barriga, um par de tênis que está faltando no pé. Eles voltam. Como também sempre voltam os meus gatos de rua, em busca da ração que eu deixo toda noite na porta da sala da minha casa. Eles todos sempre voltam. Aos bandos, travando luta corporal uns com os outros, numa danação que me acorda quase toda madrugada, mas também me dá um sentido bom para existir: sei que existe alimento para o mundo faminto na porta da minha casa. 

E as andorinhas? Todo verão elas voltam. Elas me despertam ao amanhecer. E nesse acordar festivo da andorinha, para a urgência do seu próprio  viver, uma cintilância de mundos opostos se fundem e se entrelaçam, e, quando pressinto, meu corpo já está em pé, meus pés já estão dentro do chinelo, e as minhas mãos já fazem café. Acordo quando mastigo o pão. É tarde, já nasci de novo. E as andorinhas, essas vão e me deixam com a estranha sensação de que a alegria foi só uma ilusão. 

Nesta manhã de cintilâncias de andorinhas, eu quero dizer que estou comovida com a volta de vocês. Vocês sempre voltam, e eu me pergunto: por que voltam? E eu me respondo: pelo mesmo motivo que eu também volto - porque somos seres destinados a voltar quando nos sentimos assemelhados, acolhidos, amados, em algum lugar. Então, voltamos a esse lugar. Voltamos também porque criamos o hábito de voltar e voltar nos remete à gênesis, ao princípio de tudo, e por inferência ao nosso fim. Somos seres eternamente vocacionados para o fim, na medida em que compreendemos que a nossa libertação se encontra lá: no fim. 

O fim nos libertará da compulsão de voltar, o fim nos libertará da doença crônica de existir, o fim nos libertará do cativeiro da corrupção, o fim nos libertará do ensaio para a grande estréia.  


Mas enquanto não chega o fim, que haja a volta. A volta nos aproxima: eu de vocês e vocês de mim. A volta nos comove porque pertencemos: eu a vocês e vocês a mim. A volta faz de nós seres apaixonados: eu por vocês e vocês por mim. 

Nesta manhã, eu quero celebrar a sua volta porque a sua volta é o álibi que justifica a minha vinda. E talvez, a minha vida. 


Ana Ribas


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EM ALGUM LUGAR.
ANA MARIA RIBAS. 






Liberdade de expressão: não tenho muita, nem mesmo quando escrevo. E agora que tomei consciência dessa situação, escrevo sob protesto, porque gostaria de conquistar essa liberdade. Gostaria de fugir do estereótipo que  construí em torno de mim.  Meu compromisso com a infalibilidade é cruel e com a imagem é atroz. Às vezes, sinto-me como um cão adestrado a quem se diz: “faça isso, ou faça aquilo.” E ele faz e eu também faço. Com a diferença de que a adestradora sou eu mesma. No rastro desse compromisso comigo mesmo, seguem-se os vínculos que adquiri ao longo da vida: como saber jamais se algo que escrevo afrontará as dignidades constituídas? 

E, numa escala de valores ainda maior: como saber se o que escrevo não afronta a Deus? Porque no ato de escrever nos percebemos mais poderosos do que realmente somos nesta vida. Dominar as palavras, num certo sentido é brincar de onipotência. Deus criou o mundo pela palavra e fez dele uma coisa linda. E eu? O que eu estou criando com a palavra? Isso eu temo e temo muitíssimo. 


Porque o criador é sempre aquele a quem se remete a autoria. Mas na verdade, na verdade, nem tudo o que criamos é exclusivamente nosso. O que criamos é metade nosso, e metade do outro, dos outros, do mundo que interage com todos os campos da nossa existência. 

Às vezes eu me sento aqui e quero falar de flores, mas a manchete do UOL rouba-me o cheiro das flores, o sentido das flores, o sentimento das flores. Então, falo de dores. Mas isso é muito poético. Real é dizer que, muitas vezes, eu me curvo ao poder constituido, eu me vendo à caravana dos vencedores e integro o cortejo dos vencidos. Isso eu lamento e lamento muitíssimo. 

O que sei escrever de melhor são cartas. Porque cartas são pessoais tanto na saida, quanto  no destino.  Nas cartas e e-mails eu libero a minha porção engraçada,  e as minhas reflexões menos convencionais. Gosto de imaginar as pessoas rindo com o que escrevi. Eu mesma consigo rir do que escrevo.  Mas mesmo as cartas, e-mails, artigos, crônicas, mensagens, enfim tudo o que libero  me são um tormento: depois que envio, quero trazê-los de volta.

 Durante 20 anos mantive correspondência com um primo-irmão do meu pai, residente na Espanha. Pelo correio. Desde menina, eu me encarregava disso, porque ele havia residido conosco, durante alguns anos, aqui no Brasil, e eu tinha as melhores lembranças da minha infância associadas à sua memória. Era um pai: um pai sem cobranças.    As cartas que trocamos têm o selo das coisas finas. O que quero dizer com “coisas finas”? Acho que quero dizer assim: “coisas maravilhosas”. Mas o ciclo se  encerrou, de forma melancólica,  em novembro do ano passado. 

Quando soube que estava com CA de próstata, ele não me comunicou, continuou escrevendo normalmente. E ainda  teve o cuidado de deixar uma carta  para ser postada depois da sua morte.

Foi-me um choque, mas no meio desse choque,  eu vi algo tão delicado que não sei expressar o que vi. As últimas palavras que ele escreveu foram essas: “Não seja excessivamente melancólica, viva a  vida de maneira simples, porque a vida é simples.  Teu primo que te ama para além desta vida: Santiago.” 

Essa carta,  como era de se esperar, alcançou o efeito oposto ao que ele pretendia. Penso que ele quis banalizar a morte mas glamourizou demais essa banalização. Deu-me um passaporte ao alcance da mão,  para o  mergulho mais fundo. Quando quero mergulhar, pego a carta, tranco a porta do quarto,  e mergulho. Sem avião. 
  
Nem sempre posso ser tão franca quanto gostaria. E nem sempre encontro pessoas tão abertas para me entender- e eu a elas.  Nem sempre posso ser tão espontânea. Nem sempre posso me dar ao desfrute de ser  inconsequente, sem o rótulo da inconsequência. Nem sempre consigo fazer o palhacinho da festa sem assustar as criancinhas.  

Quando escrevemos, inspiramos um estilo; da mesma forma que, quando vivemos, também inspiramos um estilo. Não se pode trair o estilo que inspiramos a vida toda, ou o tempo todo, mesmo que esse tempo seja um ano de R.L. Aprendi isso. 

Um colega de RL  sentiu-se afrontado porque, como cristã, eu não poderia ter criado esta frase: “ aos insensíveis eu não perdôo jamais.” Ele leu todo o texto e comentou só a frase. E bateu forte. Apanhei e fiquei quieta. Ou melhor, corrigindo: apanhei, fui lá e dei a outra face para ele bater. Disse que sim, que ele estava certo e que eu iria mudar o final.

 Na verdade, era um final necessário ao texto, arte cênica total flex.  Mas não era necessariamente o meu final: o final que estava escrito dentro de mim. 

Eu lá tenho condição de  não perdoar alguém? Eu lá tenho prerrogativas para ser tão poderosa? Eu lá tenho coração para ficar abrigando a mágoa? Três perguntas para uma só resposta diante de Deus: “ não.”

 E quem seria afinal esse “alguém” sobre o qual eu escrevi com tanta veemência literária? Nem me lembrava mais. Não me lembrava mais nem mesmo do nome da pessoa cuja insensibilidade  “magoara-me tanto”, e nem de ter escrito aquilo.  Quando li o comentário, pensei: “oxente, tá doido!!! Isso não é comigo!!!”

 Mas era!  A nuvem andara e quando a nuvem anda, eu esqueço o que ficou para trás e ando com ela. Precisa ser algo muito grave para me prender com grilhões. Algo que me machuque muitíssimo. E aquilo não era.  

Fiquei de dar um final menos trágico à crônica, mas a vida andou e  acabei esquecendo. Passaram-se dias de dias. E, quando eu menos espero,  lá vem outra pancada. Dessa vez a pancada foi eclesiástica: Frei Fernando, meu amigo e meu leitor, ensinou-me novamente a mesma lição, com autoridade apostólica. 


Novamente, alguém tropeçara na última frase do meu texto.  Dessa vez, não esperei pela terceira. Fui lá e transcrevi o final que me encomendaram. Não sem antes dizer o nome do autor. 

Por causa dessas coisas, eu tenho tentado conseguir mais uma escrivaninha aqui no RL, mas talvez,  porque usei o mesmo CPF, não me deram uma nova escrivaninha. Não,  até agora. Se me derem, ninguém saberá quem sou. Não terei sexo, nem rosto, nem perfil, nem história pregressa. Só terei novas histórias. Farei das velhas, e das novas histórias um nova interpretação de vida, inspirada em Rosa Montero. Que inveja me dá Rosa Montero, Rosa com a sua liberdade revolucionária de expor sem se expor, mesclando a realidade com a fantasia, sem ter que explicar: “aqui sou eu, aqui é  a fantasia, a louca da casa.”   

 Eu tenho dois caminhos: ou espero até os 80 anos para escrever a vida como ela é, ou uso um outro nome que não lembre o meu nome, que não me traga nenhum outro dever, a não ser o prazer puro e simples de contar histórias. A história não como pensamos que ela deveria ser, mas como  geralmente é. 

Afinal, cinco perguntinhas básicas, tiradas do Livros dos Livros: 1) Pedro cortou a orelha do servo;  ou não? 2) Jesus expulsou os vendilhões do tempo; ou não? 3) Paulo chamou Pedro de dissimulado; ou não? 4) João Batista xingou todo mundo de raças de víboras;  ou não? 5) Jesus disse a Pedro: "para trás de mim, Satanás";  ou não?

Se as respostas forem “não” a minha Bíblia tem páginas a mais. Mas se as respostas forem “sim” eu me curvei demais. E tenho me curvado demais em busca da perfeição que não tenho. Que não sou. Que jamais serei. 

Perdoar é muito mais do que estender a mão, muito mais do que escrever cinco palavras, muito mais do que direcionar um final feliz e camuflar o que estamos sentindo, no momento em que a narração ganha forma.   

Perdoar é esquecer. Esquecer é algo que acontece no recôndito da alma. 

Nesse sentido, Jesus em mim, é como uma grande borracha que apaga todas as mágoas. E se não fosse assim, adiantaria eu reescrever o final daquilo que escrevi? E sendo assim, faz muita diferença este ou aquele final para as minhas  histórias?

 Em algum lugar, as perguntas, um dia,  se transformarão em respostas.  Enfim...!!! 


Ana Ribas


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A INFELICIDADE É HUMANA. 
ANA MARIA RIBAS.






O filósofo alemão Immanuel kant disse o seguinte: “ Se a felicidade fizesse parte da natureza humana, Deus não nos teria dado a inteligência.” 

Para os infelizes eu não precisaria traduzir, mas para os felizes, a tradução se faz necessária: “ todo aquele que é capaz de  estabelecer uma conexão adequada entre os seus neurônios, não é programado para ser feliz.” É próprio da condição humana – uma dose saudável de infelicidade naturalmente alcançada, a dura penas cultivada, a muitas lágrimas regada. Um dia, pacientemente, ela brota e isso é o selo da divina humanidade.  

 Kant,  ao que se sabe,  é figura festejadíssima no eixo Paris-Milão-Rio-São Paulo-Berlim.

 Em Cruzeiro do Oeste, não é muito, não. A moçada aqui não conhece esse tal de Kant.  Até porque juntei o povo dessa cidade e os ensinei a ver  alguns erros básicos, de ordem metafísica, na proposição existencial de Kant. Apresento agora a vocês os erros que identifiquei: 

 Deus nos criou para a felicidade. Deus fez o homem com a corda toda para a felicidade, para a “amarelinha” num pé só,   para os jogos lúdicos que a vida proporciona. Da mesma forma como a criança nasce apenas sendo, sem indagar os seus motivos de ser, Deus nos projetou para a felicidade não abstrativa. Para as felicidades concretas. 

Comer por exemplo, é um ato de extrema concretude. Pois é: Deus nos fez para comer. Deus também nos fez para amar. Amar é uma brincadeira que emociona e dá colorido à vida e rubor às  faces.  Deus também nos fez para sentar no banco do jardim, conversar,  e exibir na cara uma santa bobeira. E para fazer música: também para fazer música. A dança seria consequência - pois então, Deus também nos fez para dançar.  

 Todo bobo é feliz. Deus nos fez bobos, parvos, resumidos e portanto, felizes. Mas a condição de bobeira crônica foi considerada um ultraje à nossa capacidade evolutiva. O capeta sugeriu que pensar adequadamente seria melhor do que viver simplesmente. Escolhemos pensar, pois. E o pensar- pois-  nos trouxe para a categoria dos seres que evoluem, pois. 


 Evoluimos então, e continuamos evoluindo então, e essa evolução crônica  tem dado no que deu  e no que ainda se dará: um exército de seres infelizes. 

 Agora sim, vou corrigir adequadamente o axioma de Kant. Que Kant conseguiu ser infeliz e burro, ao mesmo tempo. A leitura correta é esta: 


“Deus nos deu a felicidade como parte da natureza humana, mas o homem trocou a felicidade pela inteligência.”

E aí danou-se tudo.

Mas danou-se mais, porque nessa inteligência toda, o homem pensa conseguir assobiar e chupar cana,  com o seu mesmo e único beiço.   Ele pensa poder ser feliz e inteligente. Não dá!

Sinto dizer para a macacada toda, que não dá para conciliar os dois parâmetros. Não sem, pelo menos, sacrificar no altar alguns neurônios. E neurônios não são feitos para serem oferecidos como sacrifício no altar. Não por nós. Eles mesmos se oferecem voluntariamente para morrer em um dado tempo, e nesse tempo, não há muita coisa a fazer para contê-los -  quando eles decidem que querem morrer e nos tornar, um pouco, mais felizes, morrem mesmo. 


Mas em troca dessa morte, nós ficamos um pouco mais felizes - isso ninguém pode negar. Há que se celebrar adequadamente a morte de alguns pares de neurônios, mormente os localizados na área leste do quarteirão occipital.  Alguém já viu de perto, de pertíssimo,  uma pessoa com a “sindrome do alemãozinho?” Então veja: a felicidade é possível para todos aqueles que estão devidamente afundados no mundo do alemãzinho. 

Eu não me preocupo com a síndome do alemãozinho: quem teria que se preocupar seriam os meus cuidadores. Mas literatura tem limite, e falar bobeira é pecado. Peço perdão então:  “Senhor Jesus, perdoa-me o abuso verbal e me cubra com o seu sangue. Também me dê saúde e me abençoe sempre com essa infelicidade tão necessária para me fazer lembrar que o céu não é aqui. Amém!" 

A coisa toda é essa. Estou ácida assim, desde ontem pela manhã, apenas porque preciso dizer a algumas  pessoas bem mal intencionadas, que querem estragar a minha inteligência  com todo tipo de soluções mágicas: "não dá para ser feliz." 


Não consigo ser feliz e viver na redoma de um mundo redondo, completo e acabado, depois de assistir ao comovente relato do engenheiro químico Dr. Antonio Ratto, cujo filhinho Lucas Pereira está desaparecido desde o último mês de junho. Não dá para ser feliz e dormir placidamente depois de ver a bicicleta que ele comprou e posicionou bem no meio da sala, presente do Dia das Crianças, para o Lucas. Haverá dia das crianças para o Lucas? Haverá futuro possível para esse homem que chora sem ter mais lágrimas? Como se diz a um pai cujo filho esta desaparecido: “ Bom dia”? “Feliz Natal?” “Está tudo bem?” Se eu encontrasse esse homem, eu me encolheria toda em caracol.  Nenhuma mínima palavra sairia da minha boca. Há seres tão densos que perto deles eu viro ameba. 

 Nesta manhã,  “sinto muito” é a palavra que eu escolho dizer.   Não dá para ser feliz, simplesmente porque sou um ser pensante. E com essa infelicidade já estou acostumada. Mas a tristeza não precisa fazer parte do pacote. 


Por isso, tentarei eliminar a tristeza, jogando  luz sobre a natureza da alegria para os seres espirituais. Seres espirituais não são normais, diga-se de passagem. Seres espirituais se alegram com cintilâncias e se entristecem com reverberâncias. Uma coisa de nada nos entristece.  


Sou um ser espiritual por excelência. Tudo bem, já sei, vou completar o seu pensamento: sou um ser espiritual que habito um corpo material. Mas a infelicidade crônica me exime de grandes tristezas. Em compensação o gatilho que detona a mínima tristeza é quase imperceptível. As pessoas não se dão conta de que pouca coisa já me entristece.  E essa pouca coisa que  me entristece é que vivo cercada de seres pensantes, mas alguns desses seres pensantes me interpretam de maneira tão rasa que não sei como conciliar a minha profundidade com essa rasura toda.

Não sei se o que escuto é porque o sapo na lagoa coaxa, ou é porque a lagoa geme com tanto coxear. 


 O que sei é que: não me ofereçam o que tenho de sobra, não me insultem com conclusões óbvias, não me interpretem segundo as suas breves sinapses mentais. Eu penso, logo existo e existo do jeito que Deus me permite existir. 

Eu poderia invocar o apóstolo Paulo em seu gemido histórico para vir em minha defesa: “  Pois também nós os que estamos neste tabernáculo gememos, angustiados, não porque queremos ser despidos, mas revestidos para que o mortal seja absorvido pela vida.” 


Vou traduzir para você: o apóstolo Paulo não queria morrer, ele queria viver; mas a morte, sob a perspectiva da fé cristã, é um processo de reabsorção, o mortal sendo absorvido pela vida inerente, por essa qualidade de vida que só Deus tem para nos dar. Foi isso o que ele disse e isso eu assino embaixo.

Não há mansões em Alphaville, não há viagens, não há carros, não há a possibilidade de felicidade permanente que possa ser obtida a preço de coisas tão fedorentas. Privadas de ouro servem para o que mesmo? Então tá. 

Vivo pois sob a égide das proposições de fé do apóstolo e não sob a égide das proposições de vida de Patricia Paris Hilton.

O que não significa que sou um ser totalmente desprovido de alegria.  Tenho as minhas íntimas alegrias! De vez em quando apresento recaídas históricas e se, por acaso,  alguém passar e me ver sentada no banco da praça, com cara de boba, compreenda, releve e me deixe entregue a essa bobeira apenas circunstancial. Uma hora passa. 

Pois é. Também faz parte da vida dos seres inteligentes ter alegrias brevíssimas. Ontem, depois das 18 horas,  eu tive uma alegria brevíssima. Fiquei "passada" com o momento de brevíssima alegria que me tomou. 


Mas essa alegria é minha, dinheiro não compra, ilusão não  vende, e como diz a filósofa Mariníssima – a quem peço licença para emprestar o pensamento altamente filosófico: “ a vida é minha, o pObRema é meu.” 

Nesta manhã eu quero celebrar a alegria, porque há dias em que a minha infelicidade crônica me enjoa. E Plasil pode até pertencer a  um laboratório famoso, ser marca internacional, ter patente reconhecida,  mas  não cura. 


Ana Ribas


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NUNCA MAIS






Ocorre-me esse sentir, sempre que me nasce um bom texto. Nasce quente, ainda trôpego, mas já pressinto em seus veios a vida forte, a vida vocacionada para a vida. E me derramo em cuidados maternos, como a égua, ao que lhe sai das entranhas, já se pondo em pé. Tão independente nasce  o cavalinho, mas a mãe o lambe com  saliva quente, no calor da língua grossa.  E essa saliva quente, nessa língua grossa, derramada sobre aquele que já lhe nasce fervendo em vida, o faz ainda mais filho daquela égua. 

Esse filho que me nasce assim, filho de égua,  me faz sofrer assim: filho de mulher. Sofro porque sei que “nunca mais, nunca mais,” escreverei outro tão bom como aquele que já veio na mais pura bondade, a bondade de revelar-se pronto para ser lido, entendido, apreciado, admirado e metabolizado, até o ciclo final. Porque por mais que um texto seja esse:  que coisa! Ele envelhece e morre! 


Todas as coisas envelhecem e morrem. Um texto envelhece e morre para aqueles que já sorveram a sua substância. Para esses, aquele também é como este “nunca mais, nunca mais?" 

Nesse “nunca mais”, esvae-me a vida, por entre os dedos. E por uns dias, “nunca mais” é “nunca mais”. Os meus limites ficam delimitados e debilitados pelo “nunca mais” que eu mesma me impus como parte do processo criativo.  Tudo que vem depois, não tem calor, tem gelo. E o gelo, em plena primavera deste  inverno,  é ainda mais gelado. Ai que frio nessa manhã de 40 graus.

“Nunca mais, nunca mais!” Sinto que meu sentir se perdeu, o abstrato me fugiu,  e nada mais me resta nessa manhã,  a não ser  abraçar tudo o que as minhas mãos podem tocar: meus gatos, meus cães, minha vida feita das 4 patas possíveis.  Nunca mais terei mãos para escrever, apenas para varrer, limpar, lavar, passar e cozinhar. Se eu soubesse varrer, limpar, lavar, passar e cozinhar. Mas não sei. Sobra-me Deus no céu e o vazio na terra. “Nunca mais, nunca mais?” 


Nunca mais tocarei o céu na terra, nunca mais terei a alegria mais pura, nunca mais sorverei do riso fácil, nunca mais subirei montanhas e descerei vales,  nunca mais chegarei a beira do abismo -  o abismo.  Esse que me diz:  "para sempre: nunca mais?" 

Nunca mais! Que assim seja!  Nunca mais, farei, portanto,  coisa alguma. Que de coisa alguma é feita a vida até que me nasça outro  vocacionado para a vida, já se pondo em pé. Graças a Deus, um dia, eles me nascem. E eu fico toda mãe de filho, toda mulher, toda filha do Deus Altíssimo, que me diz: “sempre mais, sempre mais, sempre mais.”

Mas hoje estou em sofrimento: "Nunca mais" está me sendo um grande,  profundo e inaudível silêncio das espécies. - "nunca mais."  


Ana Ribas


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MARINÍSSIMA






Quem conhece, sabe: Marina Bernardelli Rocha é digna de uma jornal inteiro, não só de uma crônica. Essa mulher, essa moça, essa menina, essa bebê, é a caçula do clã Bernardelli, a irmãzinha dentre os treze irmãos do Ivo.


A mais amada e a menos compreendida.
 Quem consegue compreender um brilho cósmico se não tiver uma luneta? Eu consigo! 
 Na essência, ela é um perfume dos mais puros. 
 Na aparência é isso que se vê. O nariz Bernardelesco nem lhe faz sombra: onde ela chega, chega! Onde ela passa, passa.
 Não há como deixar de perceber esse brilho absurdamente intenso.
Um brilho que, às vezes, incomoda. 
Que contraria as regras de que se deva existir sem que ninguém note a nossa existência. 
 Que se deva viver sem que ninguém se sinta afrontado por  viver de forma tão intensa. 

Marina, depois de todos esses anos, de convivência das mais felizes, se eu pudesse lhe dar um presente maior do que o amor que sinto por você, eu escolheria lhe dar um novo planeta para habitar. E lá as regras de convivência social seriam assim: - É proibido proibir. É proibido proibir: 
 - a alegria de viver
 - a magia de amar
 - o amor incondicional
 - a esperança de ser feliz
 - o brilho do olhar
 -  a confiança renovada
 - os cachorros dentro de casa
 - o som no volume que você quiser ouvir
 -   a dança na hora que você quiser dançar
- o choro na hora em que você quiser chorar
 - o sonho na hora em que você quiser sonhar
 - As gargalhadas na hora que você quiser gargalhar.
 - Os anjos na hora que você precisar.


Dos quais eu seria apenas um - entre eles. 


Tudo isso sem afrontar nenhuma dignidade constituida. Nem a autoridade de Deus,  e nem a autoridade dos homens. 


Eu também lhe concederia uma prorrogação, um segundo tempo, um terceiro tempo, um quarto tempo, e todos os tempos que fossem necessários para que você vivesse a vida da maneira grandiosa como você experimenta em vida. 


A vida com o seu grande coração que pulsa e bate como um cabrito descontrolado, que sofre por amar amplificadamente,  sem receber o equivalente em volta.Sabe Marina, se eu pudesse, não lhe levaria mais para  conhecer Roma, nem para conhecer  Jerusalém. A Jerusalém dessas muralhas. 


Eu lhe traria de volta para esta ínfima terra, terra de tantos tesouros, onde você pode amar e ser amada, com a prerrogativa dos que não precisam mais provar nada a ninguém. Evitaríamos assim, o choro que lhe toma sempre que você me abraça quando volta, o pedido de socorro que me envia nas mensagens pelo msn, evitaríamos a saudade que sentimos todo final de dia, a nostalgia que nos invade em datas especiais quando de especial mesmo só temos as boas lembranças para lembrar e ser feliz. 
Como essa, no Aeroporto International Leonardo da Vinci, em Roma, quando você velou pelo meu sono e me deu colo de mãe e alegria de filha. 

 E se tudo isso lhe fosse pouco, como parece ser tão pouco para mim, perguntaríamos a um profeta: “Onde fica Pasárgada?" E ele nos indicaria o caminho, o caminho reto, sem atalhos, na estrada comprida, larga, diáfana, cheia de luz: os múltiplos sentidos de Pasárgada, nosso, lúdico, lúcido,  enfim! 


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O aniversário foi dia 1 de outubro, mas a homenagem só veio agora. Antes tarde do que nunca. Te amo, Marinovicz. 

Ana Ribas


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PERDIDOS E ACHADOS
ANA MARIA RIBAS.






A solidão pode ser tão desamparada quanto um cachorro que brinca no parque com uma bota velha. A solidão do cachorro, da bota e dos seres humanos é sempre desamparada. Até mesmo no supermercado, a solidão é uma condição desamparada. 

Vê-se lá uma mulher com um carrinho cheio de compras, arroz feijão, óleo, macarrão, carne e pão, mas a condição desamparada não revela a fartura, revela a fome. 

O alimento não impede a solidão. As pessoas em volta também não impedem a solidão. Nem mesmo o amor mais profundo impede a solidão. Há um estado de ser só,  que se manifesta como um horrível dever. O dever de casa, e o dever da escola, e o dever do trabalho, e o dever do culto, e o dever de existir no mundo, todos eles comportando  um único maior dever – o dever de existir de maneira solitária. 

Então, foi assim: ela passou por mim e eu estava lendo o rótulo de um alimento. Ela fingiu que não me viu e eu fingi que não a vi. Numa conclusão precipitada alguns poderão dizer: “fingimento”. Outros mais benevolentes dirão: “ dissimulação.” Mas não. Nem fingimento, nem dissimulação, apenas respeito por outro ser idêntico. Da forma como um ser deficiente de qualquer eficiência respeita outro ser deficiente da mesma deficiência. 

Há que se respeitar a solidão de outro ser solitário com a reverência dos que conhecem a solidão mais profunda. Poderíamos ter-nos cumprimentado da forma como fazem os seres repletos de vida coletiva. Mas o que faríamos com nossas frases sem miolo, ôcas, vazias de significado? Seríamos apenas sociais. E os seres portadores da síndrome da solidão mais profunda não podem ser resumidos a uma condição meramente social. As palavras para nós precisam ter sangue, e ter gemidos, e ter dores, e ter ais. Porque assim vivemos. 

Por causa disso, eu a deixei ir embora, lentamente, empurrando o carrinho pesado da sua solidão. Fui para a fila do pão. Encontrei Reinildes que não sofre da síndrome e, com ela estabeleci a mínima compreensão. Que me resultou em grave aprendizado: aprendi que se pode comprar pão francês e conservá-lo no freezer. Que bastam 15 minutos fora do freezer para que o pão fique fresco como novo, reassumindo a sua crocância original. 

 Nem sempre a solidão é um bom negócio: conversando a gente aprende e se entende. Mas para quem sofre da síndrome da solidão mais profunda, a comunicação só se faz no laço. Ou na fila da padaria. Que lindo deve ser Olivier Anquier fazendo pão com aqueles olhos verdes que parecem sinalizar um caminho aberto para vida.  Mas ainda prefiro Albert Camus com os seus olhos tristes, que parece não fazer nada.  

Dali voltando para casa, com um saco de pão que dará para alimentar a casa toda, a semana toda, encontrei o cão. Meu Deus, que foi aquilo! Um cão brincando no parque com uma bota velha.

 Eu não aguento um cão que brinca com uma bota velha. É demais para mim porque são duas coisas que me enternecem muitíssimo: os cães e as botas velhas. 


Ele estava diluido no verde do gramado e a bota estava pendurada na sua boca.  O carro já estava parado e juro que nem fui eu quem parei: foi um ato falho. Os iguais procuram os iguais sem perceber que estão parando diante dos iguais. 


 Olhei em volta e não havia ninguém. Por que não? Por que eu não poderia estabelecer com o cão e com a bota um papo altamente filosófico, digno da solidão de uma tarde de sábado, em véspera do dia de finados?

Eu tinha a  solidão, uma sacola cheia de pães e todo o tempo do mundo: uma tarde comprida. O cão tinha a ele mesmo com a sua barriga vazia e uma bota que ele carregava de um lado para o outro como o seu tesouro. 

Então desci e o contato se estabeleceu. Precariamente a princípio. Ele entendeu que eu poderia querer a bota em troca do pão, e deu um pouco de trabalho para que compreendesse que não, que  eu não lhe tomaria a bota, e ainda assim lhe daria o pão. Que ele poderia ficar com os três: comigo, com a bota, e com o pão. 


 É incrivelmente triste, como até no reino dos animais mais animais, existe o entendimento de que se eu lhe dou alguma coisa é porque vou exigir algo em troca daquela coisa. 

A troca que eu queria era só a partilha de um breve momento. Eu não lhe exigiria muito e nem poderia lhe dar muito.  Seria apenas um momento mágico: um parque vazio, eu, um cão, e uma bota velha. 

Nem houve tempo de filosofar com a bota. O cão com sua natureza assustada de coisa viva, de coisa que tem rabo, foi tomado por um amor desmesurado que não lhe cabia no peito: ele latia. Que não lhe cabia nas pernas: ele tropeçava. Que não lhe cabia nele todo: ele pulava em mim. 


Mas não largava a bota velha. Esperei pacientemente que lhe passasse aquele breve momento de lucidez desamparada. Que  doía. E então ele latia. E então eu esperava. E então ele tropeçava. E então eu sorria. E então ele pulou em mim e eu lhe ofereci o pão. No momento em que viu o pão, ele viu a vida. Comeu e matou a fome, mas a felicidade se lhe perdeu pelo vão dos dentes. 

Um cão sem fome, teve reflexo imediato na solidão de uma bota velha. As coisas acontecem de forma reflexiva, as coisas em sua imensa grandeza. As coisas pequenas são circunscritas, mas as coisas em sua imensa grandeza, são como uma pedrinha atirada na superfície do lago: elas mexem com o lago todo. E depois que a pedrinha já atingiu o fundo do lago, ainda  é possível ver na superfície as ondas. As ondas  em círculos amplificados. Até que tudo fique estranhamente quieto e a vida volte a ser ainda mais silenciosa ali estão as ondas - as ondas em círculos amplificados. 

 Lembrei-me da máquina que estava na bolsa e tirei a foto. A foto mal tirada, escura como o dia escuro, que registra o momento, mas não registra a crueza do sentimento. Sentimentos são invisíveis, as fotos não revelam sentimentos. Apenas o olhar pode nos trair, e revelar o que se quer deixar oculto, mas o sorriso está ali para disfarçar e então uma coisa confunde a outra e nesse mundo de confusões ficamos todos devidamente confundidos.

Que para isso também nascemos: para não ser exageradamente óbvios. 

 Olhei os dentes dele, do cão: eram branquíssimos, novos, sem tártaro - um cãozinho menino ainda. Que terá muitos dias de solidão pela frente. Muitos dias sem pão e sem bota. Mas com uma vantagem, em relação a nós os humanos muito humanos: o cão não tem consciência do quanto a vida pode ser comprida. E cruel.

O que pensei depois não pode ser contado em palavras. Porque o que pensei depois, não depende de descrição, mas de elucidação. E elucidar é muito mais do que escrever. 


Ana Ribas


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ENQUANTO HOUVER AMANHÃ.
ANA MARIA RIBAS






Estou conseguindo atravessar a tríade dia das bruxas, dia de todos os santos e dia de finados. Eu sempre consigo, pela graça de Deus. Faço uma ponte sobre o abismo, e chego do outro lado, com a consciência mais iluminada pela súbita aparição de Deus. Deus sempre me aparece usando alguns de vocês para dar o ar da sua graça. Quando Ele quer me dar a graça inteira, Ele vem sozinho. 

A cultura religiosa despersonaliza o homem quando institui um dia dedicado a todos os santos e quando pensa que santo é apenas aquele, ou aquela, que após ter algum milagre comprovado, recebe, enfim, a designação de santo.

Fico muito feliz em poder  lhes dizer que não é isso o que a Bíblia diz. A Bíblia diz que santos somos todos aqueles que entregamos a nossa vida a Cristo e procuramos viver na linha do tempo, dentro dos padrões cristãos – ontem, hoje e amanhã, enquanto houver amanhã.  

 Esse “procurar viver” é um processo de canonização, em vida, e inclui algumas quedas e  ascensões diárias. Quando se trata desse tipo de  “canonização” a santificação não é um  meio pelo qual se atinge o “status quo” , mas é  um fim, no sentido etmológico de fim. Sermos mais semelhantes a Cristo em suas virtudes humanas, enquanto vivemos e nos movemos nesta terra, até o fim, exige uma ampla revisão do conceito de fim. 


Há um fim em cada dia, há um fim em cada decisão, há um fim em cada ação ou reação, há um fim em cada mínimo gesto. Há que se entender e aceitar que a vida é feita de fim,  e se existem meios para o fim, esses são sempre para a finalidade máxima - que naquele momento nos escapa. Que é sempre sutil. Que é simbólica. 


Como todo simbolismo, o fim  é um rito de passagem para um novo começo. 

 Mas quem são os santos, quem são esses que sem o saber, tomam decisões iluminadas de pôr um fim a tudo que  precisa ser finado e pôr um começo a tudo o que precisa ser começado? Porque todo fim pressupõe um começo. Não há nesse mundo orbicular nenhuma sentença abismal de fim: “nada se perde, tudo se transforma.”

 Santos, pois são esses que compreendem o momento de transformar o fim em um novo começo.  O conceito de santo  é mais amplo do que os manuais religiosos nos ensinam. Santo não é apenas aquele que alcança a aura das pessoas iluminadas e responde com enigmas ainda mais profundos aos nossos enigmas mais rasos.  Santo não é apenas  aquele que contempla o céu do alto de uma montanha, sem nenhuma preocupação com a fome que assola o mundo.  Santo não é apenas aquele que se gasta em prol da humanidade, para matar essa mesma fome de pão ou de comunhão. Santo não é apenas aquele que já foi canonizado pela igreja católica e ocupa o seu equivalente arquitetônico nos altares. 

Quando estive em Barcelona, visitei a Igreja da Sagrada Família, concebida pelo famoso arquiteto catalão Antonio Gaudí. Que foi aquilo, meu Deus! O homem, o santo Gaudi, conseguiu criar na terra a concepção mais pungente do seu céu. Aquela construção mágica, que se quer tocar para ter certeza de que existe,  só pode ser substantificada por quem já teve uma mínima visão do sagrado. Quem não teve, não verá a Igreja da Sagrada Família e nem o santo Antonio Gaudí.  

 Santos são todos esses e mais esses: os puros de coração que estão -aqui e agora-  no mundo, quebrando a cara, sem nunca desistir de querer celebrar a Deus com as suas construções verbais, emocionais e conceptuais. 

A palavra “santificado” quer dizer separado e quem nos separa para ser santo é o próprio Deus. O conceito  mais objetivo de santificação a ser entendido está  nos rituais de sacrifício que eram exigidos do povo judeu no Velho Testamento.

 Escolhia-se um cordeiro para ser imolado e o cordeiro era, então, separado dos seus iguais, no momento dessa escolha. Aquele que era separado, instantaneamente, tornava-se diferente.  Depois de se tornar diferente,  seu destino não era mais comum.  


Ser conduzido ao altar para morrer é diferente de estar no pasto para viver. Concordam comigo? 


 Morto o cordeiro, era esfolado, esquartejado e queimado. O fogo que subia do seu corpo,  fazia ascender um perfume  agradável a Deus: um incenso suave. 

Em que momento o cordeiro passara a ser santo? No momento em que fora separado dos outros cordeiros, no pasto. A partir dessa separação,  cada passo em direção ao templo,  tornava o cordeiro ainda mais santo. A santificação em trote lento, aproximava o animalzinho da morte. Mas ele ia, porque era-lhe dado ir. 

Quando o cordeiro adentrava no átrio exterior do templo, a morte estava cara a cara com ele. E mesmo que  desejasse fugir, não havia como fugir: morrer  lhe era uma condição inexorável porque ele fôra separado.

Uma vez separado do rebanho, a sua vida não lhe pertencia mais. Seu destino era ser morto, esfolado esquartejado e queimado: uma parte alimentava as pessoas  mais próximas, e outra parte subia como incenso suave a Deus.

Hoje o conceito de santificação ainda é o mesmo. Santo é aquele que é separado, que não segue a corrente do mundo. Mas isso ainda é pouco, se lhe exige mais. Santo é aquele que anda em direção contrária aos seus sentimentos. 


Porque todo homem anseia por liberdade. Ser livre é a meta e a necessidade básica de cada um de nós. Mas a liberdade humana tropeça na cruz de Cristo. O Cristo  que,  desejando não morrer naquela cruz, ainda assim, deitou-se, estendeu os braços, e morreu. Conformou-se à vontade Maior. 

Santos são esses – esses que cultivam a consciência da santidade máxima, adquirida  na santificação mínima de cada dia. Mesmo que o conceito de santidade máxima ainda nos escape, perigosamente, pelo vão dos dedos. Nesse sentido, todos os homens são santos. 


Nesse sentido, eu quero saudar a todos nós, no dia de todos os santos.   No calendário cristão  foi ontem,  mas  no meu calendário sempre será ontem,  hoje e  amanhã, enquanto houver amanhã. 




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O CAMINHO MAIS CURTO. 
ANA MARIA RIBAS. 






O caminho mais curto para o coração é o amor. Não há como viver prescindindo do amor. O amor nos mínimos gestos são como gotas de um elixir divino que  traz vida instântanea. Que ressuscita mortos. Seus efeitos não duram muito tempo, por isso o manancial precisa ser inesgotável. Um manancial a que você possa recorrer quando tem sede. 

No Natal, na Páscoa, no aniversário, nas datas comemorativas de maior significado, recebemos doses exageradas de amor e esquecemos de tudo: só o amor nos contempla com nossos olhos baços. 

Quero registrar o meu amor incondicional, nos 365 dias do ano pelas seguintes pessoas maravilhosas da minha vida, sem muitas maravilhas: Lourdinha Farinazzo Medeiros, Marcos e Fabiana Bonadio, Cristina e Antonio Mário Piffer, Luciane e Henrique Sass, Cidinha Moré, Douglas Vilcinskas, Marina Bernardelli, Michele Moré, Érica Bueno, Zélia Maria Freire, Tereza Camargo, Claudia Cabral, Jefferson Amaral – vocês se superam na capacidade de me amar. 

E quero que continuem me amando pelo séculos dos séculos, porque amar é bom e eu preciso. Prometo não prometer nada em troca, porque amar é verbo fácil de conjugar e difícil de converter em atos concretos. Mas o amor prescinde de atos concretos. Os atos concretos do amor podem ser guardados para os momentos de celebração, ou quando a situação exija uma maior fidelidade. Quando a “coisa” aperta. 

 Eu não prometo manifestar concretamente o meu amor por vocês, todos os dias da minha vida, mas prometo continuar amando vocês, apesar de esconder e/ou  revelar esse amor na palma da minha mão fechada e dura.  E prometo também não cobrar quando o amor não me vier em borbotões, ou em conta gotas, porque sei que, muitas vezes, Deus precisa nos deixar na solidão para que Ele possa ser o nosso único amigo e conquistar, de vez, um lugar de honra em nosso coração. 

Por último, um carinho especial a um casal(zinho) que eu amo de paixão: Beto e Ni. Beto é, para mim, o símbolo do amor profundo de um homem por uma mulher. Pois ele, dentista no Rio de Janeiro, com clientela conquistada há 1.500 anos, deixou o passado para trás, deixou o mar aberto para conquistar uma enseada: veio morar na pequena Cruzeiro do Oeste, exatamente na última casa, da minha rua. Tudo por causa de Ni- minha amiga Ni- que numa sala de bate papo virtual, revelou-se tão femininamente humana e real,  que  a Beto não houve outra condição, senão se tornar genuinamente cruzeiroestano- por amor a Ni, e à nossa cultura interiorana. Azar das cariocas, sorte da Ni.   E lá já se vão, 5 ou mais anos, - faz tempo, hen?-  que ambos vivem uma história de amor quase impossível.

 O amor de vocês Beto e Ni,  me soa tão belo quanto um conto de fadas: eu nunca vi dois pombinhos que gostam tanto de um ninho. A qualquer hora do dia ou da noite, Beto e Ni estão no ninho. Não consigo mais achar uma brecha para conversar com esses dois. Chego lá, e vou entrando porque sou de casa.  A porta da casa está sempre aberta nessa enseada de tranquilidade,  mas a porta do quarto está sempre fechada – eis ali o ninho. Muita paixão nem sempre precisa ser tempestade. Eita trem bão. 

 Obrigada por sairem do ninho ontem, para me trazerem esse belíssimo dvd que tem cheiro de infância para Beto e para mim – somos contemporâneos. E na arte como na vida, aquele tempo era, e ainda é, um tempo de sonhar e ser feliz. Seja pois feliz Luiz Roberto, na medida plena da sua felicidade e faça a Ni feliz com a sua plenitude tão plena. 

Foi bom ouvir a linguagem do amor de cada um de vocês. Cada pessoa tem uma linguagem de amor que não pode ser revelada – precisa ser descoberta. Os que descobriram a minha linguagem de amor, terão de volta ainda mais amor. É a lei do retorno e não fui eu quem inventei. 


Ana Ribas


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CARAMELO É DOCE E VOCÊ É AZUL.  





Esta não é uma felicidade impossível. Esta é uma felicidade possível, das boas, com substância cremosa, gostosa, tangível e cheirosa. Um festival de tom pastel inunda a minha alma nesse dia que sempre foi um dia de nada. Mas é porque isso nunca me aconteceu. Nunca, nunca, nunca. Esse dia sempre me encabulou em toda a sua extensão, e por conta disso, meu jeito de celebrar sempre foi tão melancólico quanto o toque de um estadista no monumento aos mortos. Da mesma forma como se celebra o Dia do Soldado Desconhecido, eu sempre celebrei esse dia -com certo distanciamento filosófico existencial. 


Muito antes d.P.! Muito antes. 

Mas hoje quero celebrar algumas pessoas especiais que Deus colocou em meu caminho. Devo iniciar falando de uma amiga que me veio de longe: Claudinha! Como conheci Claudinha? O meio que Deus usou foi o Orkut, mas quando os nossos perfis se cruzaram, na verdade os sinos tocaram anunciando o trabalho dos anjos. Uma grande dor nos uniu e Jesus foi o amálgama. Claudinha, hoje, talvez seja   a pessoa que mais me escuta, sem nunca ter ouvido a minha voz, a não ser pelos áudios que gravei aqui em casa. 
Pois essa moça me faz a seguinte surpresa nesta manhã: me envia por sedex o exemplar novíssimo de um livro esgotado que se chama “ A Louca da Casa” de Rosa Montero. Na capa do livro, uma menininha vestida de côr de rosa é o prenúncio do que me espera, da louca que sou, a cada dia me fazendo mais, sem que a loucura nunca tenha fim. 

  Eu estou como quem sonha. Pego o livro e o aperto contra o peito só para ter a sensação de que já o tenho, mas ainda não quero gastá-lo, lendo nem uma palavra: basta-me saber que esse exemplar  é meu.  Só li a dedicatória escrita com uma letra tão linda que faço questão de mostrar a vocês: 
Depois, como se isso fosse pouco, ela também me manda orquídeas. Eu jamais poderia esperar que Lucibel, em Cruzeiro do Oeste  fosse portadora de  orquídeas amarelas,  com o selo do Rio de Janeiro e o carinho de Claudinha. Assim já é demais. 


Olhem o cartão que sugestivo. Esse cartão foi onde mais Deus falou comigo: 
Claudinha, nesta manhã, você me fez muito feliz: pelo livro que eu queria tanto, e tenho agora em minhas mãos, como jóia preciosa;  pela orquídea amarela,  que está enfeitando a minha sala;  e principalmente,   por você existir em minha vida e compreender a minha essência -  por interpretá-la tão bem, e ainda me amar:  com todos os meus defeitos, com todas as minhas fragilidades,  e com todas as minhas angústias existenciais. Obrigada por não acreditar quando eu me finjo de forte, e obrigada por não esquecer que " quando sou fraca, aí então é que sou forte." 

 Peço licença para terminar com as palavras que você me dedicou e que, para mim são um prenúncio de tempos:

“ A impossibilidade ao homem é a possibilidade para Deus. Tá aí o seu livro esgotado.” 


E tá aqui o meu coração, gelatinoso e derramado. Que Deus a abençoe. 


Ana Ribas


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EU MEREÇO






Hoje, já não ganho mais tantas flores. As poucas que recebo parecem ter um significado mais profundo. O que não impede o sentimento de inadequação- comemoro ou não comemoro? Jantamos à beira da piscina ou jantamos à beira da televisão? 
Nossa, esqueci que hoje irei jantar sozinha: é dia de reunião do Rotary Club, em nossa cidade. Quem me mandou fazer aniversário em dia de reunião de Rotary Club? 


Jantarei o que sobrar do almoço: se sobrar. E se não sobrar Eliane Vendramel me manda aqui em casa um sanduiche X Tudo lá da Lanchonete do Parque.  


Mas também não é bem assim. Dia do aniversário, é dia de comemorar. Fui buscar nas fotos o que comemorar. E claro que encontrei.Essa foto foi tirada em nossa Lua de Mel. Estávamos a caminho de Porto Alegre e passávamos por Torres, já no Rio Grande do Sul. Um frio tremendo. Um vento de lascar. Ele tirou o casaco e deu para mim. Isso ainda se faz? 


O que sei que ainda se faz, o que sei com certeza,  é assim como aconteceu hoje, em uma data especial: 

Logo cedo, Ivo saiu trabalhar às 5 horas da manhã, deixando-me, sob a mesa do café da manhã,  a primeira flor: 


“ Salve 31/10 – Exatamente há xx anos Deus predestinou-me uma bela jovem para ser minha adjutora, amiga, companheira, amante e também a mãe dos meus filhos ( e porque não dizer agora, avó dos meus netos), aquela que tem me ajudado a atravessar o mar desta vida. Portanto, bendito seja Deus que na sua infinita misericórdia me premiou com você. Os meus agradecimentos também ao Sr. Ribas e a dona Maria pela bela iniciativa de tê-la feito, e edificado com o estôfo das pessoas íntegras. Parabéns pelo teu dia, muitas felicidades – te amo, um beijo, Ivo.”


Na primeira flor do dia, aqui nesta parte do sul, já sinto a responsabilidade do perfume. Um perfume é feito para perfumar. Ivo invoca como testemunha da  minha missão de perfumar, primeiramente o próprio Deus, depois nós dois enquanto casal, depois meus filhos, depois meus netos e por último, meu pai e minha mãe que já foram desta para melhor.

Esse Ivo é danado! Ele sabe que fazendo isso, terá de volta um amor ainda mais devotado. 


Essa foto também foi tirada na mesma viagem ,ao sul. Estávamos em Itajai e era a primeira vez que eu ia para o sul do sul. Todos os anos, fazemos uma viagem ao sul. Não por romantismo, mas por hábito, por conveniência, porque estamos acostumados com balneário Camboriu e  com o perfume das flores do sul.

Ontem revirei as fotos mais antigas para digitalizar a minha história. Estou montando o acervo enquanto me está fresco o brinquedinho da multifuncional que comprei no país vizinho. E aqui, está o princípio do resultado da minha história digitalizada.
Esse foi o jantar da “formatura” do segundo grau. Eu sou a do meio, levantando um brinde,  e só tenho noticias da primeira à esquerda, que é Lenita Losiuk. Não sei por onde anda Wanderlina Salmazo, não sei por onde anda Carminha Amaral Marques, não sei por onde anda Watfa Abou Chami. Mas tudo bem, a nuvem anda, a vida segue e eu nem quero mais saber de vocês. Devem ser agora respeitáveis senhoras fazendo tricô para os netos. 

 O que eu quero mesmos saber, é quem são esses três fantasmas atrás de mim. Reparem na foto: há três vultos de mulheres posicionadas bem nas minhas costas. O que é isso? Alguém faz idéia do que é isso? A parede é metade de madeira, e metade de alvenaria.  Na foto original não se vê absolutamente nada, só depois de digitalizada é que aparecem esses vultos brancos. 


Enfim, como se não nos bastassem o assombro do mundo dos vivos, tenho eu agora que me preocupar com o assombro do mundo dos mortos?  O que é “isso?” Alguém que entenda “disso”  pode me dizer o que é “isso”? 


O texto  de hoje tem matéria santa e matéria profana. Quem quiser enxergar matéria santa, verá matéria santa. E quem quiser enxergar matéria profana terá até fantasmas para interpretar e compor a versão escrachada.

Mas a verdade é que a  vida é feita de instântaneos coletivos, de "flashs", de cheiros, de sons, de sabores,  de paisagens que se eternizam na memória, de valores que compõem a história. 


 E hoje, além de tudo,  é o Dia das Bruxas. Feliz dia das bruxas para todos vocês.  


Ana Ribas


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