Crônicas 08

ACONTECEU COMIGO... E FOI ASSOMBROSAMENTE REAL!

Começarei lembrando que o caminho que levava àquele Hotel Fazenda era invisível para quem estivesse na auto-pista. Para encontrá-lo havia que pedir informação e assim, desviei-me por um povoado minúsculo, tão minúsculo que quando se pensava estar começando, já estava acabando: uma única rua desembocava no contorno da pracinha. Parando o carro, dirigi-me a um grupo de velhinhos que - se de algum assunto falavam- logo se calaram, intimidados pela proximidade invasora: Meu carro era uma nave, e eu um E.T, na calmaria de uma rua adormecida.
Enquanto me aproximava dos habitantes da terra, - daquela meia dúzia de anciãos indefesos, desamparados e emudecidos, - veio-me à lembrança um filme em que uma cidade ganha uma guerra e desaloja o invasor, com a hostilidade do silêncio...Como naquele filme, tão profundo era o sossego que se pássaros cantassem, seria um insulto à disciplina do dia, à muda ordem que comandava na sombra. Por isso, com a voz mais suave que encontrei dentro de mim, eu disse a eles “Bom dia” temendo violar algum voto de silêncio. O espanto seguinte veio com a súbita explosão de vida: renunciando simultaneamente à imobilidade da pedra, os seis habitantes da Pasárgada terrestre, responderam em coro “Bom dia”.
Então, porque o mundo acordou, indaguei do caminho para o hotel, esperando, pacientemente, qual deles responderia. Após um novo silêncio consensual, o homem que me pareceu mais velho levantou-se, equilibrou-se precariamente sobre um bordão, deu dois ou três passos hesitantes em direção à rua, com mão trêmula mostrou o rumo norte, contou 8 quilômetros em uma estrada de terra, generosamente chamou de ponte uma precária passagem sobre um riozinho, refez retas e curvas de memória, e quando eu pensava que ele regressaria do portão do hotel, ainda atravessou comigo a portaria e sugeriu que eu me hospedasse “no pavilhão da direita porque era o mais novo.” Suas palavras foram tão bem orientadas, sua descrição tão bem sucedida, que entre curvas e retas, minhas fronteiras tinham ultrapassado a geografia que ainda me faltava para alcançar o hotel, e eu já me encontrava lá, contemplando “o pavilhão da direita” onde me hospedaria.
Surpreendida pela inesperada vivacidade, arrazoei se estaria almejando alguma recompensa pelo desempenho da função de “guia turístico” ou se ele me dera tudo quanto sabia por nada... ou melhor explicando, se ele se dera de repente pela percepção de que, sozinho, talvez nunca mais pudesse desbravar um caminho, e então pegara carona no meu carro, no meu projeto, na minha viagem solitária.
Agradecendo, timidamente, eu sorri: acabara de receber não só uma direção mas uma súbita iluminação, feita da consciência de que indicar o caminho, talvez fosse a maneira redentora de fazer o homem sentir-se vivo entre os mortos. E de que, eu, quando ficasse velhinha, haveria de me sentar à praça ensinando O Caminho e o faria com tanto fervor, que até mesmo aqueles que não soubessem estar perdidos, de repente, se reconheceriam necessitados do meu zelo e premidos pela urgência do encontro.
O certo é que, se eu me confundira com a entrada oficial, agora ganhava, além da súbita iluminação, o charme de uma estradinha de terra batida, ondulante e sinuosa, e entre a minúscula igreja evangélica que fechava o povoado de uma única rua e a entrada do hotel fazenda, contei exatos 8 km. Embora não oficial, aquele, sem dúvida nenhuma, era o “caminho da roça.”
O que faz o povo da cidade procurar o caminho da roça? Naquele primeiro dia de hotel, eu me dediquei à possibilidade de tentar compreender porque entre tantos carros importados e entre tantos gostos requintados, as pessoas se faziam, repentinamente, tão devotadas à simplicidade, tão amantes dos baios e dos porcos, tão próximas de galos e galinhas, tão afeitas às amizades dos coelhos e das das vaquinhas, tão íntimas entre a bicharada.
Sem nenhuma possibilidade de compreender as razões e as ilusões irracionais, as incoerências existenciais de súbitos guardiães do reino animal, (entre eles uma mulher loura que, durante o dia alimentava coelhos e a noite se abrigava do frio com um casaco feito da pele de algumas dezenas do bichinho), procurei perceber a avaliação que a bicharada fazia de nós humanos. Enquanto mastigavam e mastigavam o verde pasto da grama que lhes pertencia, o olhar gélido nos permitia saber o que sente um E.T. em férias: um intruso em pasto alheio.
No outro dia, após o café da manhã desisti da tentação de fazer um novo laboratório entre homens e animais tão domésticos. Renunciei à crítica quando me lembrei porque estava ali: Eu havia vindo para ganhar uma batalha no reino espiritual.
Durante três dias, sai do quarto raríssimas vezes. A comida, - diga-se de passagem - deliciosa , vinha à porta, mas o meu alimento por excelência descia do céu. Fui buscando na Palavra todas as promessas que poderiam comprometer Deus e a sua fidelidade para comigo, e enquanto eu as reivindicava, Deus as assinava porque “quantas promessas há de Deus tem nele o sim, e por ele o amém, para a glória de Deus por nosso intermédio.”( 2 ª Cor. 1:20)
Na última noite, missão cumprida, desci para o jantar. Era a última atividade social, a noite que encerrava a temporada da semana que ia de 2ª a 5ª feira... No salão, pessoas deslumbrantes e deslumbradas se ocupavam umas com as outras, já esquecidas de cavalos, porcos e galinhas. Eu, além dos animais, não conhecia mais ninguém. E se durante três dias estivera no “monte”, de repente descer ao arraial dos filisteus, como participante de uma festa, foi para mim tão penoso quanto para Moisés ver de perto o entusiasmo pelo bezerro de ouro.

 Então, porque eu não era do arraial e porque não conhecia ninguém, quando as apresentações artísticas tiveram início, em silêncio, peguei meu carro e tomei o rumo da estrada: Era noite de 5ª feira, certamente haveria um culto na igrejinha que delimitava o povoado e o campo.
Em poucos minutos, virando a curva, ela apareceu toda acesa, luminosa e iluminada no limite da campina. Eu tinha pressa, muita pressa, como se temesse perder o melhor. Pensava que ali, entre irmãos, seria recebida com naturalidade, sem nenhuma ostentação, magnitudes tombadas não pela proximidade de vacas, porcos e cavalos, mas pela consciência da majestade de Deus entre nós.
Mas óh  vaidade das vaidades, quem era eu? Quem era aquela num reluzente carro negro? De onde surgira, como vinda do nada? Seria ela uma sílfide, uma bruxa, uma aparição do além? Quem saberia de que terras, de que portais viera a mulher vestida de negro, num carro negro, na noite negra, emergindo de escuras e coletivas fantasias construídas por uma mistura de histórias do além e pregações apocalípticas mal compreendidas?
Quando adentrei pela igrejinha, num relance me dei conta do insólito da situação : todos os presentes se voltaram ao mesmo tempo para mim, olhos abertos ao espanto do momento, à curiosidade profana... No interior do templo havia umas trinta pessoas, homens rudes, mulheres mal tratadas, crianças des- educadas, sem nenhuma reverência ... Na frente do templo, o dirigente, esse completamente despreparado, sem a mínima idéia de como resgatar a devoção que lhe fora roubada pela súbita e inesperada aparição.
 E eu ,eu que nunca soube direito como ser objeto de muita atenção, vi-me perdida, desamparada, quase magoada. O irmãozinho dirigente pregava alguma coisa sobre o espanto de Moisés diante da sarça que ardia. Mas, se no púlpito, Moisés se espantava com a sarça que ardia, nos bancos, o povo se espantava com a minha presença e ninguém se incomodava de esconder a curiosidade, de disfarçar a perplexidade: todos os olhares, todos, absolutamente todos, estavam voltados para o último banco da igreja onde eu “estatelada” aguardava a alforria, o fim do culto, a liberdade.
Mas aí, algo ainda pior começou a acontecer: Compreendi, subitamente, que, de tanto nervosismo, o pregador não conseguiria contornar a situação. E eu, que quando fico nervosa, posso ter, como na infância, acesos incontroláveis de riso, comecei a morder ora o lábio superior, ora o inferior, e para evitar o inevitável, fechava os olhos como se estivesse em profunda devoção, a Bíblia sobre o peito, o rosto pegando fogo , uma “santa” vergonha me invadindo: a vergonha de estar profanando com a minha presença, a simplicidade do povo da terra.
Numa gramática sofrível, o irmão repetia e repetia, como um disco bolacha enroscado na agulha: “Moisés “sombrou “com a sarça....! Moisés “sombrou” com a sarça....! De quando em quando eu abria os olhos e lá estava, como num filme de Kafka eu olhando para o dirigente, o dirigente olhando para o povo, o povo olhando para mim.... Nada havia mudado no meu terror. Tudo era apocrifamente real.
Então, como eu previra que aconteceria, comecei a rir. Levei a mão à boca e comecei a rir. E continuaria rindo se não fosse a súbita explosão de cólera do dirigente que em alto e bom som falou assim: “ Moisés “sombrou” com a sarça e oceis “sombraram” com essa irmã. E enquanto a irmã não vier a frente falar com oceis, nóis não vai consegui continuar a pregação. Assim sendo, a irmã está com a oportunidade.”
Mais não disse, nem foi preciso. Seu tom de voz, indignado, falava tudo. Mas eu me senti aliviada. Por fim, o pesadelo terminaria em rápidas e poucas palavras: ali do banco mesmo, agradeci a “oportunidade”, falei meu nome, minha origem e meu destino. Mas antes mesmo que eu terminasse, uma voz feminina me interrompeu para perguntar: “a irmã “sombrou com nóis iguar nóis “sombro” com a irmã?”
A pergunta era tão simples e ao mesmo tempo tão complicada. Limitei-me a sorrir e a balançar a cabeça negativamente. Como explicar para a candura dessa alma que eu vivo em permanente assombro, como se me movesse nas trincheiras de uma guerra? Como explicar que meu universo estremece e se desfaz todos os dias, porque viver é muito perigoso? Como explicar que a perplexidade vem das minhas entranhas, de tal maneira que fora de mim nada me espanta e se eu não me assombrar comigo mesma, a cada dia, não me verei como sou?
Não minha irmã, eu não “sombrei” com vocês, eu “sombrei” comigo! Simplesmente comigo....!
Ana Ribas

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QUE SAUDADES DO CÉU!


Há dias em que me levanto com uma estranha nostalgia... uma espécie de saudades do céu.  Nesse dia,  o pão com margarina tem sabor de maná... o azul do infinito parece cintilar de forma diferente... o brilho do sol derrama sobre mim uma espécie de energia cósmica... a voz do jornaleiro é o grito de um anjo anunciando o apocalípse já... nesse dia, em especial,  consigo viver ostentando as asas que ainda não tenho... permito-me ser doce, mansa, santa, terna e verdadeira... ouço, olhando nos olhos dos outros,  e deixo que os outros  me ouçam,  até que os meus olhos falem por mim... ando a segunda milha e ofereço a outra face... piso os pés na terra, sem evitar a lama... como a garça passeia pelo pântano sem poluir as penas brancas, eu me permito afundar na lama, e ainda conservar a alva brancura de Deus... uso asas para agasalhar os  que têm frio... removo a pedra da boca do poço e dou água aos famintos... bebo com eles, no mesmo vaso... troco receitas com a mulher samaritana... subo ao monte Moriá com Abraão... ouço a voz de Deus com Moisés... acompanho Davi  e tomo dele a funda... atiro a pedra bem no meio da cara gorda de Golias...desço à casa do oleiro e aprecio o seu trabalho... acho tudo lindo... não tenho nenhum palpite apócrifo a oferecer... singro as águas de mar revolto com o barquinho da fé... atravesso para a outra banda do lago.... gasto meu pãozinho e o meu peixinho para alimentar a multidão... armo tendas para aqueles que ainda não encontraram casa... beijo o mendigo porque meu cheiro e o dele se confundem com o bom perfume de Cristo... falo ao cãozinho sabendo que toda a criatura geme e chora, aguardando o dia da redenção... aprecio a noite, porque tenho fé na manhã que vem...sorrio para a morte porque sei que ela não existe, para aqueles que estão em Cristo...  Ah, como me sinto poderosa no dia em que tenho saudades do céu... e, ao sentir tal poder, eu me confundo toda... já não sei se vivo eu, ou se Cristo vive em mim...

Bom seria viver assim para sempre... quando penso que consegui, que alcancei esse estágio privilegiado, essa zona limítrofe entre matéria e espírito,  então,  de repente, não mais que de repente,  como num filme de horror, uma estranha força  me puxa para baixo, para as regiões mais baixas da terra.  A aterrisagem é brusca, mas suave. Não chega a me machucar. Caio de joelhos, rosto no pó.  E então me descubro nua, sem maná, sem o azul do céu, sem o brilho do sol, sem tendas e sem asas. Olho e me vejo,  não como sou, mas como estou... Então entendo, que embora meu espírito esteja pronto para subir, e minha alma tenha saudades do céu, ainda sou um ser da terra...ainda sou feita de carne, sangue e nervos... ainda preciso exercitar a elasticidade do corpo e a plasticidade da alma, que ora exerce os atributos da filiação divina, ora os atributos da natureza humana que grita, berra e esperneia. Essa é a luta de cada dia. Essa é a grande batalha. E nela não há vencidos ou vencedores, apenas peregrinos pedindo passagem para a vida eterna. A vida aqui é um ensaio.  Quando é que será para valer?

Ana Ribas

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COTIDIANO FAMILIAR...ALGUÉM SE IDENTIFICA?

Eles estão chegando, debaixo da poderosa mão de Deus, que leva e que trás. A essa hora, as crianças ainda dormem no banco traseiro do carro e, daqui a pouco, começam a acordar. Quando acordam, na melhor das hipóteses, quase metade da viagem já foi percorrida. E aí começa a perguntação: Falta muito? Eu quero chegar logo na casa do vovô Ivo. A cada 20 minutos, a pergunta se repete, e no começo é prontamente respondida. Lá pelas tantas, enche tanto o saco que ninguém responde mais. Aqui a casa é do vovô Ivo, vocês já perceberam. O primeiro lugar no coração, também é para o vovô Ivo. Eu me alegro muito porque o vovô Ivo ocupa o primeiro lugar. Ele merece, ele merece, ele merece... faço coro com a torcida. Quando meus filhos eram crianças, fiz tudo para que a primazia no coraçãozinho deles fosse para o pai. Em primeiro lugar, porque o Ivo é um pai sob excelência. E em segundo lugar, porque eu não fui uma mãe sob excelência. Fui regular. Daquelas que cuidam, mas não lambem. Daquelas que gostam mais de ler do que de contar histórias. Daquelas que não fazem ninho para o coelhinho da Páscoa. E que não sabem fazer uma trança no cabelo... nem colocar lacinho. Daquelas que permitem que as inquietações existenciais roubem o melhor de cada dia. Coisas de temperamento, que, com o tempo, foi-se atenuando. Ou talvez não se tenha atenuado, mas como as demandas maternas ficaram mais diluídas, hoje daria para conciliar tudo numa boa. Mas agora é tarde. Eles já voaram. Por isso, digo que quando aprendi a ser mãe, já tinha idade biológica para ser avó. Danou-se. O jeito é procurar ser uma boa avó, sempre na sombra do Ivo, que continua excelente em sua distribuição de afetos, e funções, como marido, como pai e como avô. Às vezes, a perfeição dos outros é irritante, dessa irritação que surge porque somos confrontados, sem palavras, com as nossas imperfeições. Uma pessoa assim vai deixar um buraco muito fundo, um vazio imenso, quando for morar com Deus. O meu vazio será menor. Pelo menos isso.
Estou numa dúvida gastronômica: Não sei se faço feijão mexicano para o almoço ( comida de gordo), com carne de porco que o Wanderley ama, ou se faço um frango encapado que forma uma crosta por fora, e depois da primeira mordida, descobre-se um creme delicioso envolvendo a carne por dentro... ( comida de gordo também). Essa última receita, aprendi com o Edu Guedes. Ah, que lindo o Edu Guedes, um doce de pessoa. A  Eliana perdeu um excelente pai para os filhos dela. E um cozinheiro e tanto. O Ivo só não é cozinheiro, mas é lindo também. Obrigada, meu Deus, pelo Ivo Guedes que o Senhor me deu.
Eu tenho um excelente pai para os meus filhos e um excelente pai para os meus netos. Olha a sensibilidade desse genro. Veja o que ele escreveu no mural de recados do meu orkut: Estamos chegando. Cheguei agora do Amazonas e amanhã cedinho, antes que rompa a aurora e o orvalho venha a se dissipar tomaremos os rumos do sul. Pode? Não é encantador? Esse meu genro é especial. Quase 11 anos depois, posso dizer, debaixo do sangue do Senhor Jesus, que esse casamento foi uma partitura criada pelo próprio Deus. Obrigada meu Deus, pelo filho que o Senhor nos deu.
E agora,feitas as devidas ações de graças e atribuidos os devidos créditos, o trabalho me espera. Dar os retoques finais na casa, comprar flores, fazer a galinha do Edu e o porco do Wanderley. Porque antes que rompa a hora do almoço e a fome venha a se dissipar, o carro vai buzinar e a alegria vai reinar!

Ana Ribas

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O CISNE E O PATINHO FEIO

Vez por outra, eu me deparo com convites que recebo com muito carinho, mas recuso com idêntica determinação. Quase toda semana, isso acontece. E sempre que acontece, ocasiona um burburinho dentro de mim, um certo ritual perturbador. Começa com uma pressão interna, que logo é abafada pelos meus próprios argumentos. Uma luta no mais íntimo. Uma parte de mim, ainda teima em dizer você tem que ir, enquanto a outra grita e esbraveja você não tem quê nada. Passei tanto tempo da minha vida tendo que ir. Tive que ir, quando era recém casada, quando meus filhos eram crianças, quando chegavam as festas de final de ano, quando surgiam os convites para jantares, casamentos, e acontecimentos sociais, tive que ir como cidadã, como mãe, como esposa. Eu sempre fui, e no entanto, paradoxalmente, nunca fui. Sempre estive presente de corpo, ausente de alma e espírito. Uma pessoa sociável, deve sê-lo na expressão deleitosa da palavra. Não me lembro de ter experimentado esse sentimento. Na infância e adolescência, jamais fui aquela que escolhe estar em grupo, que divide gargalhadas, que aprende as últimas piadas, que senta na fila do gargarejo, que engrossa a corrente do momento. Acabei trazendo isso para a idade adulta. Por que seria diferente no limiar da velhice? Mesmo nunca sendo essa, tentei ser. Fiz o meu esforço. Participei de todos os movimentos que a vida me ofereceu sob o rótulo da fraternidade, fui socialmente e politicamente correta, organizei encontros, jantares, seminários, reuniões, enquanto trabalhadora na área da educação, marquei encontros semanais com o liturgicamente sagrado, e de quebra, ainda me engajei na onda dos que vivem curtindo a vida, de bailes a carnavais. Eu tentei. Tentei como o maratonista tenta ganhar a prova, até gastar o último átomo de energia, em cada célula do seu corpo. O resultado sempre foi um tremendo cansaço. Cansa profundamente ter que viver em função de um grupo social, religioso ou cultural, quando a maré interna teima em escolher a direção oposta ao coletivo. Por isso, quando a vida me deu uma grande rasteira e me jogou de quatro no chão, levantei decidida a me brindar com o direito de escolher a minha forma de viver. Era o mínimo que eu podia fazer por mim. Eu e o Ivo, combinamos isso. Ele me disse que, se possível fosse, me daria o céu, para voltar a me ver feliz. E eu lhe disse, que ele não precisaria buscar o céu, desde que me permitisse viver na terra da forma como me convinha. E eu faria o mesmo, em relação a ele. Fizemos o pacto com muito amor. Muito amor. Um amor que dura até hoje. Um amor feito de paixão, carinho e respeito com a individualidade do outro. Não renunciamos ao amor que devotamos um ao outro, renunciamos à posse que alija, que fere, que abre crateras internas e silenciosas.

Viajei sozinha para muito longe, visitei muitas paisagens. Eu sou uma mulher de paisagens. A paisagem me comove mais que tudo. Um por do sol me fala mais alto do que o grito das vozes de uma multidão. Sou um ser anti-social. O que não significa que seja contra a sociedade. Amo as pessoas, tenho pelos seres humanos uma grande soma de afeto. Eu me dou quando requisitada, mas não me requisito para dar. Não vou em busca do outro, porque tenho consciência de que os seres são universais, mas têm preferências ideológicas. Não creio que sou uma boa companhia para os normais. Mas se o outro me busca, certamente, me acha. Eu não me fecho para o diálogo, desde que o diálogo tenha sintonia com o céu. Meu coração ainda ama o ser humano, mas o céu tem precedência sobre a terra. Dai surge a grande dificuldade. De alguma forma, o ser humano pendeu para um lado e eu para o outro. A minha busca é pelo sagrado. Profano para mim é tudo quanto não me remete a Deus. Eu não aguento viver nem mesmo uma hora sem tocar em Deus, sem mencionar as suas misericórdias, sem render graças ao meu criador. Um discurso que exalta o homem é para mim o bronze que soa. Uma reunião humanística é um címbalo que retine. Experimente ficar ouvindo durante horas, o bronze soando e o címbalo retinindo nos tímpanos e você entenderá como me sinto, nessas ocasiões. Acho tudo de uma inutilidade completa. Graças a Deus, eu ganhei o direito de ir e vir quando me convém. Fui alforriada pelo meu marido, pelos meus familiares, pelas minhas filhas. Até mesmo a sociedade me alforriou. Sinto-me amada pelo povo da minha cidade. De alguma forma, eles me compreendem e me aceitam como sou. De alguma forma, quando quebro o padrão e compareço a um evento,sou recebida com tanto amor que o meu coração se comove. Que mistério! É um mistério que as pessoas normais sintam afeto por um pobre ser espiritual.

Nestes últimos tempos, fomos convidados para ser padrinhos de casamento e o Ivo explicou com a maior naturalidade, que agradecia muitíssimo, que se sentia honrado com a escolha, mas que, infelizmente, a Ana não o acompanhava a festas, a não ser em casos excepcionais. Também fui homenageada em eventos a que agradeci, mas não compareci. Eu não recebo glória dos homens. Fui alforriada. A glória dos homens me faria escrava de uma imagem que não quero mais cultivar. As máscaras cairam. O Ivo, é a minha ponte com o mundo dos felizes e dos satisfeitos. Ele continua politicamente e socialmente correto. Ele vai e,quando volta, volta feliz como o cisne no meio dos cisnes. Eu sou o patinho feio. Somos um casal de cisne e patinho feio e nos completamos em nossas diferenças. Vê-lo feliz, me faz feliz. Ver-me feliz o faz feliz. E dessa forma atípica, vivemos e nos deixamos viver. Cada um na sua e Deus na nossa.
Ana Ribas

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É PRIMAVERA.

Neste ano, eu não sei o que fazer com a primavera. As flores e os perfumes que acompanham essa estação do ano, sempre me trouxeram uma perspectiva de renovação, de renascimento, de mistério e de milagre combinados. Os ciclos de vida me atraem, me comovem, me extasiam com as suas possibilidades mágicas. Nada se perde, tudo se transforma. Nessa época, as árvores estão floridas e os pássaros se exibem em cada galho, inclusive na árvore frondosa da frente de casa. Eu os via- a árvore e os pássaros - e os ouvia também , nessa sinfonia combinada, feita de cânticos, tons, cheiros e paisagem. Porque nessa paisagem viva, a árvore que aportou  junto com a gente, que viu meus filhos crescerem, e meus netos chegarem, essa também cantava. Diversas vezes fiquei confusa, prestando atenção às menores vibrações dessa reverberação de gorjeios. Mas, um dia, descobri, que tal qual uma orquestra sinfônica, cada elemento fazia a sua parte. A árvore emitia os graves, e as aves, os agudos. Na natureza, há uma combinação de causa e efeito que se revela do mais simples ao mais complexo. Sem a árvore, não haveria os pássaros, sem os pássaros não haveria a sinfonia de sons: portanto, a árvore cantava. Nesse mistério de faz de conta, que eu criei como verdade só para mim, a minha árvore cantava. E quando se cria uma verdade, ela existe de verdade. Pode não existir para os outros, mas existe para aquele que a criou. Por conta dessa circunstância mágica, sempre que, em horários pré estabelecidos se arranjava a apresentação, mal os primeiros sons começavam, eu me sentava apressadamente na varanda, determinada a não perder nenhum segundo desse espetáculo digno de anjos. Isso acontecia invariavelmente, no fim da tarde, quando as sombras crepusculares traziam a noite, e no início da manhã, quando as primeiras luzes inauguravam mais um dia. Mais tarde, bem mais tarde, quase madrugada, enquanto a casa dormia, eu me sentava de novo na varanda e respeitosamente, repartia com a natureza, o silêncio. O meu silêncio, feito de suspiros inaudíveis.  Eles que agora dormiam, depois de me brindarem com tal sinfonia,  não recebiam  nada além do meu silêncio.
Sempre digo que repartir o silêncio é privilégio de poucos. Quando se tem um amigo, um amigo de verdade, a coisa mais importante a fazer é experimentar repartir o silêncio. Essa é a prova da verdadeira amizade. Uma amizade que passa pelo teste do silêncio, sobrevive para além dos momentos de alegria. Tive uma amiga, uma única amiga, que repartia comigo o silêncio. E tive a árvore da frente de casa, e os pássaros que em seus galhos dormiam . Eles também partilharam o meu silêncio feito de dor, saudades e lágrimas. Como testemunhas mudas, viram-me elevar os olhos para o alto, contar estrelas, e perscrutar a lua, em busca de um sinal do céu. É incrível como na hora da dor mais aguda, o céu pode falar. Mas hoje não quero falar do céu, hoje quero falar da árvore. E da primavera. E do Deus que chamou à existência árvores, aves, eu e a primavera.
Neste ano, com a primavera chegando, eu não sei o que fazer com ela. Quase no final do verão, o Ivo me disse, com voz grave, que a nossa árvore estava condenada. Embora linda e majestosa por fora, por dentro não tinha mais vida. Chorei muito. Chorei até abafar com soluços a voz da moto serra que, furiosa e implacável, rugia lá fora. Foi-se a minha árvore e com ela os meus pássaros. Foram-se os meus amigos e companheiros da madrugada. Foram-se os músicos celestiais que me traziam um pouquinho de alegria a cada anoitecer e a cada amanhecer. Mas não me foi a esperança, a fé e a certeza de que Deus tem cuidado de mim.
No outro dia, recebo a visita de três servas de Deus. Elas aparecem como se não fossem mensageiras do céu. Guardaram asas, por um momento. Com um violão na mão, pedem licença para louvar. O primeiro hino escolhido por elas, é uma passagem bíblica, cuja letra diz o seguinte: porque há esperança para a árvore, pois mesmo cortada ainda se renovará e não cessarão os seus rebentos, se envelhecer na terra a sua raiz, e no chão morrer o seu tronco, ao cheiro das águas, ao cheiro das águas brotará; e dará ramos, como a planta nova, ao cheiro das águas.
Se Deus cuida das árvores, não cuidará de mim? Ele é fiel: mandou-me o cheiro das águas e me fez brotar de novo. Como a planta nova, os meus ramos estão aí.

Ana Ribas

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ESCUTATIVA


Eu participava de um encontro com profissionais da área de saúde, cujo objetivo era implantar um projeto de combate ao tabagismo. A cidade era Curitiba, o local era um hotel. Em paralelo, vivia um momento particularmente reflexivo que emprestava uma certa gravidade a todas as situações. No transcorrer daquelas palestras, muitas dinâmicas eram colocadas em prática, todas inspiradas em filosofias de auto-ajuda, cheirando a incenso e Nova Era. Foi assim que, numa manhã longa e sem atrativoS, dirigi a Deus uma oração silenciosa. E nessa oração, perguntei ao Senhor: “O que eu estou fazendo aqui?” E o “aqui”, compreendia bem mais do que o âmbito daquela sala de conferências, tão animada, com a contemplação das capacidades humanas, diga-se de passagem, ali muito bem representadas.
Naquela mesma tarde, uma técnica psicológica, denominada “escutativa”, atraiu-me para uma dinâmica que conquistou minha atenção. Aprendi que “escutativa”, compreende a arte de escutar o outro, ouvindo com atenção. Apenas isso.
Foi só um momento de lucidez, mas bastou. Porque aquele momento cintilou, reverberou, e no influxo de divina brisa me arrebatou, para muito além daquele ambiente, daquela sala, daquela cidade, alcançando em segundos a terra de Canaã. E aterrissou ali, no meio dela!
Na planície de Sinear, encontrei a Torre de Babel. Vi que os homens daquele lugar escutavam-se mutuamente, obedeciam a um só comando, e construíam a mais alta torre que alguém poderia imaginar. A torre era feita com tijolos. A cada tijolinho acrescentado, exortavam uns aos outros, com um apelo humanístico, que interpretava o desejo da sociedade laborativa de todas as épocas: “Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre, cujo cume toque no céu e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra.”( Gn 11: 4).
Quando olhei para aquele povo reunido, no âmbito mais amplo de Sinear, identifiquei princípios de psicologia que conjugavam práticas para exaltar o homem e o poder de agregar adeptos a uma causa comum.
Mas quando Deus desceu, para ver a cidade e a torre que os homens edificavam, não gostou do esforço dos seres que criara, para a sua glória, dedicados a uma causa tão inglória. Por causa do que viu, concluiu que não haveria restrição para tudo o que resolvessem fazer. Decidiu, então, confundir a sua linguagem, para que um não entendesse a linguagem do outro. E foi assim, que a capacidade de escutar o outro - a contemporânea “escutativa”- foi substituída, pelo não entender o outro, e a torre eruginosa de Babel permaneceu inacabada, até os nossos dias.
Passado o momento de cintilância meditativa, não pude mais regressar, simplesmente, sem antes, entender as razões pelas quais o Senhor Deus, deixou Sinear sem torre e sem cidade, e espalhou a turba pela terra afora, na mais confusa debandada da história. Na escutativa, Deus me disse que o pecado do homem não está confinado à edificação de uma cidade e à construção de uma torre, tão somente, mas a um projeto exclusivamente humanístico, que o faz eliminar de sua vida, o Autor das histórias individuais e coletivas.
Aqui e ali, sempre acontece uma reedição da Torre de Babel, cujos objetivos podem ser nobres e belos, mas primam pela ausência de Deus no centro, verdadeiros megalíticos pré-históricos, reproduzindo bustos mais atuais e temas mais afinados com a manias desta era.
Bem, e a “escutativa”? A escutativa daquela tarde, alcançou objetivos bem mais interessantes do que a vã psicologia possa supor, em seu desejo de cativar ouvidos moucos para oradores pífios. É que me ocorreu, repentinamente, que eu poderia escutar, no lastro de um vetor celestial, aquele que conhece todas as falas, que interpreta todas as línguas, que representa todos os povos, que esclarece todos os pensamentos, que sintetiza todas as lógicas, que intermedia todas as negociações: O Espírito Santo de Deus. Tenho feito isso, desde então. Tenho-me tornado atenta a um conjunto de interpretações subjetivas, acerca de Deus e dos homens, procurando compreender as razões divinas e também as emoções humanas, refletidas no mais escondido. Porque compreender, não significa, necessariamente, vivenciar os mesmos sentimentos, ou concordar com as mesmas interpretações. Compreender, também pode ser: não vivenciar os mesmo sentimentos, não aceitar as mesmas interpretações, não compactuar com as mesmas omissões e, ainda assim, aceitar as diversidades, conviver com as diferenças, e aprender com elas, o que Deus quer-nos ensinar.

Ana Maria Bernardelli é autora dos livros “Não há Jerusalém sem Gólgota” e “O Vaso, o Tesouro e a Fera, publicados pela Editora Hosana.
Ana Ribas

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O DOMINGO E O VÔO DA BORBOLETA

O domingo sempre volta. Ele insiste em voltar.  Um dilema de gravíssima proporção sempre me atinge, aos domingos: almoçar em casa ou almoçar fora. Tenho preguiça de almoçar fora, e não tenho preguiça de fazer almoço. O problema é que nunca sei o que fazer, além do trivial da semana. Fico buscando em meu restrito cardápio, saudavelmente correto, uma opção que não tenha cara de segunda feira e sempre acabo no arroz, carne assada e maionese. Carne e maionese nem tão saudável assim, mas é domingo e domingo tem que ser exceção. Essa mania de achar que o domigo tem que ser exceção é outra coisa que me consome os neurônios. Domingo é um dia como outro qualquer. Eu não tenho obrigação de descansar aos domingos, até porque não me canso mais durante a semana. Mas quando olho para fora, para a natureza no  jardim, algo me diz que hoje é domingo. Então  pego carona na idéia do domingo e fico meio sem jeito, sem saber o que fazer com ele. Minha incompatibilidade emocional com o domingo é antiga, quase ancestral. Já fiz pão integral aos domingos. Domingo era dia de pão. Já fiz visita aos domingos. Domingo era dia de visita. Domingo, também, já foi dia de levar as crianças ao Tênis Club. Domingo já foi dia de reunir a família em volta da mesa do almoço. Comida de mãe, que delícia! Comida da minha mãe... Mais tarde, domingo tornou-se o dia em que eu fazia aquela lasanha que as crianças amavam, e que agora eu abomino porque me traz  gosto de saudade. Domingo é dia de ruminar. Dia de reminiscências, de lembranças, de fazer nada, de olhar para trás. Eu não gosto de olhar para trás e quando olho para a frente, ali está, de novo, o domingo, uma ameça silenciosa ao meu recém alçado vôo de borboleta, que acontece toda segunda feira. Domingo é uma idéia que guardo a sete chaves na cabeça para não deixar chegar ao coração. O que não me impede a dúvida: almoço fora ou faço almoço?
Ana Ribas

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SIMPLIFIQUEI!

Antigamente, num tempo não muito distante, minha vida era complicada demais. Dessas complicações minúsculas que a gente faz acontecer, apenas por não conhecer uma outra forma de viver. De simplificar. De ser livre.
Eu me lembro do corte de cabelo, que precisava ser escovado, a cada vez que fosse lavado. Isso me consumia pelo menos 3 horas semanais no cabeleireiro. Sem contar que, como o cabelo era longo, as frequentes tinturas exigiam um profissional especializado. Junte-se a isso a sessão semanal de unhas e a sessão mensal de depilação. Simplifiquei: cortei o cabelo bem curto e assim não preciso mais de escovação, aplico a tintura em casa, numa cor muito próxima ao meu tom original - apenas para cobrir os fios brancos- e a sessão mensal de depilação foi substituída pela velha lâmina de barbear. Eu sempre pensei, como todo mundo pensa, que esse método de depilação engrossa os pelos. Tolice, não engrossa. O que acontece é que, como a lâmina corta os pêlos pelo meio, e não pela raiz, quando nascem ficam espetados por uns dias, e parecem ter vindo mais grossos. Não vieram. Estão tão macios quanto eram, quando nascemos. Experimente deixar crescer e se verá a pelagem macia. O que acontece é que ninguém deixa crescer para conferir. Soube disso quando fui fazer depilação a laser, na virilha. Fiz amizade com a médica. No meio da sessão tortura, perguntei se ela fazia em si a depilação a laser. Ela disse que não, que não via nenhuma dificuldade em passar a lâmina, todos os dias, debaixo do chuveiro. E para completar, deu-me uma aula, para que eu entendesse porque os pelos não engrossam. Fiquei muito grata pela informação e nunca mais voltei. A sinceridade lhe custou a cliente. Até hoje a secretária me telefona convidando para fazer novas sessões, mas é tarde: jamais vou deixar de ser cliente da Gilette do Brasil que é barata, não dói, e não encrava. Simplifiquei: de tudo isso, agora só manicura e pedicure. Por enquanto.
Também simplifiquei o estilo de roupas: calça jeans vai bem com tudo. Troca-se a blusa por um tecido mais ou menos elaborado, conforme a ocasião e dá para ir do supermercado ao cinema, do trabalho a um jantar. Como não vou nem ao cinema , nem ao jantar, fico só com o trabalho mesmo. As ocasiões especialíssimas são raras, quase não vou a esses eventos. E se preciso mesmo ir, apelo para um curtinho básico. Aboli os conjuntos de linho, as calças sociais, os vestidos de seda e os vestidos longos que mofavam no armário, esperando a próxima ocasião. Doei peça por peça. Meu guarda roupa de 18 portas ficou vazio. Que alegria ter um guarda roupa vazio para guardar nada. A alma, esse compartimento tão carregado de inutilidades, está realizando o processo de desapego que a sabedoria recomenda. Toda vida tem um Apocalipse e o meu já começou.
Simplificado também foi o cardápio da mesa nossa de cada dia: arroz, feijão, carne, salada e verdurinha quente. Que delícia. Variedades, só circunstancialmente. Antes todo dia era dia de orgias gastronômicas. Nunca fomos obesos porque a genética colaborava. Mas que era uma comilança e tanto, isso era... Cheguei a ter uma pessoa só para cozinhar. Hoje, a cozinheira sou eu. Amo ser a cozinheira da casa. Amo o cheiro do café passado na hora, o feijão que eu tempero como ninguém, a saladinha verde cujas folhas eu escolho. Cansei de comer o que os outros escolhiam. E entre comida de atleta e comida de gordo, fico com a de atleta. Sorry.
Simplifiquei. Um pouco por contingências econômicas, um pouco por desencanto, um pouco por sabedoria, um pouco por lucidez, um pouco pelo espírito, e tudo isso, somado resultou em uma opção de vida mais leve, mais arejada, mais despojada. Com a simplicidade, tudo ficou mais simples. Sem frescuras. É uma ironia: quando se aprende a viver está quase na hora de morrer

Ana Ribas

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MARINALVA

Se ela tivesse outro nome qualquer, ser-me-ia mais fácil descrevê-la, porque eu poderia chamá-la por esse mesmo, que lhe assenta tão bem. Assim, se Marinalva fosse Maria, ser Maria seria a garantia da individualidade preservada, do anonimato protegido, porque eu a chamaria de Marinalva. Mas, de tal maneira o nome Marinalva está irremediavelmente ligado à idéia de Marinalva, seja na realidade ou seja na literatura, que assim sendo, terei que invadir os domínios da sua privacidade. Para amenizar essa invasão, vamos chamá-la de Nalva.
Nalva chegou em casa numa 2ª feira de decretada faxina: tanques e mais tanques de roupas, varais embandeirados, pátios empoeirados, ingratas lidas domésticas.
Não fôra eu quem a contratara... na verdade, nem sei bem quem o fizera. Viera substituindo definitivamente uma diarista que eu tivera durante um bom tempo, elas mesmas se sucedendo umas às outras, se protegendo do desemprego, se filiando clandestinamente a um sindicato informalizado, feito de íntima solidariedade.
Mas eu a notei, assim que a vi. Aliás seria impossível não notá-la: Tinha uma cara redonda e boa, que transbordava em grandes olhos de espanto... e os cabelos, recolhidos num coque importante davam-lhe logo a procedência religiosa: evangélica pentecostal. Antes mesmo de perguntar-lhe o nome – que diga-se de passagem não combinava nada com a imagem – ( e para você não se sentir confuso, tenho que lembrar-lhe que o nome combinava tão somente com a idéia), antes mesmo de indagar-lhe o nome, perguntei a que denominação religiosa pertencia e logo obtive a confirmação de que assim, pentecostalmente vestida, viria para minha casa, todos as 2ªs e 6ªs feiras, mangas e melenas longas e assumidas.
Nalva era crente e às vezes fazia-me sentir descrente com o meu cabelo curto e a minha informalidade vestuária, feita de azuis, brancos e amarelos, enquanto ela era toda cinza.
Por intuição eu sabia que ali havia matéria perfeita para satisfazer minha eterna curiosidade sobre o gênero humano, e que nesse contexto ela se me ofereceria, gratuitamente, como modelo de alma castrada pela religiosidade estéril.
Dividindo o seu mundo do meu mundo, mais que as diferenças sociais, havia sempre uma canção: impregnada por uma santidade que me confundia toda ela interpretava com devoção todos os hinos que conhecia, aumentando cada vez mais a fronteira espaçosa e difícil que existia entre a sua alegria e a nossa tristeza. Porque nós éramos tristes: minha empregada e grande amiga de muitos anos, chamada Clarice, recentemente perdera o pai e eu, há muito tempo, perdera o filho e assim, nessa cascata sinuosa que emenda perdas com perdas, vínhamos gastando nossas tardes em sublime e cultivada amargura.
Mas Nalva cantava. E cantando produzia em nós, no princípio, uma fina e sutil indiferença, que foi evoluindo, aos poucos, sem que nos déssemos conta, para uma mistura de desprezo com implicância: incomodava-nos profundamente a sua presença diligente, amável e... cantante como cigarra alegre entre formigas tristes.
Se nós a ignorávamos ostensivamente, a recíproca, contudo não era verdadeira; Ela se gastava toda em atenção, em gentilezas, em prontidão para nos servir. Fazia o chá da tarde muito mais para nos seduzir do que para matar a nossa fome . E cantava.... como cantava!
Um dia, resolvi protestar contra toda essa alegria. Pedi a ela que respeitasse nossos suspiros, nossos silêncios profundos, nossa dor escancarada. Eu e Clarice estávamos de luto! Ao meu protesto, ela respondeu com um discurso simples, poético e, sobretudo, bíblico. Disse-me que Davi não havia chorado a morte do filho recém nascido durante tanto tempo...que ele se lavara, se vestira, comera e louvara ao Senhor. Respondi que Davi também perdera Absalão e que, nessa ocasião chorara pelos dois filhos. Ou já seriam três? E antes que ela me retrucasse com outra passagem bíblica fiz-lhe uma pergunta direta: “Por acaso você conhece a dor de perder um filho?” Para minha perplexidade, Marinalva, com grandes olhos de espanto, foi até a sua bolsa, revirou seus guardados sobre a mesa e de lá sacou a foto de um jovem quase da mesma idade de meu filho. E sem perdão, tascou implacável: “serve este?”
Marivalva, Clarice, eu, e todos os seres humanos... quem nos livrará da maldição do Éden? Graças a Deus por Nosso Senhor Jesus Cristo!


Ana Maria Ribas Bernardelli

Marinalva está comigo há 11 anos e hoje ocupa lugar de destaque em minha casa e em nossa família!

Ana Ribas

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Eu não vivo de Dinheiro.
Ana Maria Ribas Bernardelli.


Não posso escrever só porque você quer. Tenho que escrever quando eu quero. Porque no momento em que escrevo só porque você quer, prepare o cheque - tornei-me uma escritora profissional. Então, fiquem assim, fingindo que gostam de me ler, um pouco, mas sem muita intensidade, senão eu acredito.

E já vou avisando que, durante esta semana, tenho escrito todo dia,  mas na semana que vem, volto a pregar e aí Deus é quem sabe. Se Ele deixar, escrevo aqui fora de mim, e se Ele não deixar escrevo só por dentro de mim.  Mesmo. Ensinar a palavra de Deus é a minha missão maior. É o meu trabalho. Aqui eu me divirto. 

Desconfio que, no Brasil, não se respeitam os direitos autorais do escritor. Desconfio da pior forma possível, da forma em que se tem certeza da existência de uma coisa ruim, mas ainda se quer só desconfiar. Não desconfieis para que não sejais desconfiados, é uma máxima de vida que eu procuro seguir aprimorando a lei do amor.

Eu tive esse sentimento indefinido - chamemos de sentimento indefinido- eu tive esse sentimento  indefinido, que contraria a minha máxima cristã,  quando publicaram o meu livro "Não há Jerusalém sem Gólgota." Nunca tive acesso a números. Se foi editado o que estava ali, não sei. Se foi vendido o que o relatório me dizia, também não sei.  Não havia como estar no contrato - e nem seria possível- que eu conferisse anualmente o estoque. Eu não tinha como adivinhar  quantos leitores iriam à livraria para comprar Jerusalém e sairiam levando o meu Gólgota debaixo do braço. Leitor é tão distraido, nem lê direito o título. Ele quer ler algo sobre Jerusalém, então leva Jerusalém sem perceber que o Gólgota está indo de contra peso. Ele não pagou pelo Gólgota, mas leva assim mesmo. "Come tu este rolo. Na boca te será doce, mas no ventre te será amargo como fel." Deus é um riso até quando fala grosso.

  Não há Jerusalém sem Gólgota é um livro de fazer chorar.  Por que funciona assim: Jerusalém é um lugar para o qual todos desejamos ir. Estou falando da Jerusalém celestial. Só que não dá para você entrar em Jerusalém, sem ter conhecido o Gólgota. Espiritualmente é isso. A cruz é um fato que não pode ser contornado. Geograficamente, para os mais terráqueos, para aqueles que não querem ir a lugar algum, além do cemitério, para esses também não há Jerusalém sem Gólgota. O Gólgota é um monte que está situado dentro de Jerusalém.

Escrevi esse livro para os primeiros, entre os quais, me incluo.

Mas, porém, todavia, contudo, eu não escrevo livros originariamente  para você, eu escrevo para mim. E depois que escrevi para mim, então sim, percebo que escrevi também para você.

 Essa foi uma das minhas maiores alegrias: ver o meu livro distribuido nas livrarias de todo o Brasil. Certa vez, Maurício Rocha, que é escritor mambembe feito nós, e um bom evangelista, foi evangelizar um povo por esse Brasil afora. Foi longe, não me recordo qual estado. Quando chegou lá, não acreditou. Ele que me sabia tão circunscrita aos limites da minha circunscritancidade, ele foi tomado por uma alegria súbita, quando entrou em uma  livraria, de uma capital brasileira, e viu lá o meu livro, o pequeno entre os imortais, caladinho ao lado de outros nomes de peso da literatura evangélica. O meu era o único nome que não pesava. Nomezinho leve, de caipira que ainda sou.

E esse é um grande problema. Não o ser caipira, mas o nome que não tem a mídia, que sustenta o nome, que sustenta a mídia. Isso atrapalha. Os nomes que assinam as obras, pesam mais do que o conteúdo que a obra contém.

 Isso foi em 2.000, a primeira edição já esgotou, a livraria mudou de endereço e sumiu, o domínio do livro voltou pra mim, eu não editei de novo,  porque você - fala sério- você não compraria um livro de uma tal de Ana Maria Ribas Bernardelli.

Ou compraria?

Ana Ribas



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O Duro da Pedra.
Ana Maria Ribas Bernardelli


O primeiro pensamento foi: "está chovendo." E o segundo: "Senhor, protege o Ivo, está chovendo, ele corre, e os treminhões de cana."  E aí já era tarde. Eu devia ter ficado só até: "Senhor protege o Ivo está chovendo." De um susto só, e depois o nada de novo. Mas me descuidei, e aí, já era tarde.

Era tarde, mas também devia ser hora. O sono me tomou a noite toda, e eu nem vi que ele me tomara, com esse jeito de eternidade tombada.  Que acaba, toda manhã,  às sete horas. Vi quando levantei a cabeça do travesseiro, e minha cabeça ainda continuou lá, no redondinho da espuma visco-elástica. Avancei de novo: podia ter ficado só até no redondinho.

Tenho manias de travesseiro e o Ivo já percebeu,  ele que é desligado de caminhos que levam à abstração,  já percebeu. Não acreditei quando ele me disse daquele jeito seco: "Ana você compra travesseiros para recuperar o sono que perdeu."  Compro travesseiros sim, é verdade. Tenho vários, de todas as alturas e tamanhos. Tenho um, enorme,  que me abraça o ombro, a cabeça e as pernas. É verdade. Que perdi o sono não,  não é verdade.  Durmo um outro sono, e só aquele, anterior, foi para sempre, perdido. O Ivo viu! Ivo viu a uva.

 O sono tem  modulações e profundidades: tem o duro da pedra e tem  a leveza da pluma. O que eu perdi, foi a leveza da pluma. Mas também perdido por perdido, truco: tenho que convir que achei um jeito de ser mais alerta. Nesta vida, tudo o que fica perdido encontra um outro jeito de aparecer, sob outra forma.

Esse estado de alerta máximo que se instalou em mim desde 1995 é a minha leveza de pluma perdida. E me faz ver o avesso das coisas, esse avesso que conto aqui, como se fosse o direito. Agora você sabe  porque se percebe tão avessado quando me lê.

Levanto-me às sete horas por isso, porque essa é a minha hora trágica. Tenho dois caminhos:  o primeiro se abre, sem que eu tenha que dizer: abre-te Sésamo.  Abre-se sozinho. O segundo, eu escolho abrir, e fazer todas as coisas chatas que precisam ser feitas, para não perder de vez o fio e a meada da vida.

Sete horas é a hora em que o menino espia o mundo com um olho só, e então vem o segundo, e se abre de teimoso, e tudo fica acordado,  bem acordado no corpo todo.
 O corpo todo imóvel, se fingindo de morto, mas sentindo tudo, os dois caminhos latejando na cabeça, sem necessidade de tomar neosaldina, só a resolução.

Fico com os dois, por alguns segundos: guardo na mente as coisas que precisam ser feitas hoje, porque o pentágono exige de mim que eu as faça; coloco embaixo do travesseiro e guardo, enquanto  vou pelo outro caminho, o caminho que se abre sozinho.

Esse é sempre novo, mas ainda assim eu o percorro de olhos fechados. De olhos fechados vejo os dias que já foram e de tal maneira se foram que, para sempre se forão. ( neologismos sem aspas?).  Vejo as pessoas que, para não me entristecer, disseram: " vou ali e volto já" - e não voltaram. Eu as perdôo só um pouco, porque sabiam que não voltariam, mas conservaram a piedade. Vejo aquelas que não disseram nada e se foram sem dizer nada. Irremediavelmente.  Mas no segundo em  que se foram, cristalizaram. Encantaram. E eu fiquei ligeiramente encantada, porque em elas se fondo (  os neologismos aqui dipensam aspas, não esqueça)- em elas se fondo, eu também me fui sem nunca ter-me ido.

Há tantos anos eu não me movo de mim. É por isso que sete horas é  a hora trágica - a hora em que a minha parte que se cristalinizou precisa voltar a ficar opaca, antes que eu saia por aí mostrando as vísceras. Demora um tempinho mais embaixo dos caracóis dos meus cabelos tanta história para contar de um mundo tão distante.

Deus! Deus é o meu refúgio e fortaleza, socorro bem presente, mesmo na angústia cristalinizada. Deus permitiu que a mulher de Ló virasse uma estátua de sal, e  permite bondosamente a cada manhã que eu volte a caminhar, a viver, a me mover como se movem os seres moventes.

Ser movente. Ser movente em direito civil é tudo o que não é gente e ainda assim,  se move. Deveria haver um direito civil para os bichos porque no nosso, só consta que eles são seres moventes para fim de que, em se movendo para longe de suas casas, ninguém se arvore o direito de deles se aposssar.
Mas não consta que eles são seres com vontade própria. Que eles são uma forma de gente desamparada. Gente desamparada, pobre, sem boca, sem voz, com um rabo que se move alegremente, nessa alegria pura de existir tão puramente.

Os meus bichos esperam que eu lhes seja bicho a cada manhã. De manhã até que consigo. A tarde estou um pouco menos humanizada e não consigo ser-lhes o bicho que lhes fui de manhã.

Às sete horas da manhã, tenho o controle de alguns fatos, mas não tenho de outros. Por exemplo:  ter escolhido que essa hora seja a hora de levantar e então, enfim,  me levantar.
 Quando não valorizo, quando uma sombra escura espreita a liberdade de ir,  eu  penso: como seria, um dia, se me faltassem  pernas? Então digo em alta voz : "Deus obrigada por eu poder ir."

Mas ainda não me vou. Porque só o fato de dizer: "obrigada por eu poder me ir" já se tornou perigoso; desse perigo que é pensar nos  que não  podem e lhes sentir a imobilidade emprestada por um segundo. Cristalinizei de novo. Não era hora de afundar a cristalinização.

Então para terminar de vez é  assim:  acordo às sete horas por causa do meu relógio bio-psiquíco-social.  O bio me chama para a vida, essa vida mais urgente que diz: quero café; o psiquíco por causa dos mortos e dos vivos, que se misturaram em mim, mas ainda se discernem uns dos outros, quando os vivos dizem: "mãe, cadê meu tênis?" e os mortos não dizem nada; e o social, porque marquei - por exemplo - marquei hoje com a manicure às 10 horas para fazer unha.

A vida é um concreto que se abstrai, a voz de fora e a voz de dentro se misturam, e ninguém sabe, só aquele que quer saber. Que faz questão de saber. Para acordar é só deixar a voz de fora falar mais alto. Deixar que os mortos durmam em seu berço e aceitar o fato de que você não é a mão que embala o berço, mas Deus é.

Hoje eu sou um pé que precisa de manicure. Acho feio dizer: vou ao pedicuro! Tão pernóstico me parece ser a palavra pedicuro. Deve ser  por isso que chamam os pedófilos de pedófilos. Porque pedófilo deve ser  parente distante de pedicuro.

Bom dia!  

Ana Ribas



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Devagar eu Aprendo.

Devagar eu Aprendo.
Ana Maria Ribas Bernardelli.


Sou nova no pedaço e tenho algumas dúvidas. Toda sociedade tem regras  e aqui não deve ser diferente. Alguém pode me dizer, por exemplo,  por que cada vez que escrevo um texto falando sobre Deus, aparece logo ao lado o convite para eu me inscrever num seminário? E se falo de Raul Seixas, sou convidada  a fazer meu mapa astral?

Não precisa responder: Desconfio que estão nos usando para vender qualquer coisa, não importal qual.  Eita mundo mercantilizado.

Essa foi fácil né? Agora responde esta: Se quando a pessoa comenta o seu texto  e diz Parabéns. Belo texto. Só isso e vai embora. É para acreditar?

Uma amiga indica a sua escrivaninha para outra, que  tece considerações: Fui enviada por fulana de tal, gostei, volto outras vezes. Significa que  vai voltar?

E se ela não volta, você pode ir até lá: Toc. toc, toc, vim saber por que não voltou?

Você escreve um texto em duas vozes: a voz do cotidiano e a voz interior; esta lhe parece tão bela, enquanto a outra tão banal. Pode acontecer de alguém ignorar a voz de dentro e comentar a voz de fora?

Pode! Essa eu respondo: Pode sim!!! Meu Deus que falta de abstração!

E se eu comentar que falta de abstração não estarei impondo o meu abstrato ao seu concreto?

 O texto tem a assinatura de um colega. Diante de tanta beleza você quer dizer alguma coisa, nem que seja pelo menos um óhhh! mas esse óhhh lhe parece tão pouco  diante de tudo o que foi dito. Como se chama isso? Enlevo, sublimação?

E quando há versatilidade, leveza, originalidade e lhe faltam palavras para dizer qualquer coisa, nem que seja: Vicissitude.
Você pode escrever no comentário: Por que será meu Deus que nunca consegui escrever assim?

Todas as visitas que lhe fazem devem ser retribuidas? Todos os e-mails que você recebe, comentando o que está em cada comentário devem ser agradecidos?

E quando você se empolga na hora de retribuir o e-mail, escreve um jornal contando a sua vida recantista, e a colega responde com três linhas? Como se chama isso?

Essa eu respondo também: Isso se chama da parte que escreveu o jornal eu sou uma burra e da parte que respondeu devagar você aprende.

Ah o mundo, esse mundo tão complicado das relações humanas com as suas variáveis sinceras, delicadas e inqualificáveis. Sem essas últimas seríamos todos banidos porque a vida não é feita só de paixões mas também de vicissitudes.

Vicissitudes: Acabei de pesquisar no dicionário. Significa mudança ou diversidade de coisas que se sucedem. Instabilidade das coisas. Revés.

Será que serve aqui? Acho que serve.  

Ana Ribas



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Ainda não me Contaram.
Ana Maria Ribas Bernardelli.

Fui procurar os tais documentos que um dia foram do meu pai. Pensa que encontrei? Eu também me pensei organizada por causa daquela teoria psicanalítica que diz que todo ser bagunçado por dentro é organizado por fora. Eu sou exceção.

Houve uma época da minha vida, em que  tive uma psicóloga para me analisar: eu me sentia tão chic. Ainda não me acompanhava esse sentimento de ligeira inadequação social, comum aos seres celestiais e, portanto, fazer análise, era uma visão puramente freudiana. Ou sei lá o que eu tenha querido dizer com isso.

 Bom, vou explicar melhor:  só  frescura mesmo. Fazia parte da minha agenda: sim, eu também tinha uma agenda. Mas além do "dolce far niente" eu também trabalhava, que nunca fui puramente de vadiagem.

 Era assim, a sessão de análise,  era assim : -"feche os olhos e imagine um ser vindo em sua direção. O que é que ele diz?
 Ele não me dizia. Era um tormento ter que inventar o que ele me dizia. Mas em compensação, se ela perguntasse o que eu diria para ele a resposta viria rápida:  -"vade retro satanás".
Logo cai fora.

Essa  ordem de hoje é apenas aparente, mas pelo menos já foi diagnosticada. Caixas e caixas que me remetem a um passado distante: ultrassom da gravidez do meu neto que já tem quase 9 anos, cópias de declarações de renda dos anos 90, exemplares do Jornal Palavra do qual fui cronista ( que saudades, chama eu de novo, Orly!), alguns trabalhos da minha vida acadêmica, e só para encerrar a lista por aqui, todos os certificados de batismo da família. Inclusive do meu pai e da minha mãe.

Não achei os documentos. Mas no meio de tantos entulhos, achei coisas preciosas. Além daquelas que me fazem chorar, achei outras. Um caderno amarelado escrito assim na primeira folha:
" Reflexões
       Anotações
             Conclusões
                    Projeções
                       Divagações
                            Sensações
                                 Opiniões
                         
                                    MINHAS E DA HUMANIDADE

                                                             1990/ 1991

Gente, tem coisas lindas aqui, verdadeiros tesouros da humanidade . O único problema é que esqueci de anotar o que era meu e o que era da humanidade. E assim não posso transcrever nenhuma virgulinha de nada que escrevi aqui. Que anta!

  Esta aqui eu desconfio que deva ser de Pablo Neruda porque no ano de 90 eu estava apaixonada por suas palavras pungentes: "Quando você se vende ao rio, tem que gostar do rio."

Exatamente. Eu me vendi a vocês porque gosto de vocês e porque, enquanto escrevo, faço uma obra secreta, tão secreta que nem eu mesma sei qual é. Ainda não me contaram.

Ana Ribas



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Estava escrito assim:

"Não acredito que termine. Nada termina. Para Deus não há fim. Muito bom ler vc Ana.
Maria Olímpia Alves de Mello"

Só Merô, comentou dois de meu textos.
Se eu fosse um celular, os comentários seriam a corrente elétrica que alimentaria a minha bateria. Preciso deles, sou neófita, não na arte de escrever, mas no duro ofício de ficar nua.

Fazer crônica é ficar nua  aqui e para o Brasil inteiro. Mas às vezes reina silêncio no norte. E no sul, e no leste, e no oeste. Então decido firmemente, uma decisão firme que pode ser mudada a qualquer momento, decido que não vou mais fazer voie...- ai meu Deus, como se chama aquela palavra em francês voie... . Não sei, desisto.
Sei o sentido das palavras em algumas línguas, mas não sei escrever. E aqui  ela me seria tão útil, para que só os mais desencanados entendessem.

 Bem, já que não tenho a palavra em francês, vou ter que pensar num jeito de falar em português. Num português que só uns e outros entendam.

Às vezes, eu sinto vontade de só escrever para uns e outros. Uns  da minha cidade, outros da cidade dos outros. Mas que todos esses uns e outros tivessem a simplicidade do cão.
 Do cão que entra no quintal alheio, cheira, sente, toca, revira, fareja, e depois abana o rabo, e vai embora, e se esquece.
 O cão deixa para trás  aquilo que não é dele, mas leva o osso que é seu.
E se encontra mais do que pode comer, sem fome que está naquela hora, enterra a comida e volta, em tempos de barriga vazia.
 Ai, como eu queria que vocês fossem esses tais, que voltassem todos os dias para pegar o meu osso que é seu.
Essa  humanidade mais pura é também um jeito heróico de existir. Toda nobreza é heroismo nesse mundo cão.
 Então, volte logo, será tão bão.

Rebobinemos a fita.

Decido firmemente - uma decisão tão firme que pode ser mudada a qualquer momento - decido que não vou mais fazer.... nudismo não, seria demais.. que não vou mais fazer a exposição da barriga da minhoca, do peito da minhoca, das pernas da minhoca. Vou mostrar só os pés da minhoca.
 E você vai ficar encantada com uma minhoca que enquanto despe os pés, os seus múltiplos pés,  pensa. E logo existe.
Pensando bem acho que já tinha falado sobre isso. Não tinha necessidade de falar mais. Isso só significa que falar não é ficar livre do sentimento que nos detém.

Antes de ler o recado de Merô, recebi outro recado, não tão agradável. Ivo que sai as 5,00 horas da manhã para ir trabalhar em outra cidade, deixou-me na mesa do café, o seguinte:

"Ana
Não esqueça de pegar os documentos do seu pai e os teus, pois acho que vai dar mais certo com os seus do que com os meus.
Ivo."

( E não é que ele escreve certinho essa questão dos "teus" e dos "seus". "Teu" para o que está próximo, "seu" para o que está mais longe). Eu estou longe e ele não sabe, mas o teu, o seu,  e o dele é tudo meu. Tão bom que é pertencer.


Pela manhã, demora sempre alguns  minutos a mais, para cair a minha ficha. Que não cai. Não sei do que se trata.
 Mas o que sei é suficiente. Ai meu Deus!

 Vou ter que mexer naquela caixa que guardo escondendo dos olhos, só para que ela não me invada o coração.
 Tanta coisa ali dentro. Tanta gente compactada em arquivos. Tantos arquivos em PDF.( O que seria PDF?). Tantos sentimentos mal resolvidos. Tantos dias que nunca passaram. Tantas respostas que deixei para depois responder. Tantas perguntas que não fiz.

Esse dias, quis saber como se fazia rosquinha de pinga. Eu tinha a pinga, tinha a farinha, tinha  a vontade, tinha a decisão, tinha o gosto, mas não tinha a receita. A receita da rosquinha de pinga da minha mãe.

 Amor excessivamente represado, são águas que se misturam a entulhos, que se misturam a galhos secos, que vão varrendo tudo em volta, um redemoinho  que volta a ser água,  águas turvas e barrentas, águas sem vocação para nada. Não são águas de beber. Não, em dias em que se tem sede de viver apenas levemente.

 Eu moro bem perto da barragem de Itaipu. Ela nunca transbordou. Só eu.

A verdade é que, cada vez mais, não sei o que fazer com o amor que sinto pelos meus mortos, e a raiva que sinto por mim. Como se chama esse jeito de amar sem ser correspondido? Alguém sabe? Se souber, me falem.
Porque o diagnóstico de uma doença pode começar exatamente pelo nome. Outro dia, conversei com Silvana. Ela me disse que a cura dessa doença sem nome, vem  a ser o substituir o outro pelas lembranças, que são uma outra forma dele mesmo. Que essa cura é um estado. E que estar curada é aceitar que não tenho mais o amor do outro, mas tenho a imagem desse amor. Essa aceitação seria uma forma de se refazer: sem o outro.  Lindo, mas muito metafísico para quem queria apenas um abraço arrochado.

 Deus! Ainda bem: Deus! Deus é o meu refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia. Hoje Ele ainda não me abraçou mas está me esperando.

Eu falava do bilhete que o Ivo me deixou com descrições precisas de tarefas que tenho que cumprir. Se eu não fizer, ele cobra. Tão pouco o que me pede o meu marido Ivo: beijos pro cê, amado da minha vida!
 Daqui umas três horas, ele vai entrar por essa porta e antes de me beijar ( KKKK)... antes de dizer qualquer coisa,  vai falar assim com aquele vozeirão lindo:
 -Ana, você viu os documentos que eu te pedi?
 Conheço a fera. Pragmatíssima.

Tudo começou ontem, com uma visita misteriosa que eu não quis receber. Por que estava escrevendo, claro.
Nalva subiu as escadas, cansada, e me disse que havia uma mulher na frente de casa querendo me ver a respeito de "querimento". Juro que foi assim que Nalva disse, não estou inventando.
 Nalva não está nem aí para palavras complicadas. Ela corta o que quer,  acrescenta o que não quer, cria algo que eu nunca ouvi e espera que eu entenda.
 Disse a ela, meio distraida, batucando aqui no computador, sem levantar os olhos do teclado ( pois que só uso 2 dedos) disse  que mandasse a mulher voltar mais tarde, ou que fosse falar com o Ivo. Isso: que fosse falar com o Ivo.
 Pois não é que ela foi? E agora, sem saber exatamente de nada, começo a perceber vagamente de tudo, que esse "querimento" deve ser mesmo um requerimento para requerer qualquer coisa que está requerendo de mim uma mudança de atmosfera imediata.
Já sinto o frio.

Para Merô, respondo assim: Menina, você sabe que precisei ir lá no "Vem Comigo"  para saber o que é que você acreditava que não terminava, e que para Deus nada tinha fim?  Branco total.

Fui ler o trem de novo. Sabe que tenho dessas coisas? Escrevo tão dolorido que me parece estar parindo um filho. Depois, volto toda hora para lamber a cria. No outro dia, já amanheço parindo outro filho e não me lembro mais do anterior, tão estranho me parece aquele que me saiu das entranhas.

Ah, sim, agora que li, lembrei. Era sobre a crônica que eu escreverei um dia, sobre a Malu Baleia Vidas Secas Mader que habita em cada um de nós. Não sei se terei coragem, ela é linda demais.

 Mas Merô, vamos ao que importa:  Tivemos aqui uma incapacidade involuntária de estabelecer momentaneamente a comunicação. Nossa, que nome pomposo para dizer: eu não me fiz entender.  Deu curto.
Eu disse que não sabia como aquela crônica iria terminar. E você entendeu que eu dizia que não sabia quando Deus me faria terminar. Assim de terminado, de finado: um dia, vou morrer e em morrendo vou terminar.

 Merô, você não tem culpa do mal entendido. É que sou tão dolorosa nos meus textos que quando escrevo: " vou ali e já volto" todo mundo fica procurando uma pista que leve ao não voltar.

Mas eu volto até a última gota. Eu não sou mulher de estar escrevendo, sou mulher de me derramar em gotas. E que elas sejam homeopáticas
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Ana Ribas



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Uma Rosa Vermelha

Quando eu era bem pequena, desse pequena de corpo, já tinha um lado profundamente religioso. Que depois evoluiu, graças a Deus, até chegar nesse jeito que continua evoluindo, graças a Deus.

Anos atrás, vi um homem que é fera no assunto, no assunto de como ser mais próximo de Deus, mas ele me pareceu tão equivocado. E tão deslumbrado. Duas qualidades incompatíveis com. Ele disse que nunca muda, que é sempre o mesmo. Deus me livre de ser sempre o mesmo. Até Raul Seixas, preferiu ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Eu sei que isso você já sabe. Mas tenha paciência, logo vou dizer coisas que você ainda não sabe.

Esse mesmo homem tem um rebanho de 5.000 membros. Uma rebanhada gorda, tenra, bem fornida de carnes e a culpa é do pastor. Porque um pastor espiritual, diferente do outro pastor, do pastor de pasto, nunca pode engordar demais a carne do seu rebanho. A carne tem que ser abatida. Exatamente para que possamos mudar e nos tornar a cada dia, mais semelhantes a Cristo. Não tem outro jeito de evoluir. A evolução espiritual do homem precisa ser marcada pela flexibilidade que possibilita a mudança.

Ainda me recuperava dessa decepção - bem feito, quem manda idolatrar - estava me recuperando, quando mais uma vez ele subiu ao púlpito, e disse assim: “vamos agradecer a Deus, nesta manhã, pela alegria de ter aqui a nossa família reunida.” Eu já estava engrossando o coro do amém, quando ele disparou: "enquanto tantos tem um filho no cemitério." Não pude dizer amém e ali danou-se de vez a minha admiração pelo homem.

Mas não pelo Cristo que nEle habita. Porque se Cristo fosse procurar um homem perfeito, teria que dar a volta ao planeta terra e regressar para o céu tão unigênito quanto aqui chegou. O homem é apenas o vaso que contém o tesouro. Há dias em que ele exibe o tesouro, e nós o festejamos e o chamamos de bênção. No outro dia, para que não se glorie, Deus esconde o tesouro e ele nem percebe que está mostrando o barro, o mais puro barrro. Nesses dias, o mundo fica mais triste. A carne, mais vermelha, na vitrine do cristianismo formalizado. Público para comprar, fila imensa: nunca falta! A mídia, essa não sabe de nada, e nem quer saber. Aqueles que sabem, enganam-se um pouco, nunca têm a certeza, e aplaudem. E Deus, que sabe tudo, sempre tem certeza, e jamais se engana, chora.

Deixa eu trocar o assunto porque senão lhe perco. Descobri, de um jeito bom, que três ou quatro parágrafos falando desse assunto pode ser demais para uns. Mas descobri, de um jeito melhor ainda, que pode ser de menos para outros. E é por aqui que vou me equilibrando, escrevendo cartas coletivas, sem contar com ninguém. Amar é estar disposto a perder, a ver o outro ir embora, sem dizer: dane-se! E olhar o horizonte, perscrutando a volta. Como o pai espera a volta do filho pródigo.

Agora, vou contar uma coisa meio engraçada. Eu faço academia com a senhorita X. Ela levanta 200 kg com as pernas e 20 kg com os braços. Tem um corpo de fisiculturista ou quase. Mas ela tem um espírito, e esse espírito tem sede de Deus.

Faço aqui uma pausa para lhe liberar, porque não vai ter jeito, hoje vou falar de Deus e dos homens. Se a história for triste, vou falar disso. Se for alegre, falarei disso também. Fique sabendo. E se quiser ir por outro lado, vá. Porque eu vou por aqui mesmo.

Então, como eu dizia para uns, a senhorita X tem um espírito que está pedindo para ser habitado por Deus de maneira definitiva, não só ocasionalmente. Eu devia ter percebido, quando ela me disse, exausta, no meio de tantos ferros: - “mas eu tenho uma vaidade que me atrapalha.”

Ela só falou isso. Eu ouvi, mas fingi que não entendi. Ou melhor, não ousei entender. Seria possível que ela estivesse mandando uma mensagem codificada? Seria possível que ela quisesse dizer o que eu estava pensando com aquela frase que disse? Pois ela disse assim mesmo: -“mas eu tenho uma vaidade que me atrapalha.” E enumerou quantas botas tinha, quantos perfumes, quantas bolsas. Tantos! Mas o olhar, esse me pareceu unicamente triste.

Fiquei zonza com a alegria brevíssima que me tomou.Poderia ter falado a ela de Maria Madalena, de Marta, de mim e de outras tantas que, um dia, derramaram o seu frasco de perfume sobre os pés de Jesus. Mas não falei. Logo depois, esqueci. Não sei porque esqueci. Talvez, porque encaminhar uma ovelha para bom pasto, cuidar dessa ovelha, fazê-la crescer saudável, dá trabalho. Sei o trabalho que dei e também sei que sou preguiçosa.

Na semana seguinte, chegou a Sandra. Sandra é minha filha que habita outras paragens. Fomos juntas à academia (que eu já contei: fica em frente de casa). Sandra é uma pastora, na acepção mais plena da palavra. Meio metro de gente ( um pouquinho mais) e uma grandeza tamanha de espírito que envergonha alguns gigantes. Ela é especialista em detectar uma ovelha perdida, limpar, tratar, curar e amar para sempre amém. Aonde chega, as pessoas ficam em volta, ligeiramente encabuladas, sem saber porque, adivinhando a luz, pressentindo o bom trato. Aonde ela vai, vai com ela o amor de Deus. Tão grande o amor de Deus em minha filha Sandra!

Sandra viu a senhorita X. E com seu olhar de raio x viu mais que ferro, músculos e nervos. Antes de ir embora, deixou-me com a missão de entregar uma carta para ela. Não sei bem o que dizia a carta. Mas sei o seu conteúdo: o evangelho em gotas, que, se bem lido e compreendido, teria grande chance de se transformar em cascata.

Cascata que jorrou em lágrimas. Dias depois, Senhorita X me contou: sempre que um homem de Deus, visitava a sua igreja, sem conhecê-la propriamente , apenas vendo-a ali, sentadinha no banco, esse homem profetizava que Deus tinha uma grande obra a realizar em sua vida. Obra para quem não sabe, nada tem a ver com cimento, com tijolo e com palha. Tem a ver com materiais mais nobres: Ouro,prata, pedras preciosas. Pois esses homens – foram mais de um- profetizaram essa obra celestial em sua vida, exatamente como Sandra. Mas o engraçado – não sei se é engraçado, acho que é triste- o triste é que : quando um dos membros da igreja, inconfomado com tal distinção, foi perguntar ao pastor local o que achava dessas profecias, ele respondeu: "imagine se Deus vai usar esse corpão." E riu.

Deus chorou.

Escrevi para Sandra, contando o espisódio, em busca de uma orientação. Afinal, a ovelha é dela. Sandra respondeu assim em sua linguagem de telegrama: “Diga para ela nao olhar para Sambalate e Tobias, quem escolhe é Deus!! Deus escolheu Davi !!! Diga pra se dispor, deixar Deus aparar arestas da vida dela, obra é Deus quem faz, apenas dizer eis-me aqui. O resto é inveja. Pastor que fala isso, nao acredita que Deus muda o homem. O Sangue de Jesus tem poder!!!Deus ama a ... e ponto. “

Concordo com você Sandra. Deus é amor e Deus é um riso.

O texto que escrevi não é exatamente um “Vem Comigo”. “Vem Comigo” é um texto que postei nesta manhã, e que  está sendo, para mim, um aprendizado de recantista. Talvez o meu texto mais lido num único dia, e o menos comentado. Só o Lobo da madrugada deu uma uivadinha básica ( obrigada, Lobão!). Não sei exatamente o que isso significa, ainda sou nova por aqui. Mas quero lhe dizer que não é todo dia que nasce uma rosa amarela no meu jardim. E esta é vermelha para lembrar a redenção de Cristo.

Ana Ribas



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Começa assim: eu orei as 3.30. Sem crase antes das 3,30. Mas não é um conto. É um processo  que começa. É um processo que começa sem começo, porque dura o dia todo. Eu toda oro, sem saber que estou orando. Mas  reafirmo para você: começa assim. E provo para você: Porque Deus que nunca teve um começo  teve um dia que escreveu sobre si:"no princípio."

Acordei nessa hora, sem saber que tinha dormido. Existem dias em que a gente dorme, sem saber que dormiu. Porque dormindo continua sendo acordada. Sendo acordada é um jeito de ser, mas não necessariamente feliz. É um jeito de ser plenamente desamparada, o que também não significa ser infeliz.

Preciso explicar tudo para você, senão você não me entende: Ser desamparada é assim como quando o vento bate no seu rosto, o cabelo entra pela sua boca, e você compreende, naquele segundo, que o vento bate aonde quer, ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Essa compreensão súbita que não é uma lembrança, mas um "insigth", te faz  pedir uma carona, com o dedo em riste,  na liberdade desamparada do vento, como mochileira em beira de estrada: "uhuahua, vamos ver aonde este vento de Deus vai me levar."

Leva sempre para casa. Para casa vamos todos, um dia. Mas quando chegamos nesta casa, ainda queremos uma outra- tão feia nos parece essa nossa! -  E aquela, desafortunadamente, não tem vento que te leve a. Precisa de brisa, aquela brisa que fez Elias espiar pela fresta da caverna para ver Deus passar.

Eu já vi Deus passar. Deus nunca passa, mas para efeitos de contabilidade, Ele passa. Para que nós possamos contar na igreja: "eu quero contar um testemunho para os irmãos." E alguns irmãos desafinados como... desafinados como  nada ( chega de comparação!) para que esses irmãos só desafinados, se ajeitem melhor na cadeira, pensando assim: "lá vem mais um!"

Então, aquele testemunho se torna  a passada número 10.035 de Deus para você. Eu coleciono as passadas de Deus como quem coleciona jóias. As minhas jóias. Tenho algumas aqui da terra, feitas de ouro, que emprestei para uma irmã colocar no prego, porque as prestações da casa própria dela, se tornaram por assim, dizer, impróprias, para ela.  Então, para que não perdesse o teto, perdi, temporariamente, as minhas jóias. Mas também poderia escrever sem medo de ser feliz: perdi definitivamente as minhas jóias. E ainda continuar feliz. Porque aonde estiver o seu tesouro, ali estará também o seu coração.

Como não quero que o meu coração esteja nessas porcarias, abro mão desse tesouro ( irmã, não visite este site, não leia esta crônica, não ouse conjecturar, porque eu te mato e te enterro, como um focinho de porco que não tem jóia). Pensando melhor, acho que focinho de porco não tem tomada, só isso.  Mas o meu não tem jóia.

Perdão, irmã. Eu não deveria te julgar com base em nenhum focinho de porco, porque não julgueis para que não sejais julgados. Pelas minhas palavras posso ser condenada. Pelos meus pensamentos também. As vezes falamos tão lindo, mas pensamos tão sujo. Felizmente, Deus! Deus nos absolve, pelo sangue de Jesus, porque o sangue de Jesus nos purifica de todo pecado. Quem tem o sangue, até pode ter - eventualmente -  esses pensamentos impróprios, desde que confesse depois. Logo depois. Não deixe para depois de morrer, o que você pode fazer enquanto está vivo, porque depois que morreu: babau, já era. Jesus veio para os vivos, não para os mortos.

Jóias. Tenho jóias invisíveis que não me adornam o pescoço. As de pescoço, sempre me foram um tormento. As de dedo, também. O dia em que o  Ivo percebeu que eu não usava aliança, já fazia uns bons 20 anos. Homem é tão desligado, mas quando se liga exige tanto da gente. Tantas perguntas, tantas explicações.  Como as marquinhas da aliança já tinham desaparecido há séculos, e eu permanecera ali, toda pura ao lado dele, compreendeu, de súbito, que a nossa aliança era superior e eterna, porque fôra firmada por Deus. Uma miudeza, daquela mesma aliança que Cristo fez conosco, um dia, não pelo sangue de touros e de bodes, mas pelo seu próprio sangue, derramado na cruz do calvário. As alianças todas nos remetem a Deus. São uma simbologia, entende? Espero que me entenda.

Esse meu Cristo, que é meu dono, acordou-me, as 3,30,  com toda liberdade. Eu o amo e dou a Ele o que tenho de melhor: o meu sono da madrugada.  Ele precisava que eu pensasse por Ele, esssas coisas que estou orando, enquanto penso, acerca da mínima humanidade,  eu que sou o menor dentre os santos. Mas aprouve a Deus revelar Cristo em mim. E por causa disso, também me ponho de joelhos perante Deus e Pai. Mas nessa hora, estou de joelhos, deitada.

 Foi assim que Ele me acordou:  Lá da cama  ouvi o vento. Tentei pegar carona com ele, porque é gostoso, mas o corpo estava pesado e não deu. Tem horas que a gente tem o gostoso de Deus. Tem horas que a gente  tem o não gostoso. Eu já experimentei os dois, mas o duro é quando mistura os sabores. Você sabe do amargo, sente nas pupilas gustativas, mas no fim, deixa um ranço de doçura. O inverso também pode ser verdadeiro, como quando Deus disse a Jeremias: "come este rolo. Na boca te será doce como mel, mas no ventre te será amargo como fel". Deus não engana ninguém, Ele vai logo avisando. Quer comer, come. Não quer, não come.

  Muito cedo eu descobri que  orar não é dobrar os joelhos e recitar uma fórmula. Mas também pode ser. Ore do seu jeito, ninguém tem nada com isso, cada qual tem o seu.  O meu é no claro e no escuro, os joelhos dobrados sobre o peito porque é ali que me bate o coração. Ou marchando pelo quarto, quando preciso derrubar o muro de Jericó. Aquele que Josué derrubou, desse jeito tosco: pondo o povo para marchar em volta.

Foi a marcha ou o louvor  que derrubou o muro? Foram os dois. Lá de cima, os jericoanos estavam assustados com as mandingas daquele povo esfarrapado. As histórias mágicas daquele povo chegaram  a Jericó, bem antes que eles chegassem.  Jericó sabia que vinha chumbo. Como, de fato. Veio.

Sempre que preciso de chumbo, Deus envia do Alto e faz os meus jericoanos virarem pó. Bem, menos, um pouco menos. Porque hoje, Jesus Cristo, que sempre foi o mesmo ontem, hoje e o será eternamente, hoje esse Jesus é pura graça. Não faz ninguém virar pó a não ser que o poeirento faça muita questão.

Deus hoje pega o pó e faz dele os seus filhos e filhas. Nosso Deus é um Deus de uma poeirinha cósmica tão fina. Ai, como eu amo esse Deus!

Hoje Deus faz do jericoano um trabalhador rural na sua seara.

Um trabalhador rural, como o meu guarda noturno. Guarda noturno não é trabalhador rural, mas o mundo é uma aldeia e a minha é bem pequena. Uma aldeiazinha, no meio da aldeiazona. O meu guarda  é o guarda de Israel mas, para  minha vergonha, o Ivo contratou um guarda aqui na terra. Que guarda o quarteirão inteirão e todo mundo comparece na hora do "rachid". Porque não sou chic como o Fausto que tem um guarda para ele, sozinho. Eu morreria de vergonha. Pelo menos, minha vergonha é coletiva  e bem mais barata.

Mas como eu dizia, - ou pensava - ,fui pregar na igreja em que meu guarda congrega. Uma igreja linda na periferia. Céu não tem periferia, óh glória!  Não sabia que ele era o guarda, mas assim que entrei, ele que é levita, de violão na mão, veio com aquele vozeirão, gritando alto para a igreja inteira ouvir: "irmã, eu sou o seu guarda."

Procurei um buraco para me enfiar, mas a igreja do Senhor não tem buraco. Só tem montanha. Subi nessa montanha e gritei mais alto do que ele, para Deus e para todos  ouvirem: "você não é o meu guarda, meu guarda é o guarda de Israel." Acho que magoei o guarda.  Ele sorriu, encabulado e respondeu bem mais baixo: "pode ser". "Pode ser, não. É!" - eu retruquei.

Naquela hora, tive certeza:  fui indelicada. Mas tinha que me dessensibilizar, porque ia pregar. Depois, ele cantou, doído, como cantava Davi, tangendo a harpa depois que Saul lhe arremessara a flecha no peito. Ai meu Deus, esse Saul fui eu! Perdão!  Tão lindo! Não teve jeito: chorei enquanto ele cantava.  As minhas lágrimas pediram perdão por mim. A Deus  e ao guarda.

Que sono, acho que estou dormindo. Mas mesmo dormindo, vou continuar a orar. Não, sem antes, ir até a sala e escrever: Eu orei as 3,30. Para amanhã lembrar de te contar como é  o processo de orar  todo o tempo, o tempo todo, dessa maneira cotidiana, que nem parece oração, mas que é um jeito eficiente de  misturar o sagrado com o profano.

Porque Cristo veio como um cordeiro para morrer pelos nossos pecados e ser misturado ( e ainda assim permanecer único!)  com essa imundície que somos nós. Sentiu algum fedor? Isso é preocupante. Para os que vivem, nós somos o bom perfume de Cristo.

Fui pra sala e não tinha papel . Tinha caneta, mas não tinha papel. Escrevi na cara da Malu Mader, bem no meio da cara dela, escrevi: "eu orei as 3,30" ( sem crase foi, sem crase ficará).  Porque não tinha outro espaço. Logo acima estava escrito assim: "Quem é esta mulher?" Não faço a mínima idéia mas posso tentar descobrir. Voltei e devolvi com letra engarranchada: "Qualquer dia eu respondo."

Então, quando você avistar esse título no bandejão do recanto, pegue depressa  essa bandeja, se quiser saber quem é a Malu Mader que habita em cada homem e mulher desta terra. Malu Mader cinzenta  e poeirenta como a cadela Baleia de Vidas Secas. Nessa foto, até que ela estava bem gordinha. Mas, gordinha ou não,  teve um aneurisma, porque todo homem precisa se lembrar, de vez em quando, que  é pó e ao pó retornará.

Malu Mader fica para outro dia. Não esqueça: "Qualquer dia eu respondo." Vai começar assim. Como vai terminar, só Deus sabe.

Ana Ribas



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Eu queria uma bota preta sem salto, dessas de montaria. Que agasalhasse a minha perna, nesse inverno frio e chuvoso. De loja em loja, fui procurando, sem pressa. Na última, enrosquei. Encontrei uma vendedora, que não tinha a bota que eu queria, mas tinha a persistência chata, que, como consumidora,  não merecia.

Trinta  minutos de marcação cerrada. Percebi a "roubada" logo nas primeiras rodadas de "negociações."  Inútil a vendedora tentar me convencer com argumentos do tipo "esta é linda e quase não tem salto." De um lado,  a inocência dos dezoito anos, e do outro lado, o olhar bem focado de toda uma vida. Só o tempo se encarregaria de fazê-la compreender  que uma mulher da minha idade sabe exatamente o que quer. E o que não quer. E eu queria uma bota preta,  sem salto, rasa, rente ao chão, que em nada me fizesse lembrar a perua que fui um dia. Ponto final.

Ficamos nesse impasse. A moça  não desistia, enquanto eu, desamparada, mas irredutivelmente, esperava que ela desistisse. A cada vez que a moça sumia lá dentro,  em busca de uma nova rodada de botas, eu respirava aliviada e olhava em volta. Espiava o mundo ao redor.

O mundo ao redor. Tão igual, em suas potenciais necessidades. Tão pequeno, em suas mínimas frivolidades. Tão boçal, em suas ínfimas particularidades.  O mundo ao redor escolhia sapatos e bolsas e botas, mas no Iraque, ninguém sabia.

 Ao meu lado, cada mãe com sua filha. Pela proximidade, fiquei observando uma menina espigadinha, toda contrita na devoção da escolha de sua primeira: bota!

- Mãe, essa ficou linda.
- Mas tá apertada. Seu pé é largo.
- Por isso que precisa ser essa, porque aperta um pouco esse largão do pé aqui óh... e colocava a mão sobre o peito do pé.
- Esse pé é igual o do pai - dizia a menina, como se o pé do pai pudesse salvá-la do argumento da mãe.
- Depois você não guenta.
- Eu guento sim, mãe.
- Não guenta, não.

A menina traida pela mãe esperança-perdida,  equilibrava-se precariamente sobre uma bota de muitíssimo mal gosto, totalmente inadequada a  uma jovenzinha franzina. A bota tinha bico fino e um salto com vocação  para gente grande,  que não combinava em nada com a sua perninha longa e fina, de passos hesitantes e  pés voltados em ângulo para dentro.

 Outro impasse, novo jogo de cintura,  dessa vez em triângulo:  a mãe, a menina e a vendedora. A menina, fremindo pela urgência de ser mulher.  A mãe, constrangida por essa vontade precoce. A vendedora, ardente  em cifras.

Percebendo que a parte mais frágil poderia decidir a compra, ela  estimulava - em você ficou linda.
A menina não precisava dessa ajuda para acreditar, ela que via a bota como o seu passaporte para o mundo das mulheres, esse mesmo mundo que nunca lhe parecera tão próximo. E que a mãe lhe negava a entrada. Ai que mundo mal!

Mal porque para cima de mim,  lá vem de novo a vendedora com mais uma rodada de botas "quase sem salto."

 Eu via o salto que ela não via. Via também que, para uma jovem, um salto, para ser considerado salto alto, teria que ser assim mais ou menos da altura das cataratas do Iguaçu. Se as circunstâncias facilitassem, a comunicação poderia ser estabelecida.  Mas, ela do alto das cataratas do Iguaçu, e eu rasinha ao chão, nunca poderíamos  estabelecer o consenso primário  tão necessário nas relações mercantis: uma pessoa quer comprar  uma bota preta sem salto;  outra pessoa quer vender uma bota preta sem salto; mercadoria experimentada, preço justo e acertado, uma parte leva a bota e a outra  fica com o dinheiro. Simples assim.

Não, no caso da garotinha. A garotinha não estava comprando uma bota, ela estava comprando o ingresso ao mundo mágico das mais longínquas claridades, aquele mundo que só ela via, e que lhe permitiria, por fim, adentrar na abstração da sensualidade tão desejada.

 O imbróglio persistia. Mais botas do lado de lá, mais botas do lado de cá. A menina não convencia a mãe, que não convencia  a vendedora. Como ave de rapina que não quer soltar a presa, a moça derramava candidamente o seu líquido mordaz de fel: - Em você, ficou linda.

 Do lado de cá uma mulher  desamparada, sem mãe, sem companhia, sem ter com quem  argumentar a sua verdade mais primária: eu não queria o que ela tinha para me vender, e ela não tinha para me vender, o que eu queria.

 Quando tudo parecia perdido lá e cá, apertei bem a minha bolsa contra o corpo, única escudeira que me protegia daqueles olhos perscrutantes, e disse com a voz mais gentil que pude encontrar:
 -  sabe, na minha idade, a gente quer conforto, não quer saber mais de salto.
Falei tão delicada, que nem eu sei em que profundidade fui buscar em mim a delicadeza que nunca, antes, conseguira encontrar.

 De nada  adiantou. A  alegada pretensa ancianidade não me conquistou a sua simpatia. Mas despertou a minha antipatia. Foi o empurrão que eu precisava para ir embora sem culpa.

Levantei-me de um lado e a mulher, talvez, encorajada, pelo meu gesto,  levantou-se do outro. Agradecemos e saimos, quase ao mesmo tempo, como se pertencêssemos à mesma família. Atrás de nós, duas vendedoras e um chão de botas.

  Na saida eu e a mãe nos entreolhamos, vitoriosas. A menina ficara ainda mais míuda, sem o seu chão de estrelas.

Pensa que acabou? Antes houvesse acabado.

Dias depois, quase por acaso,  bato os olhos em outra vitrine e  encontro a famigerada. Do jeitinho que eu queria.  Entro e compro. Cinco minutos.  A vendedora feliz, me diz: você fez uma ótima compra. Apontou para a caixa e me mostrou a marca: é da Schutz. Por mim podia ser da Swift, a marca de salsichas. Ou da Sadia, a marca das linguiças.  A bota era do jeito que eu queria, ainda que, olhando de longe, tivesse um brilhozinho a mais. Apenas um brilhozinho a mais.

Naquela mesma semana veio o frio que eu estava esperando e coloquei a bota, a noite, para ir pregar. Senti que estava linda e confortável. A minha dobradinha favorita.

Quase na hora da saida, cruzo, casualmente,  com a Silvia que vem chegando:

-Ô mãe, onde cê vai com essa bota de paquita? Nossa, parece que foi bordada a mão. Deve ter sido uma nota essa bota de paetê, hen?

Há palavras que marcam como o ferro ao boi.

Uma nota ou não, continuo sem bota e sem nota. Praga da vendedora.
Ana Ribas



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