Crônicas 2

ENTRE DIZER E EXPERIMENTAR.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 






A vida é uma luta em todos os sentidos. Mas a luta pela preservação da espécie torna-se muito significativa depois  dos quarenta anos. A medicina recomenda que, após essa idade, se façam exames de rotina e a psicologia nos instrui a não nos preocuparmos antecipadamente. 


Mas eu não consigo. Fico adiando até o final do ano os exames que deveriam ter sido feitos no começo e, só quando novembro está batendo à porta e que começo a me mexer para fazer o que deveria ter sido feito em março. 

Esse ano me adiantei em alguns dias e comecei a fazer os exames hoje.  Sendo que ontem, na véspera, já começou o sofrimento, emendado com outro sofrimento, que a vida é feita de sofrimentos, e eu sou uma mulher corajosa, graças a Deus.  

Mas sofro. Primeiramente, sofro porque perco uma parte da minha vida  fazendo algo que detesto fazer. Depois, continuo sofrendo porque os tais “exames preventivos” nada mais são do que um teste de resistência interna. Embora por fora nos vejamos sempre da mesma maneira, por dentro, o panorama pode sofrer alterações a qualquer momento, de forma quase sempre imperceptível. A coisa toda se faz no silêncio do coração e das entranhas. Um dia, você se olha no espelho e se acha tão linda, ou tão lindo,  e no outro dia, a lindeza já ficou só por fora. É assim que acontece. 

Hoje foi o dia de rever Saulo, o radiologista técnico em imagem computadorizada que me atende todos os anos. Rever o Saulo é como pedir uma audiência com Deus. Eu chego lá com cara de contrição, toda mansa, toda frágil, toda olhando para o chão. Então vem o Saulo,  e eu  olho para a cara do Saulo buscando a sua simpatia misericordiosa,  como se Saulo – e não Deus -  fosse o responsável pela sentença que receberei dentro de huma hora. 

  Todo mundo espera para apanhar o laudo dali dois dias – eu também. Eu espero  o laudo para dali dois dias,  mas o resultado é outra história- quero na hora.  Só saio dali depois que Saulo enquadra as imagens contra a luz e me tranquiliza. Nesse momento, eu vejo a luz.  

Hoje o medo foi grande. Enquanto ele examinava a mamografia em uma sala, eu orava de joelhos, na outra sala,  e tanto orei que a chave do carro foi parar embaixo do aparelho que mede a densitometria óssea, lugar onde jamais  seria encontrada, senão fosse a Graciette para tê-la encontrado.  Como a chave foi parar ali, eu não sei. Simplesmente apaguei para o mundo tangível. Na hora que a coisa aperta, a gente passeia com os anjos.  

Graças a Deus, mais uma vez, até outubro do ano que vem. 

 Não sem antes pensar o seguinte: “eu não disse ontem, ou antes de ontem, que não tinha medo de morrer”? Dizer, eu disse. Pois é. Muitas vezes entre dizer e experimentar o que se disse, de maneira impávida, há um abismo que precisa ser vencido. Sempre de joelhos. Até porque morrer se morre de muitos jeitos, e ajoelhada é melhor do que  deitada. 

Então, ficamos combinados assim: brasileiras com mais de 40 anos devem fazer mamografia todo ano, mas ainda não é obrigatório. E brasileiros com mais de 40 anos devem fazer exame de próstata todo ano, mas ainda não é obrigatório. Meu sogro fez  o exame e brindou-nos com uma piada que nunca esquecerei.  Ele disse para o médico, na saida: -“onde fica o cartório que registra esse exame? Porque eu quero deixar tudo bem documentado, para nunca mais ter que ver a sua cara.” Foi mesmo  o último: no ano seguinte, ele morreu. 

Mas a coisa toda é séria e precisa ser feita todos os anos.  Exame de próstata até os cinquenta é opcional. Só depois dos cinquenta menos hum é que se torna obrigatório. 


Ana Ribas


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MUDANÇA DE RITMO.
ANA MARIA RIBAS. 






Eu não sei se revisitei o país vizinho ou se o país vizinho me revisitou. O fato é que voltei ouvindo “Borboletas” de Victor e Léo. Renovamos o nosso repertório de som e vídeo, tudo comprado no país vizinho, com o selo de autenticidade do país vizinho. 


Quando se quer pagar pecados, deve-se começar a preparar a expiação um dia antes, e não reclamar da penitência. O país vizinho é essa espécie de penitência auto-imposta, porque tudo lá é despropositadamente amplificado. O calor é amplificado, a miséria é amplificada, a exploração é amplificada, a pirataria é amplificada, a tristeza é amplificada. O lado bom- se é que existe um lado bom- também é amplificado: As casas de alto padrão tem um estilo “aqui passou D. Pedro e não deu o grito da independência.” No meio da nobreza, nem todos aprenderam adequedamente as mínimas normas de civilidade, mas não faz mal, é “bão”. Para ver se a gente aprende e não volta mais. Mas sempre voltamos. 


Às seis horas da manhã, já estou secando o cabelo para não atrasar a saída. Mas Ivo acorda indeciso se deve gastar, desse jeito, o seu último dia de férias. 
-“Acho que vai chover. Vamos ou não vamos”? 
-“Vamos sim.” Eu já estava quase pronta.


No minuto seguinte refaço mentalmente o caminho, me canso só de pensar, e aí sou eu, que querendo desistir, vou atrás dele: - “Ah, vai chover mesmo, é melhor não ir.” 


Tarde demais. Ele já se programou para ir: - “E daí? Dentro do carro não chove.” 


Apelo para argumentos mais consistentes: - “ o dólar está muito alto, não vai compensar.” 
- “Vamos passear.”
- “Passear no país vizinho?!! Eu quero uma impressora multi funcional.”
- “E eu quero o presente de Natal das crianças.”


Moacir Mazzei quer a nossa companhia e nós queremos a dele. Impensável ir ao país vizinho sem a companhia amiga de Moacir Mazzei. 


Na saída, um probleminha básico: o carro está sem uso há muitos dias, e a bateria foi para o espaço. Tetuchi é arrancado do sagrado recinto do lar por volta de 7,00 horas da manhã e em 5 minutos resolve tudo, mas avisa: “Esse carro está com problema “no rolamento da correia. Não dá para viajar com ele, não”. 


Quem tem autoridade, manda, e quem tem juízo, obedece.


O carro fazia um barulhinho diferente, mas eu não ouço nada. Meus ouvidos estão ouvindo “A Força do Perdão” de Sérgio Lopes. Na ida, ouço Sérgio Lopes, na volta Vitor e Léo. Sou eclética e tenho que ser: acabou a bateria do meu MP4, na ida. E no país vizinho já se encontra o MP10, mas eu não posso jogar fora o MP4 que me serve tão bem só porque a tecnologia está adiantada. 


Ivo e Moacir resolvem não atender aos sábios conselhos do Tetuchi. – “Vamos arriscar?”- ele pergunta virado para mim. Logo para mim que estou ouvindo pouco, com o fone no ouvido. Ivo não é de arriscar nada. Ele quer ir com esse carro porque o espaço no porta-malas comporta com folga uma bicicleta para Paulinha e outra para o Victor- saquei na hora. 


Eu poderia ter ponderado que era melhor não arriscar mas a música de Sérgio Lopes estava me dizendo que a força do perdão perdoa tudo, e resolvo perdoar essa inconsequência: fomos. 


Uma hora e meia depois estamos atravessando a ponte que nos leva ao país vizinho, sem nenhum problema. Combinamos de nos encontrar às 12 horas para almoçar no único restaurante brasileiro. Dessa forma ganharíamos tempo.


Depois do almoço, na hora mais quente do dia, a previsão apocalíptica do Tetuchi resolve se concretizar: o rolamento não rola mais. A correia estoura. O carro não anda. A vida pára a 40 graus centígrados na sombra. O porta malas está devidamente lotado com mil e uma bugigangas. A assistência técnica é precária. O povo não é hostil mas parece. 


Eu entro no único shoping com ar condicionado e vou para a Praça de Alimentação: tinha levado um livro. Nunca saio sem um livro. Ivo e Moacir vão atrás de um mecânico. Que pede um absurdo pela mão de obra. Não há escolha: é pagar, ou pagar. 


Antes, porém, Ivo entra no carro do mecânico, para ir até a loja que ele indica, comprar as peças que são necessárias. Moacir fica cuidando do carro e das compras. O carro do mecânico é um gol novo - com placa de São Paulo. No caminho, o mecânico recebe um telefonema. Fala no dialeto local. Ivo não entende, mas ele explica: “tenho que buscar as crianças para levá-las a escola." Eu teria pulado do carro, mas Ivo segue com ele. O carro avança por ruas e ruelas, até chegar a um lugar ermo: as crianças são lindas, alegres, barulhentas, e parecem felizes. Ivo conhece o carro do mecânico, a mulher do mecânico, a casa do mecânico e as filhas do mecânico. O mecânico é brasileiro e se chama João. 


Ivo não é sequestrado. Moacir não está cozido. Eu não estou aborrecida. 


A tarde passa em câmera lenta. O livro não rola: muita confusão no entorno para uma leitura adequada. Ouço vozes que me parecem familiares mas não são. Eu podia ter ficado em casa. Eu podia ter gastado melhor este dia. Eu podia não ter visto aquele pai brasileiro arrastando a filhinha - que lhe nasceu no país vizinho - numa caixa de papelão. Eu podia não ter tocado naquele cachorro sarnento que me olhou com tanta tristeza, no meio da rua. Eu podia ter economizado o meu dinheiro e ficado sem a multifuncional – já que a outra ainda estava funcionando. Eu podia ter ido à academia como vou todos os dias. Eu podia ter escrito o meu texto para o Recanto. Eu podia. 


Mas se tivesse feito isso, não conheceria Vitor e Léo. Onde estavam Vitor e Léo todo esse tempo? Sei que os brasileiros já conhecem essa dupla há algum tempo. Mas Vitor e Léo foram-me apresentados no país vizinho. 


Às vezes, nos acontecem coisas assim: as pessoas existem há tanto tempo mas nós não temos memória. Só intuição.


* Moacir, Ivo e eu, no país vizinho. 


Ana Ribas


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AS ALEGRIAS POSSÍVEIS. 
ANA MARIA RIBAS. 





 Ontem foi domingo e hoje é segunda feira. Descobri ontem que Albert Camus, o escritor,  teve uma Janine na vida dele. Sou lenta para descobrir as coisas, mas por fim, descubro. Albert Camus teve uma Janine em sua vida, e  eu tenho uma Janice em minha vida, desde a década de 80. Descobri também que Camus tinha uma cara irresistível de galã americano com um jeito de cachorro que acabou de cair da mudança. Eu vi o galã e Janice viu o cachorro. Janice é sempre assim: quer oferecer um dono para cada cachorro sem dono que vive pelo mundo. Mas eu não posso deixar, porque na minha casa não cabem todos os cachorros do mundo. 

Minha Janice é a heroína de uma história que escrevi sob a pretensão de chegar a ser um romance. Mas parei quando descobri, horrorizada, que Janice era eu, e que o fim que ela estava me sugerindo era muito revolucionário para uma época em que Che Guevara já havia morrido.  No começo, tive medo de Janice: era profunda demais para os meus poucos anos de vida. Mas como tenho levado a vida toda para escrever Janice, eu fui, aos poucos, amadurecendo com ela.  Escrevo Janice, no susto, sem pressa. E continuo a escrever.  Sei que nunca terminarei de escrevê-la.  De vez em quando, contemplo a sua alma nas páginas amareladas do meu texto e fico perplexa: como pude descrever Janice antes que todos os dias da sua vida fossem escritos? Como pude imaginar a dor de Janice antes de conhecê-la? Como pude prever para Janice um fim tão trágico, sem nenhum The End? O fim sem fim de Janice é que me assusta. Assusta-me o seu fim sem fim, porque já vivi o seu começo. E se não há meios nessa história de começos sem fim, ainda assim fica-me a pergunta:  como me foi possível criar um personagem que me enternece tanto e que, ao mesmo tempo, me inspira a coragem de estar um pouco viva, em sendo essa que sou? Eis aí um mistério. 

Aos poucos vou publicando Janice por aqui. Já liberei dois textos extraidos da “vida” de Janice. Vou pinçando os textos que quero: Janice é minha! Eu que não sou minha, faço Janice minha.  Mas ocorre-me um problema: eu publico os textos de Janice e no dia seguinte deleto. Janice inspira um estilo muito triste, muito desamparado, e eu não quero inspirar ninguém mais a ser triste e desamparada, porque Deus nos ampara a todos e o desamparo de Janice, de certa forma, afronta a  Deus. 

Mas hoje quero falar de XYZ que escreveu-me ontem “chorando muito.”  Pois olha XYZ a sua história é mais ou menos parecida com a minha história.

XYZ me conta em seu e-mail, que está cansada de ser professora numa escola, todos os dias da sua vida.

 Ela me conta que a sala de aula onde ensina,  tem uma porta. Que essa porta tem uma janelinha de vidro. E que do local onde ela se senta para corrigir cadernos, a janelinha de vidro enquadra o retrato do patrono da escola que foi fundada em 1900 e bolinha. 


Ou seja: o patrono já morreu faz tempo e passa o dia olhando para ela, e ela para ele. Diz-me  XYZ que já ficaram íntimos de tanto olhar um para o outro, e que essa é a única visão que ela tem durante as 8 horas diárias que passa por ali, afora as crianças. 


Mas as crianças, para fins de melancolia são alegres demais e não contam. 

XYZ escreveu-me poucas linhas mas eu estou fazendo um tratado porque sei interpretar sentimentos. Sou uma tratadora de sentimentos profundos. Eu sei! 

 XYZ revela-me, também, que anseia pelo momento de ser um quadro na parede, como o patrono da escola em que ensina. Que a vida tem-lhe sido uma lingüiça comprida. Que ela está cansada de ser mordida pelos mesmos cachorros, todos os dias, e que os pedaços dessa lingüiça parecem não acabar mais;  e que ao mesmo tempo, em que ela deseja que acabe logo, também deseja que a lingüiça tenha um outro sabor. 

E por último, ela me conta que a escola está assombrada com o fantasma do senhor D.G. o tal patrono da escola. Que já chamaram muitas pessoas para orar e que nada parece mudar. XYZ quer saber se o fantasma do Sr. D.G. pode estar causando a sua depressão e me pede que ore por ela. 

XYZ – eu vou lhe dizer uma coisa: Eu também estou assombrada com a vida, e nessa minha vida não há fantasmas, pelo menos não que me façam barulhos de correntes.

 Eu estou assombrada com a nossa capacidade de sermos previsivelmente iguais, sejam os personagens de romances ou da vida real. Eu também gastei 25 anos,  tendo na minha frente um quadro na parede. Não era de um patrono: era de uma patrona, uma grande mulher. Sua vida foi tão santa que ela jamais assombraria quem quer que fosse, a não ser pelos bons sentimentos que inspirou e pelos feitos que realizou. 

Mas não vou fugir de falar de mim, falando dela. Eu me propus consolar você –XYZ- com a coragem de falar de mim, e é o que vou fazer nesta manhã sem mitos. Olha – XYZ - a vida também tem-me sido uma lingüiça comprida. E desconfio que, muitas pessoas que lerem as nossas vidas, nesta manhã de segunda feira, concordarão conosco: que sim, que as suas vidas também lhes são uma lingüiça comprida, com um dia emendado no outro e uma noite ao meio. Porque se não houvesse a noite aí já seria desgraceira demais. 

Às vezes - XYZ - eu me pergunto: Poderia ter fugido da visão patronal e presumivelmente igual, durante cada um dos dias desses 25 anos? E respondo para você: Poderia, sim,  XYZ.

Numa época em que mulher de médico gastava os dias só gastando, eu fui a única desta cidade- e esta cidade me é testemunha- eu  fui a única que escolhi gastar os meus dias fora dos limites do meu castelo, como abelha laboriosa e operária.  Eu acreditei muito cedo que o trabalho liberta mesmo sendo uma maldição. E fui trabalhar para ser libertada. Mas não alcancei com o trabalho a espécie de libertação que procurava. Contudo, essa mínima compreensão não me fez desejar estar nos lugares em que estão as pessoas desocupadas. Muito cedo percebi que a libertação não viria do ter, mas do ser. 

Durante 25 anos eu saí do castelo, todos os dias, para encontrar nas cercanias do meu reino crianças especiais, animais especiais e uma mulher especial: essa que vos escreve.  Eu fazia com que todos se tornassem especiais, inclusive eu. Eu tinha que ser especial para os meus especiais e fui, na medida em que me foi possível ser. 

 Sim, é verdade que havia dias em que eu também encontrava o retrato na parede, e uma profunda melancolia me tomava, e me fazia desejar ser enquadrada, como você tem desejado hoje. Mas uma idéia me demovia da idéia de desejar ser enquadrada precocemente: a idéia de que há compromissos nesta vida que têem um significado maior do os horários que cumprimos, a rotina que desempenhamos  e o vil metal que conquistamos. 

Aguentei firme, XYZ e sabe por que? Porque a única forma de ser livre é ganhando uma visão da eternidade. Uma visão que faça transcender os estreitos limites das prisões em que vivemos, e que nos transporte, todos os dias, para o céu que ainda não avistamos. Que só pressentimos. Que apenas aguardamos. 

A vida – XYZ- é feita de rotinas, seja em Nova York, em Athenas, em Corinto,  ou em Paris. As pessoas se cansam, se enfadam e se comovem com as suas dores e com os seus amores e isso é rotina.  Mas a rotina também nos salva dos delírios megalíticos e da onipotência dos que pensam que podendo fazer, ir,  e comprar tudo, também possam comprar uma única nesga do céu.  Não podem. 

Eu nunca pude tudo e continuo sem poder nada. Mas a minha aposentadoria de professora de crianças com necessidades especiais, é a minha lembrança mensal de que  mereço receber por um trabalho que desenvolvi com amor, com paciência, com persistência e com humanidade, junto às crianças especiais, das quais eu era a mais gravemente especial. 

 Porque a humanidade  de uma pessoa, XYZ , não é medida quando a pessoa se transforma em  um retrato na parede, mas quando ela limpa o retrato com a reverência estampada na cara. A reverência que me moveu durante os anos mais produtivos da minha vida, e que, ainda hoje me move, quando encontro um daqueles meninos com necessidades especiais – hoje homens – e eles me beijam na cara, e seguram em minhas mãos, e me chamam de Ana, e  querem me levar de volta para um passado que não tem volta.  

Olha XYZ: poderia ter sido diferente? Poderia! Mas esse diferente, depois dos primeiros dias, passaria a ser igual a todos os outros dias,  porque até mesmo um dia diferente do outro,  torna-se um dia igual ao outro, nesse  diferente que acaba sendo igual ao outro diferente. Se é que você me entende. 

Eu acho que a visão da sua janela só será ampliada com uma visão divina. Falo isso porque já experimentei outras paisagens, outros povos, outras culturas, e nunca me movi de mim. A coisa toda é essa mesmo. Céu em cima e terra embaixo. Os homens também são os mesmos. As mulheres também são as mesmas. A humanidade que derrubou as Torres Gêmeas, derruba as portas da nossa casa. O verde do Central Park é o mesmo verde do seu Parque Ingá, aí da cidade de Maringá. A gema do ôvo da galinha do vizinho pode parecer mais amarelinho, mas só faz um mísero omelete. Os temperos você continua tendo que acrescentar.

 Há um determinismo fatal que tolhe os nossos passos nesta terra que se chama ética responsável e há uma salvação que move os nossos corações e as nossas almas em direção ao céu e que nos livra da irresponsabilidade de querer largar tudo e voar como voam os pássaros em processos migratórios. Porque até os pássaros quando migram sabem o momento de voltar. E para nós humanos, retirar um pé significa não ter mais espaço para pô-lo de volta. Se você sai, outro- ou outra - entra e ocupa aquele espaço que era seu.  E que não será mais. 

Eu vou te dizer uma coisa XYZ: eu não temo a morte, e nem o fantasma do senhor D.G. Eu só temo morrer sem ter Jesus comigo. Esse deve ser o seu único temor. 

 Fiz como você me pediu: troquei as iniciais do seu nome, troquei a cidade, e ninguém saberá quem é você, porque até eu fiz questão de escrever pensando que não sei quem é você. Mas, uma coisa, quero lhe dizer: mostrar a sua fragilidade apenas lhe fez mais humana. Nesta manhã,  tomei a sua fragilidade para mim: frágil sou! Eu sou XYZ. Quem quiser, também pode ser: é de graça. 

E mais não vou falar, para não ficar outra lingüiça comprida. Mas estarei orando por você -XYZ, para que as tristezas e as angústias existenciais que têm assombrado a sua vida, sejam amenizadas por uma visão celestial e divina. E se algum dia lhe faltar a visão, não se impressione com a repentina noite escura: chore e espere! A manhã sempre volta, o sol sempre nasce, Deus jamais nos abandona e crises existenciais são próprias dos seres espirituais. 

Eu e Janice por aqui ficamos. Se precisar, escreva-nos de novo. Que o sr. D.G. descanse em paz. E que você viva as alegrias possíveis. Janice daqui me diz que  ela também deixa você sonhar com as alegrias impossíveis. Mas só um pouco, tá filhinha? Sonhe sem tirar os pés do chão, que de avião voar é “bão" e eu recomendo American Air Lines. 


Ana Ribas




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UM LUGAR DE ENCONTRO.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.  






O escritor é um construtor de pontes. Como um construtor de pontes, ele une as pessoas que estão de um lado da ponte, às pessoas que estão do outro lado da ponte, e faz com que o encontro aconteça no meio. Há escritores que são como bússolas indicando o lugar exato onde o encontro deve se dar. Esses são bons para escrever, mas não são bons para se dar.

Jesus nunca respondia com lugares marcados para o encontro, Jesus era o lugar do encontro. E foi ele quem disse: “ se não vos fizerdes como crianças não entrareis no reino de Deus.” O que faz uma criança de tão importante para ser apontada como um lugar de encontro? Ela não marca encontros. Ela vive o encontro. A criança brinca o tempo todo, e Deus continua querendo que o homem aprenda a brincar. O trabalho de Deus é nos ensinar a brincar sem uma única machucadura, sem um arranhão no joelho, sem um trupicão na pedra. Essa brincadeira exige coordenação entre corpo, alma e espírito e leva a vida inteira para se aprender a brincar.  

O escritor  é como um artesão que trabalha com fios. O fio vem em um novelo e o escritor vai desenrolando o seu novelo e tecendo o seu trabalho. Quando o trabalho termina,  pode-se tomá-lo nas mãos, revirá-lo pelo avesso, e cortar todos os fios aparentes, de maneira que, aquele que for admirá-lo não encontre nenhum sinal do ponto ou da linha que foi desenrolado. Daí surgem os folhetins para as novelas mexicanas. 

O trabalho do escritor é uma escultura e quando se admira uma escultura penso ser interessante que se veja também o material de que ela foi feita,  e não apenas  a abstração da arte. Mas há escritores que não gostam, e escondem o recheio. Por fora, só aparece a perfeição. Nenhum minúsculo veio da madeira. 

 E não é que tem gente que quase consegue escrever sem se revelar? Mas o texto fica insípido.

Insípido como aquelas mansões que são decoradas para a Casa Cor.

Certa vez em B.H.  paguei para visitar uma dessas amostras,  em uma mansão, à beira do Lago da Pampulha. Tudo muito lindo. E os decoradores até que tentaram humanizar o ambiente, deixando vestígios da passagem do homem na lua. No banheiro, havia um chinelo havaiana. Mas era branco, e estava muito limpo. Na vida real não existem chinelos havaianas brancos e limpos. Uma vez que você enfie lá o seu pezinho, ou o seu pezão, a brancura já era. E eles esqueceram de sujar o chinelinho e eu não vi mais nada, só vi a impostura de um chinelo branco. 


Não gosto de ser enganada. Aquele pequeno detalhe, tão limpo, tirou a beleza do conjunto e eu lamentei. Que lindo seria se o chinelo tivesse a marca do pé! 

O escritor é esse que deixa fios aparentes. E deve mesmo deixá-los, porque o melhor de um texto está exatamente nos fios aparentes que nos permitem uma fisgadinha de leve, um puxãozinho indiscreto para desvendar o avesso da alma. Aqui no RL faço o meu laboratório de almas visitando os experimentos que me oferecem. E também ofereço os meus experimentos para que me saibam tão humana quanto sou e não tão divina quanto gostaria de ser. 

Jesus não foi um escritor, outros escreveram por ele. Mas esses que escreveram deixaram tantos fios soltos mostrando o avesso de Jesus, que eu não tive outra escolha na vida, senão me apaixonar pela humanidade de Jesus. E a humanidade de Jesus, somada à sua divindade, tornaram-me adoradora de Jesus.

Infelizmente muitas pessoas lêem a Bíblia e não vêem a humanidade de Jesus. Por isso, não conseguem vê-lo nú. A beleza de Jesus está na sua nudez, mas a religião o mostra sempre com o manto pesado da realeza que, por fim, acaba escondendo tanto a sua humanidade, quanto a sua divindade. Por isso, os homens não o amam adequadamente, com a intensidade com que ele gostaria de ser amado.

Todo homem é um ser apaixonado que procura encontrar no outro o reflexo da sua paixão pelo pau, pela pedra, pelos bichos, pelo homem, pela vida. 


Paulo César Melges – de novo – escreveu-me: “Que lindo !! fiquei com os olhos molhados !!! Somos parecidos, você escreve com as palavras e eu com a luz, através das minhas lentes.”

 Não adianta: O que apaixona o leitor é o avesso do escritor. Como o que determina a memória de uma pessoa é, em grande parte, aquilo que o seu biógrafo faz, postumamente, com a vida dela. Lady Dy para mim só ficou bacana depois de morta: foi quando ela se me mostrou viva. Enquanto viva, Lady Dy parecia morta. Embora estivesse viva, era-lhe dado parecer morta. 

Se você quer viver, sem deixar suas marcas,  não escolha escrever. Escolha ser gari na praia, recolhendo não apenas o lixo, mas também os grãos de areia. Tarefa rotineira, inglória e impossível. 

 Ninguém escreve impunemente. Nem adianta tentar. Graças a Deus! 

Paulo Cesar Melges é um artista paranaense maravilhoso que capta a vida através das suas lentes. Suas obras estão expostas na Galeria "Rouge", em Paris, na Galeria "Olhares" em Lisboa, e em algumas galerias de arte em São Paulo. Paulo César é meu amigo de longa data. Quem quiser conferir uma amostrinha do que ele faz, é só acessar a galeria de "Fotos digital Olhares" ou o seu orkut: 


http://www.orkut.com.br/Main#Profile.aspx?uid=9772769160588917689
Ana Ribas




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EU NÃO NASCI DE ÓCULOS. 
ANA MARIA RIBAS, 






Hoje quero lhes falar de tesouros e de óculos de grau. Duas coisas aparentemente irreconciliáveis e ainda assim cristalinamente fundidas na visão mais pura. 

Eu não nasci de óculos. Mas comecei a usá-los por volta dos 20 e poucos anos. Um astigmatismo de 0,5 (meio) grau, combinados a uma miopia de 0,75 graus que acabaram evoluindo e estacionando pouca coisa acima disso. O astigmatismo é causado pelo formato irregular da córnea fazendo com que todos os objetos, tanto próximos, como distantes, fiquem destorcidos. A miopia faz com que todos os objetos distantes fiquem embaçados. Enfim, a coisa toda se formou por volta dos 20 anos e fui condenada a passar a vida com um óculos de grau leve, mas extremamente necessário.  

Embora não tenha nascido de óculos, nunca me incomodei com eles. No dia a dia, com jeans e camiseta, um óculos na cara me emprestava um ar intelectual. E para disfarçar a intelectualidade comprei alguns com lentes escuras de modo que, quem me visse, veria uma mulher paramentada para o verão. 

O problema é que, naquela época, ocasionalmente, eu tinha alguns compromissos sociais aos quais ainda não sabia como me furtar. Nessa hora, com vestido longo não cabia na produção um óculos na cara. Só na bolsa. Então eu ia, sem óculos, com a minha visão embaçada e distorcida e uma situação combinava com a outra situação, porque muito não me era dado enxergar. Apenas ir. 

Um dia, no início de um ano, quando se compra uma agenda novinha em folha e se quer inaugurar com um único gesto de coragem, escrevi lá: “Cirurgia de Correção do Astigmatismo e da Miopia.” E corri atrás do sonho. 

Naquela época, minha médica a Dra. B. D. havia mudado o seu consultório de Umuarama para Maringá. Fui então a Maringá. 

A Dra. B.D. era e é uma daquelas profissionais que vivem em congressos ao redor do mundo e que hoje, segundo soube, já é convidada para ensinar nesses congressos - uma pessoa altamente competente.

 Mas havia algo em sua personalidade que me intrigava. Na verdade, não apenas me intrigava, como também me passava um ligeiro mal estar: era na hora do cumprimento, na chegada e na saída,  quando ela me estendia uma mão mole, mas tão mole, que me parecia estar pegando em um cadáver. Outra coisa que me incomodava: ela não olhava diretamente nos meus olhos. Enquanto falava, escrevia na ficha – um erro grave para quem precisa conquistar a confiança do paciente. Que não era o caso: eu a conhecia como uma sumidade científica. Mas se a paciente não se importava, a escritora registrava. 

Na consulta, ela me disse: - “temos um problema, você já passou dos 40 anos e nessa idade, operar o astigmatismo e a miopia seria agravar a presbiopia.”

Presbiopia, para quem não sabe, é quando as lentes naturais dos olhos se tornam grossas e menos flexíveis e isso acontece com  todas as pessoas, por volta dos 40 anos. É a famosa idade em que nos falta o comprimento nos braços para podermos enxergar o que queremos ler. 

Poderia ter parado por aí, poderia ter agradecido e poderia ter vindo embora. Mas, se fosse simples assim eu não seria Ana Maria Ribas. Olhei para ela, que tinha mais ou menos a minha idade, e perguntei à queima roupa: - você não usa óculos? Você nunca teve astigmatismo, miopia ou presbiopia? Eu queria entender e para entender precisava perguntar. 

Dessa vez ela me encarou e respondeu: “ Bem, eu fiz em mim uma coisa que não faço em ninguém. Fiz um experimento que força o cérebro a fazer a báscula. Dei ao meu cérebro uma ordem de comando: o ôlho direito enxerga para longe e o olho esquerdo enxerga para perto.”

Esse é o princípio da báscula. Para se ter uma idéia do que significa basta lembrar de um portão eletrônico basculante: enquanto uma parte sobe a outra desce. 

Ou seja: ela operara um ôlho e deixara o outro sem operar. Dessa maneira, duas coisas podiam acontecer: se o cérebro aceitasse a ordem de comando, cada ôlho faria a sua função, um enxergando perto e outro enxergando longe. Mas se o cérebro  resolvesse dançar o samba do crioulo doido, então  teria que se operar o segundo olho também . O resultado disso é que a visão de longe ficaria livre de óculos, mas a visão de perto seria grandemente prejudicada, de maneira que “para se distinguir o branco do arroz do marrom do feijão” eu teria que ter um óculos na mão. Foi assim que ela falou.  


Mas não foi assim que eu entendi. 

Eu olhei para ela, me mexi na cadeira e naquele momento, eu entendi que ela era uma mulher coragem.  Eu sempre quis ser uma mulher coragem. Então eu disse: - “Eu tenho coragem de fazer. Você tem coragem de me operar?” Ela respondeu: “ Se você aceitar correr o risco, eu aceito fazer a sua cirurgia. Se o seu cérebro fizer a báscula acabou o seu problema. Se o seu cérebro não fizer a báscula, faremos a cirurgia no outro olho e você dependerá de óculos para perto, só para perto.” 

A proposta me pareceu decente, honesta, tranquila e possível, quatro requisitos indispensáveis para eu topar qualquer situação nova. 


Sai dali com a cirurgia marcada para a semana seguinte e uma lista de exames a serem realizados na própria clínica, como parte dos procedimentos pré operatórios. Fiz tudo no mesmo dia. Quando fui pagar na portaria, a surpresa: ela não me cobraria nada por eu ser mulher de um colega. 

Os homens de roupas brancas se protegem e os homens de roupas coloridas pagam. 

No dia da cirurgia, Ivo foi comigo e eu estava tremendamente feliz. Ivo não estava nada: ele tinha deixado para trás duas gestantes em dores de parto, e precisava voltar logo para o hospital.  Por isso me deixou na porta da clínica e foi fazer o que precisava fazer em Maringá, não me lembro o que era. 

Assim que cheguei, a atendente encaminhou-me para uma sala no segundo andar. Na mesma sala estavam 10 pessoas, todos candidatos a jogar fora o seu óculos de grau. Mas nenhum deles estava ali para fazer a báscula: só eu. 

Nem perguntei, mas eu sabia. E resolvi saber exatamente naquela hora o que havia ignorado durante toda a semana: “Meu Deus, a báscula! Deus, por favor, o Senhor deu a báscula para ela, dá para mim também! Deus eu não mereço  fazer a báscula? Lembra-te Deus de que tenho te servido em amor e fidelidade.... ” 

Sentada na cadeira, silenciosamente, eu orava. E resolvi orar bem na hora em que já deveria ter orado e estar tranquila nas mãos de Deus. Verdade seja dita: a cada minuto que passava, mais tensa eu me tornava. 

 Nessa altura, o primeiro paciente foi levado para o centro cirúrgico. A coisa toda duraria pouco mais que 20 minutos para cada paciente. Se eu fosse a última, dali a 200 minutos  estaria operada. Mas a inquietação foi aumentando e a descarga de adrenalina na corrente sanguínea me fazia ir ao banheiro a toda hora. 

Foi então que tive a idéia de me colocar de joelhos, ao lado da privada. E de joelhos, eu disse assim como vou escrever aqui agora: “ Deus, eu entrei nessa sem a sua autorização e não tenho cara para sair dela sem a sua ajuda. Se eu tivesse pagado a consulta, se eu tivesse pagado os exames, eu poderia virar as costas e ir embora. Mas eu não paguei nada, eu ganhei tudo. E essa mulher perdeu o precioso tempo dela comigo.  Não posso virar as costas e ir embora. Não sem a sua ajuda. Deus, se o meu cérebro não for fazer a báscula, faça apagar as luzes dessa clínica, faça a médica ter que sair de repente, faça qualquer coisa, mas não me permita operar – se não for para o meu cérebro fazer a báscula.” 

Voltei para a sala. Já havia entrado o terceiro paciente. Estávamos agora em 7 pessoas comigo na sala. De repente, a porta se abre e entra um novo candidato a cirurgia. Mais um. Era um jovem meio apavorado e eu apavorada crônica fui conversar com ele. Então ele me disse: “ marquei essa cirurgia mas estou com medo de não dar certo. E não vou operar sem falar com ela.” 

Eu não sei explicar como a coisa toda aconteceu, mas o fato é que a mensagem do moço chegou na sala de cirurgia e dra. B.D. veio até a sala, tendo ainda na cabeça a touca do uniforme do centro cirúrgico. 

E a conversa aconteceu ali, na minha frente, e na frente dos demais pacientes. Para convencer o moço, a uma certa altura, ela resolve me tomar como ilustração de bom exemplo. E o que ela disse foi assim: 

- "A Ana Maria deveria estar com medo e não está. Ela vai fazer uma cirurgia que depende do cérebro assimilar o princípio da báscula. Mas cada coisa tem o seu preço: ela é uma mulher de intensa vida social e para ela, muito mais importante do que enxergar as letras de um livro é enxergar o mundo a distância. Para uma mulher vaidosa, essas coisas são básicas. Agora para você, eu diria que essa cirurgia é totalmente indicada... blá, blá, blá." 

Meu Deus! Danou-se tudo. A mulher não me conhecia nadica de nada.  Eu não era a socialite que ela pensava, eu detestava roupa social, a vaidade já tinha sido parcialmente delebada, e a minha vida eram os livros, e sem os livros eu estaria para sempre liquidada. Ela me julgara pela casca, pelas roupas que eu vestia quando ia ao consultório dela. Ela não sabia nada da minha preferência pela textura de um vestido de algodão, e pelo conforto de um chinelo havaiana. Para ela, eu era uma “perua emproada.” 

Verdade seja dita ela não tinha obrigação de me conhecer profundamente. Ela só me via pelos instântaneos- como os de uma foto – que de tempos, em tempos, eu lhe apresentava. Baseado nesses instântaneos de minutos, alguns conceitos equivocados se formaram e eu – eu que me conhecia – deveria ter me interpretado melhor e não esperar que ela me interpretasse e tomasse decisões por mim. 

Não sei se fui chamada em questão de horas, ou de minutos. Mas sei que fui a sétima. Sei também que  orei como nunca havia orado em minha vida. Eu orei com tanta intensidade que até o medo foi embora. Então me veio uma estranha paz. A paz dos que sabem que Deus já assumiu o controle de tudo.  

- Ana Maria! – Por favor, entre, coloque esta touca nos cabelos, lave o rosto com aquele sabonete, tire toda a roupa e coloque esta aqui. – A enfermeira me orientava.

Eu estava na ante sala do centro cirúrgico. Após obedecer a todas as ordens, a enfermeira pingou duas gotas de um colírio anestésico no ôlho a ser operado e me disse: “aguarde um momento que a doutora está preparando a máquina para lhe operar.”

Quando ela saiu da sala, corri  para pegar a minha pequena Bíblia de bolsa, e em profundo sentimento de contrição e reverência abri a Palavra. Estava escrito assim:  “Ferramenta alguma preparada contra ti prosperará.” Isaias 54:17.

Naquele momento, comecei a andar pela sala e a glorificar a Deus. Eu sabia que a cirurgia não aconteceria mais. Enquanto a enfermeira me dissera: “ a doutora está preparando a máquina” Deus me dizia: “nenhuma ferramenta preparada contra ti prosperará.”  Eu acreditei na Palavra de Deus.

Os minutos foram passando e se transformaram nos 60 de uma hora. Ninguém aparecia para me dizer nada. Na sala branca, o barulhinho manso do ar condicionado, me lembrava um avião a caminho de Milão. Sempre quis conhecer Milão e Veneza. Mas nunca fui. 

Quando a porta se abriu, a dra. B. D. entrou e vinha desolada: pediu desculpas pela demora porque “ uma peça do tamanho da cabeça de um alfinete havia escapado da engrenagem e o técnico local que fora chamado constatara que  a tal peça teria que vir dos Estados Unidos da América, com escala no Rio de Janeiro, sem previsão de chegada.”

E foi assim que Deus me salvou daquela situação. Quando a peça chegou vinda do Rio de Janeiro, a secretária me ligou para marcar a nova data, eu dei uma desculpa, troquei de oftalmologista e nunca mais a vi, a não ser nas capas de uma revista que trata do cotidiano das celebridades regionais. Que eu não sou. 

Tenho aberto para vocês, nesta manhã um dos tesouros que guardei a sete chaves no meu baú de memórias, plagiando uma poetisa aqui do Recanto, cujo nome me falha a memória.  Se eu tenho nas mãos um tesouro e digo a esse tesouro: “eu desejo que você seja feliz, pode ir embora”, eu acabo de liberar o tesouro para ser o tesouro de todas as pessoas da terra. Que têm o direito de escolher se o querem guardar ou não.  Ele agora é de todos.   

Nesta manhã, eu libero o meu tesouro,  na esperança de que vocês compreendam que o que vale na vida é o sentimento de ser livre de qualquer estereótipo, de qualquer pré julgamento, de qualquer pressão declarada ou simbólica.

Quem tem um tesouro e o deixa livre, também o entrega nas mãos de Deus. Se ele voltar para o seu baú será trazido por bons ventos, e não por maus presságios. Que os ventos do Espírito o espalhe pelos quatro cantos deste planeta terra e que ele nunca volte para o sul por ter sido rejeitado pelo norte, pelo leste, ou pelo oeste, mas por ter assimilado a maior lição da sua vida: Deus é o único dono de todos os tesouros da terra e ele os distribui a quem quer e como quer.


Ana Ribas




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PARECE QUE NÃO, MAS PEGA. 
ANA MARIA RIBAS, 






Escrevo sob uma dor de média intensidade na região da cintura irradiando para os músculos intercostais. Ontem, Gisele me passou um exercício novo para a dita cuja cintura e me disse: - “Vai com cuidado, parece que não,  mas “pega”. Eu não acreditei que pegasse, estava moleza e fui com tudo. Resultado: paracetamol logo cedo e mais o efeito cascata sobre o estômago que não aceita analgésicos. 

Mas isso é culpa da Milka. Milka é uma danada. Ela passa o dia limpando vidros, espelhos e aparelhos na academia, e tem um espírito sensível. Diariamente nossos espíritos conversam.  E Milka com esse espírito sensível ontem, me disse: “ Quando você entra aqui, entra uma energia boa. Você passa alegria, coragem, disposição.” 

E depois ela me disse: “ olha disfarçadamente aí para o lado. Veja o desânimo.” 

E não é que eu tinha acabado de ver exatamente a personificação do desânimo aos 20 anos de idade? Eu tinha pensado assim: “é por isso que as moças encalham e não casam.” E tinha pensado também assim: “e se eu fizesse uma palestra motivacional para moças desanimadas?” E ainda pensei mais assim: “eu colocaria a minha sandália Luz da Lua e colocaria aquela roupa tal e daria uma amassada no cabelo e faria a palestra na sala de casa. Minha palestra passaria por cuidados de estética, saúde e psicologia comportamental e obviamente sobre Deus que rege o universo.” E o versículo que eu leria seria este: “os que esperam no Senhor renovam as suas forças, sobem com asas como águias, caminham e não se cansam, correm e não se fatigam.” Isaías 40:31.

E aí me vem Milka e diz que me admira desde o ano de hum mil novecentos e bolinha, e que, para ela, eu era um exemplo de força, de entusiasmo e de alegria, e eu acreditei em tudo o que ela me descreveu sobre essa desconhecida que se chama Ana Maria Ribas, e resolvi ser ainda mais especial para Milka, e realizei todas as séries completas e mais algumas que acrescentei escondido da Gisele,  e ganhei essa baita dor na cintura. 


Mas paracetamol cura. 

E relembrei uma coisa que eu já sabia:  não dá para ser feliz impunemente. Dá para conservar a alegria, a disposição, a energia, mas não dá para ser feliz demais. Felicidade demais é improdutiva. Mas a alegria é preciso conservar.

Welington Miranda é psicólogo clínico com consultório estabelecido em Nova Odessa. Nova Odessa fica ao lado de Americana e de Campinas e eu, quando vou visitar a Sandra, não escolho os shopings da região para fazer compras. Nos shopings eu só passeio e compro livros na FNAC.  Eu escolho Nova Odessa como o meu centro de compras. Porque tem o jeito das cidades do interior e porque lá já conheço algumas pessoas nas lojas. É bem legal comprar lá. 

 Mas Welington e sua esposa Daniela, os conheci através do Wanderley e da Sandra, num dos  churrascos que Wanderley organiza quando  nós chegamos,  e ele se entusiasma com a nossa presença e convida os amigos para  nos recepcionar. Wanderley é um festeiro doméstico.  

Welington, que é psicólogo, parceiro de link ( ele também escreve) amigo da família, e meu leitor, recebeu de Sandra a seguinte observação:

- Welington, minha mãe é uma mulher muito solitária. Acho que vou mandá-la para você. O que você acha de uma terapia?

- Sandra, não me faça isso. Eu não aceito tratar a sua mãe.  Se a sua mãe perder a deprê, nós perdemos a escritora. O que move a sua mãe é o mundo particular que só ela tem e que só Deus alcança. Eu posso orar pela sua mãe, mas fazer terapia nela eu me recuso.- Welington fala com a liberdade dos íntimos e não com o diploma de psicólogo. Também porque sabe que eu não poderia fazer terapia morando tão distante dali. 

Mas eu me encantei com a fala de  Welington. Desde o dia em que Sandra me contou esse fato, tenho guardado a minha melancolia na mão direita fechada e dura. E agora, que Milka viu a minha alegria, guardarei a minha alegria na mão esquerda fechada e dura. Não abrirei mão de nenhuma das duas. Conservarei  a alegria para frequentar a academia e a melancolia para escrever um caminho na terra. 

Quem inspira um estilo não pode trair o estilo que inspira, principalmente se esse estilo estiver realizando uma mínima transformação benéfica nos seres que tocamos. 

O último livro de crônicas de Rubem Alves tem o título: “OSTRA FELIZ NÃO FAZ PÉROLA.”  Isso é porque Rubem Alves não me conhece. Se ele me conhecesse o título seria: “OSTRA MEZZO A MEZZO”. E o molho cada um acrescentaria conforme a necessidade: melancolia para os melancólicos, alegria para os felizes e Deus para todos. Principalmente para mim que preciso produzir a pérola. 


* Site do Welington: www.welingtonmiranda.com.br
Eu recomendo: o site e o psicólogo. 


Ana Ribas




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OS CHEFÕES DA VIDA.
ANA MARIA RIBAS. 








Nascimento e vida não são verdadeiramente sinônimos. Vida é liberdade mas nascimento é o princípio da escravidão. 


A criança não é como a batatinha que, quando nasce,  se esparrama pelo chão e avança em direção ao norte, ao sul, ao leste, ao oeste. A criança quando nasce fica estática. Ela depende de mãos que a cuidem e se não receber cuidados, morre sem satisfazer as suas necessidades básicas.

O nascimento é um estágio compulsório onde o estagiário não escolhe a empresa aonde vai estagiar ou a função que vai desempenhar. Nasce-se à mercê do acaso e esse acaso é tão variável quanto o número de combinações possíveis entre os cromossomos. Os cromossomos são os chefões da vida e o jogo deles é pesado. Eles determinam a saúde ou a doença, a presença ou a ausência de beleza que, afinal é uma questão de milímetros. 


Todos nascemos com um rosto e nesse rosto cabem dois olhos, uma boca e um nariz. No entanto, por uma questão de milímetros, o “Dr. Pitanguiz” ficou tão rico. 

Os cromossomos são os chefões do pedaço mas a alta cúpula se chama DNA.

Até aqui não posso reclamar do meu DNA, mas reclamo da minha falta de liberdade. Eu não escolhi nascer do lado de cá do Atlântico e nem mesmo escolhi nascer na família que nasci. Caí de paraquedas no mundo dos brutos, onde o meu irmão, esse que hoje é pastor,  me chamava de “volume” porque eu passava o dia com um livro na mão e ele passava o dia carregando pacotes.


 Cresci como um volume, sem muito espaço. Um volume apertado entre outros volumes de utilidades mais aparentes. A minha utilidade sempre foi duvidosa. 

A criança nasce sem liberdade e é totalmente indefesa. A única defesa da criança é o choro. O choro da criança é o jeito de dizer: “ eu hoje vou me vingar de vocês e vou lhes roubar o direito ao sono. Eu hoje vou esperar que me dêem o banho para fazer uma meleca mole.”

Depois, ensina-se a criança a pensar que ela é livre: “libertas quae sera tamen”. Pura mentira. A liberdade que nos dão é como a de um bezerro que tem uma corda molemente amarrada ao pescoço, de bom comprimento, que lhe possibilita ir e vir pelo pasto, sem a lembrança da posse que tolhe, que fere, que machuca. A corda é o instrumento de tortura, mas é uma tortura acostumada, e que, ainda por cima, nos oferece a falsa sensação de liberdade. Mas é mentira: a liberdade- nesse mundo -é uma mentira.  

Um dia, os chefões se reunem, puxam a corda e você leva o primeiro tranco: 
-de onde veio isso? – você pergunta? 
- Do seu avô inglês – alguém responde. 

Nascimento é isso: uma combinação de cromossomos determinando o seu futuro genético e uma combinação de gente insensível determinando o seu futuro impossível.

Um volume só deixa de ser um volume quando descobre que existe Deus no céu, na terra, e embaixo da terra. Então, o volume se enche de Deus e sai pelo mundo puxando uma carroça cheia de cartas que falam de Deus. O volume precisa desempenhar tão bem essa função que só os insensíveis possam identificar no ser que puxa a carroça, um burro. Os demais, devem vê-lo como um anjo. 



Para o volume, Deus é a única libertação possível. Também para os arrogantes, os bárbaros, os citas, os servos, os que pensam ser livres, Deus é a única libertação possível. 

Pense no dia de hoje: qual é a sua verdadeira liberdade? Alguém consegue determinar se estará vivo ao final de 24 horas? Ou ao final desta próxima meia hora? Alguém consegue dizer se os planos do próximo domingo serão realizados?  Não há liberdade possível: há um grande mistério. Nesta manhã, eu quero dizer ao meu irmão de sangue, esse que hoje é pastor, e que a infância inteira me chamou de volume, que eu continuo sendo um volume. Como um volume que sou, às vezes, olho para o mundo e faço meleca no mundo, e às vezes olho para o céu e faço uma canção de amor a Deus. Mas quem ouve? 

Só há um jeito de ser verdadeiramente livre: é morrendo. E na hora em que me for determinado morrer, eu quero que uma única Pessoa me diga: “ Venha Ana Maria, venha para o mundo dos verdadeiramente livres.”  

E quem me leu, terá lido. E quem não me leu, não me lerá nunca mais.  



Ana Ribas




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O EFEITO MANADA
ANA MARIA RIBAS. 



A Bíblia sempre me fez meditar no efeito manada sobre o povo de Deus, desde o episódio do bezerro de ouro em Êxodo, até a morte de Jesus, nos Evangelhos. O efeito manada parece ter sido descoberto agora pelos economistas, mas é tão antigo quanto a humanidade.   Esse fenômeno social  está amplamente  descrito nas páginas do livro Sagrado. A turba enlouquecida tanto mata quanto idolatra, viajando pelos extremos da interpretação coletiva. Isso é o povo: o povo é o efeito manada. 

O efeito manada atravessa as páginas da Bíblia e alcança a história: a eugenia,  o nazismo, o darwinismo,  e todas as ideologias segregacionistas nada mais são do que a amplificação do efeito manada. A história é contada pelos vencedores por causa do efeito manada: não sobra uma única pessoa para contar a história do ponto de vista dos vencidos. Os vencidos são calados, porque os que eram neutros, rapidamente, engrossam a fila da manada dos vencedores. 

Nem precisamos nos aprofundar nesses conceitos.  O efeito manada pode ser medido em qualquer situação social. Na moda que foi ditada para o próximo verão, na torcida organizada de um time de futebol, nos comentários dos críticos de artes,  nas seitas que se propagam institucionalizando uma interpretação particular das escrituras - temos aí o efeito manada.    

Eu gosto de observar o efeito manada sob o ponto de vista pessoal: um humanismo revisitado.  Nessa medida de observação cabe um olhar introspectivo até sobre uma festa de aniversário, de crianças, por exemplo. Uma festinha de crianças é  uma ótima oportunidade para observar o efeito manada. Chega a primeira mãe, e com ela chega também a primeira criança convidada. A mãe e a criança comportam-se com a civilidade e a doçura da individualidade preservada. Mas, uma hora depois, quando a festa atinge o auge da coletividade, não há mais mães e filhos: há o povo. O povo sem regras, sem noção, sem fronteiras, porque o coletivo empresta um sentimento de força, de coragem, de audácia, que o individual não contém. Não há mais mães colocando limites em filhos, e não há mais filhos, obedecendo às mães: há o povo. Há o povo subindo e descendo em nuvens de algodão doce, e de brigadeiros, e de pralines de amêndoas, e de pistaches, há o povo  subindo e descendo escadas, entrando por espaços privativos e há o povo assentado, de pernas cruzadas, assistindo passivamente ao estouro da boiada. De repente, as mães não são mais mães, são apenas uma vaga lembrança da maternidade assumida e declarada.  E de repente, a linguagem social se transforma numa chave que abre caminho para a permissividade absoluta da baderna infantil institucionalizada.  Tudo é permitido porque sob o efeito manada, o que se faz, não são os filhos que fazem. É o povo quem faz. 

O tempo todo sofremos a ação do efeito manada. E observar esse efeito continua sendo uma das sabedorias válidas. Porque muitas vezes, nem percebemos que a salvação do nosso mundo interior está no individual, e que só no individual Deus pode encontrar um caminho para implantar a sua imagem e semelhança em nossa vida. A semelhança de Deus, no homem, só é possível, quando mantemos a nossa individualidade preservada. Os monges que se enclausuram nos conventos, alcançam um estado de meditação e santidade muito mais facilmente do que nós, os comuns mortais, que todos os dias estamos à mercê do efeito manada. O dia de um monge deve ser assim: eu e Deus somos um. O nosso dia é assim: eu sou, e em algum lugar distante, Deus continua sendo. E nessa distância, não apenas percebida, mas também interiorizada, tenho que reforçar a minha posição na manada. Tenho que ser forte o bastante para afrontar todos os medos, que o estouro da boiada, lá no íntimo, impõe ao meu ser. E tenho que me comportar da maneira como se espera que eu me comporte. Tenho que comer chocolat au lait fourré praliné aux amandes,  e tenho que sorrir com os dentes manchados de chocolate para não destoar dos demais sorrisos manchados de chocolate. Mesmo que eu não queira chocolate.   

 Assim se constroem e se fortalecem as relações humanas e as distâncias entre nós e Deus.  E como é vasta essa distância declarada.  E como continua sendo curto o caminho que nos leva a essa mínima compreensão de que estamos sob o efeito do estouro da boiada. 

Há algum tempo eu tinha o hábito de separar uns dias da minha vida, todos os anos,  para estar a sós com Deus. Eu me retirava voluntariamente para um lugar deserto, a fim de escapar do efeito manada.  Eu não queria o efeito manada em minha vida. Mas errei o rumo:  em vez de subir o monte, desci o vale.

Não importa se mantenho a devida distância do estouro da boiada, ou do epicentro de um furacão.  Não importa quanto de infinito o meu olhar consiga alcançar ao pôr do sol de mais um dia: ao nascer de um novo dia,  o efeito manada me afronta e me confronta com os estreitos limites da minha individualidade ameçada. E quem ameaça a minha individualidade? Eu mesma. Eu sou a pior inimiga da minha individualidade nunca totalmente conquistada.


Com que tristeza percebo e declaro  que embora sedenta pelo milagre, a sede não me coloca no caminho, a fome não me faz adentrar a terra de Canaã para comer do seu mel:  continuo mantendo a mesma inexorável distância de Deus.     


Ana Ribas




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MEU AMOR PELOS CÃES.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.






Gosto de compartilhar com vocês as coisas que me acontecem. Mas descobri que nem sempre acreditam nos fatos que lhes conto aqui. Ou acreditam pelo metade. Ou lhes conferem uma dupla interpretação. 

E eu entendo a dificuldade toda, porque há certas coisas que me acontecem, que eu mesma preciso fotografar para acreditar,  que realmente aconteceram. 

Felizmente minhas histórias tem tido humor. Passada a fase do horror, Deus tem-me contemplado com humor. E se mais ninguém consegue rir, eu me divirto com as histórias que Deus prepara para me fazer rir. Sou também uma mulher de risos. 

A história de ontem, tem um nome: Petrúquia, esse ser de 4 patas que atende pelo nome de Petras ou Tuka. Esse exemplar de raríssima espécie conforme os biólogos, veterinários e zootecnistas de plantão podem conferir pela foto superior, foi encontrada vagando nas cercanias da rodoviária. Deve ter caido de alguma bagagem e o dono, nem se deu conta. O fato é que, Silvia, minha filha, com vocação total flex para Ana Maria, encontrou o ser e o levou para a casa (que era dela). 

Separada- Silvia- voltou para a minha casa, trazendo meia dúzia de cachorros de rua. Menos mal. Cachorros não sentem falta de pai, e falta por falta, eles agora teriam duas mães. 

Como eu já tinha os meus, a incompatibilidade totalmente se fez. E fomos arrumando um dono aqui, outro ali, para os cachorros de Silvia. Sobrando essa, que por ser assim de uma beleza tão rara, está conosco até que a morte nos separe. 

Pois eu cheguei segunda feira de viagem, com dor de garganta. Mas a notícia de que a Tuka não comia há 3 dias me fez sair da cama, ontem,  para levá-la ao vet, em Umuarama. As fotos são para que você creia no que vou contar. 

Em Umuarama, Prontovet é o endereço certo para cuidar dos seus bichos de estimação (ou de indignação). Lá você encontra o Dr. Alceu, o Dr. Manuel, a Silvana, gente boa pra cachorro. E pra cão. E prá gato. Periquito e papagaio, ainda não conferi. Mas os caras são bons e amam bichos. 


Aqui estávamos nós a caminho, Tuka e eu. 


Cheguei, chegando: É “Babésia”- eu disse. E sugeri uma colheita de sangue para confirmar o “meu diagnóstico.” Às vezes, eu acerto. 


Dr. Alceu, rindo,  me disse: “dessa vez, acho que você está errada. Você não viu essas tetonas cheias de leite, não?” E dessa vez o riso dele foi se alargando, porque era, finalmente, a vitória da ciência contra o empirismo dos brutos. 

- “ Eita! Mas gravidez está descartada.” Eu disse. 
- “ Ana, você já ouviu falar em gravidez psicológica?”
- “Em gente já. Em cachorro, nunca”. 

E aí começa o seguinte papo surreal:

-Ana, ela quer ser mãe. Ela está louca para ser mãe. E você tem que decidir: ou satisfaz o desejo dela ( foi assim que ele me falou) ou operamos para arrancar os ovários e retirar  essa carga hormonal que ela está recebendo em decorrência desse desejo. Uma coisa alimenta a outra.  

Quando fico nervosa, começo a rir, mas ele está falando sério e eu tenho que tomar essa decisão: permitir que ela seja mãe ou destruir de vez o seu sonho de maternidade. 

- E aí? - ele me pressiona? - O que você decide?
- Eu decido que ela vai pra faca, agora. Ela tem o desejo de ser mãe e eu não tenho o desejo de cuidar das crias dela. Portanto, entre o desejo dela e o meu, eu fico com o meu.
- Não dá para operar com essa carga hormonal intensa. Temos que reduzir primeiro. Vamos fazer uns exames de sangue para dosar a taxa hormonal e até a data da cirurgia é o seguinte: não deixe nenhum bichinho de pelúcia por perto dela. Qualquer coisa que lembre um cachorrinho precisa ser afastada. Muita caminhada e compressa gelada. 

Vocês acreditam que essas coisas me acontecem? Só acreditam porque a reportagem está bem documentada com nomes, com fotos e com diagnósticos científicos. Se isso não existisse seria “mais uma da caríssima Ana”, né Marília? 

 Minha vontade é passar pela rodoviária e devolver esse ser para o seu lugar de origem. Mas quem não me deixa, enfim, é o homem do avião: “tu és eternamente responsável por aquilo que cativas.” Se sou, então assumo: sou. 

E já que estamos falando em cachorros, aproveito para inserir aqui essa foto acima que mostra Nino, o Italianinho. Escrevi uma crônica “Meu Outono em Roma” contando minha história de amor com Nino, esse ser de 4 patas da foto, de cidadania italiana. Pois não é que houve quem pensasse que Nino era um homem? Não era. Na foto, você pode conferir: à esquerda, a dona do Nino ( Rita Pavone), ao lado eu, com o Nino no colo, e no detalhe o meu cãozinho que já havia morrido, o Tokinho. As colunas eruginosas da Praça de São Pedro, em Roma, compõem o cenário.

Essas coisas só acontecem comigo. Mas de agora em diante, já que a profissão de jornalista está para sofrer uma mudança, começarei a me preparar para ela: com a minha máquina na bolsa. Porque jornalista que é bom, faz a matéria e mostra a foto. Mas o que eu queria dizer mesmo é que mato a cobra e mostro o pau. Sem nenhuma elegância. 

Ana Ribas


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O negócio é o seguinte.
ana maria ribas bernardelli. 



Marlene ama Mô, que casou com Marlene, mas acabou tendo um filho com Darlene, que separou Mô de Marlene. Dia mais, dia menos, como esse mundo é orbicular, Mô voltou para os braços de Marlene, com um fuska, um violão, e uma pensão alimentícia que precisa ser paga todo dia 10, de cada mês, pelo filho que lhe fez. Justissimamente.

Marlene recebeu Mô de volta, sem dinheiro para comprar o arroz com feijão, mas com um fuska, um violão, e uma pensão alimentícia para pagar todo dia 10. Se não, vai em cana. Já foi uma vez. Darlene é cobra criada.


Mô não tem dinheiro, Marlene paga. 

Mas quem deposita é ela: a patroa de Marlene. Por volta do dia 20, dia máximo para a curta paciência de Darlene esperar pela pensão, sem ir ao fórum, denunciar Mô pela inadimplência, vem Marlene até a patroa, com a clássica pedida:

 - “Daria pra senhora passar no Banco do Brasil e fazer o depósito da Darlene pra mim? Se não vou ter que sair mais cedo do serviço, porque se amanhã esse dinheiro não estiver na conta da Darlene, Mô vai em cana de novo.”

Isso se repete há 6 meses. A patroa já tem na carteira o número da conta de Darlene, o patrão também. E ninguém conhece nem Mô e nem Darlene, mas conhecem o número da conta bancária de Darlene. 

- O negócio é o seguinte, Marlene, senta aqui – diz a patroa. E quem tem ouvidos para ouvir é obrigado a escutar. Escuto então.


- O Mô pediu autorização para mim, quando foi fazer o filho na Darlene?
- Não.
- O Mô pediu autorização para você quando foi fazer o filho na Darlene?
- Não.
- Então, pelo amor de Deus Marlene, tenha dignidade nessa cara. Daqui para frente, você manda o Mô se virar com a pensão da Darlene, porque eu não vou mais depositar e você não vai mais pagar. Tá certo, Marlene?
- Tá certo, sim senhora.

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Um neto de 8 anos, politicamente correto, com vocação para pastor evangélico, volta para casa com as duas avós. A que vai ao volante é viajada, mas é tonta; a outra avó, não sabe dirigir, não é viajada, mas é mineira.

-Vó como é a vida na Itália? – obviamente, ele pergunta para a avó viajada. O pai acabara de chegar de Israel, via Itália e a conversa da tarde girara sobre o país. 
- A vida na Itália... a vida na Itália é assim como aqui... as pessoas voltam para casa à noite, elas trabalham, vivem, amam, choram, tudo igual aqui no Brasil. Depois a avó pensou melhor e achou por bem informar um dado cultural qualquer. Então ela disse: 
- A grande diferença é que lá as cidades existem há mais tempo, por isso algumas casas são mais velhas, outras mais novas, mas as pessoas são as mesmas.


A avó mineira desconfiada, uai sô, pergunta para o menino:
- Por que você quer saber como é a vida na Itália? Por acaso você está pensando em morar na Itália?
- Claro que não vó! Eu não falo espanhol! 

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“Dado, da-a-do, cada um no seu quadrado...
Deus registra tudo, tu-tu-tudo...
Au-au-au o lobo é super mau... eu disse au-au-au o lobo é super mau.” 
A neta de 4 anos, vai em pé, atrás, dançando um funk que mistura Deus, lobo e quadrados.
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O carro chega, rodando lentamente,  até a portaria de segurança máxima. Não é a portaria de uma prisão, é a portaria de um condomínio de casas, um condomínio localizado num lugar que vai do nada para lugar algum, mas onde, aos poucos, começa a ter tudo o que se tem em outros lugares, e dos quais se pensou poder, romanticamente, abdicar: academia, personal trainer, restaurante, loja de conveniência. E mais uma grande inconveniência:

 O carro precisa parar a 30 metros de distância e de lá o sujeito ao volante se identifica, via interfone, para o sujeito da guarita. E a pergunta é sempre a mesma : “aonde vai”?

- a avó viajada e tonta, fica irritada porque é a milésima vez que ela tem que:
a) Dizer aonde vai. 
b) Esperar que concordem com a sua ida e lhe abram a cancela.
c) Apresentar o documento de identidade para o segurança, que a essa altura já abriu a primeira, mas ainda mantém a segunda devidamente trancada.
d) Esperar que lhe anotem o número da identidade.
c) Aguardar o segurança interfonar na casa e pedir autorização para que ela possa entrar na casa que é dos seus netos, que estão no banco de trás do carro.

A avó viajada e tonta está irritada, mas a avó mineira, compreendendo porque essas coisas aconteciam, explica-lhe bondosamente: “ é por segurança, dona Ana. Isso é bom para quem mora aqui. O mundo tá muito perigoso. Já pensou se eles deixam um ladrão entrar?"

Ainda não me acostumei com os medos das pessoas que moram aqui. Meus medos são de outra ordem. 

Transposto, enfim o portão, dignidades enesimamente fichadas no DOPS, outra afronta para o mundo dos que não moram aqui:

- o carro da segurança, nos segue a meia luz, em escolta armada, pára defronte a casa, nos deseja uma boa noite, espera que a porta se abra, que todo mundo entre, e só então vai embora. 


Lá de dentro a moça cabeça grita pela janela:

- Tem pitza, vocês querem?

 Eles querem: vão passar a noite queimando petróleo e terão a clássica fome da madrugada. Engatam a ré para buscar a comida. Eu sou a incumbida de   entregar a pitza para a vigilância uniformizada. Eu que, há pouco era uma perigosa em potencial, e me sentira com as mãos no muro, para cima, revistada. 

Sorrio, meu sorriso de milênios,  e lhes desejo também uma boa noite. Tenho essa característica e dou graças a Deus por ela: impulsiva, um pouco rude, mas quando compreendo os motivos, a indignação logo me passa.

Também já sabia que tudo acabaria em pitza. 

Lá, bem mais ao sul, eu durmo  olhando estrelas. E quando ouço um gato, miando de fome na esquina, às 3 horas da madrugada, abro a porta da rua e  escancarada fica; sinto o frescor da noite, olho para o céu, respiro fundo, trato do gato, tranco a porta e vou dormir. Bem, até há um mês era isso o que eu fazia. Antes do Tokinho, depois do Tokinho. Mais um divisor de águas. 

- Caleidoscópio, loscópio, cópio, cópio, cópio.... o funk continua e eu já sei a letra de cor.


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Marlene. No outro dia, dou um jeito de conversar com ela. A história é mais nobre do que eu supunha. Mas de nobreza ainda preciso aprender para ensinar. 

Marlene e Darlene eram vizinhas. Marlene – aparência de 50, idade real de 40. Darlene, aparência de safada, idade real de 15. Mô a idade dos machos sem caráter. Feitas as devidas apresentações, Mô engravidou Darlene, e o conselho tutelar da infância e adolescência,  ficou sabendo. Engravidar menor dá umas complicações(zinhas) maiores. 


Para salvar o Mô, escondeu-se o Mô no casa de Marlene, único lugar onde a polícia não iria procurá-lo. Mas Darlene foi junto. 

E se as noites, para o Mô melhoraram, para Marlene virou um sofrimento dos mais puros. Uma noite ela chorou, e Mô ouviu. Então Mô perguntou, como na música do Bruno e Marrone:

- “Porque chora assim? No jogo do amor eu não fui desleal”... Conhecem a letra?

Ele não sabia!!! Que engraçadinho, esse Mô. Minha vontade é ir lá dar-lhe uns tapas nas fuças. 

 Mas Marlene é muito diferente de mim. Pacientemente, olhando para os olhos de Mô, explicou apertando as mãos em contrição confusa: - “Eu não to agüentando Mô, eu amo você, tá muito difícil pra mim."

Nessa hora, Mô tomou a decisão mais corajosa da sua vida. Porque Mô é homem de uma grande coragem: 

- “Darlene! De agora em diante você dorme no quarto com Marlene, até que a gente arrume um barraco para morar.”


E lá ficaram por um tempo, até que o novo casal se mudou, foram felizes por um tempo,  infelizes de novo, por outro tempo, e a vida andou: Darlene se mandou,  Mô voltou para a casa de Marlene, e o filho para a casa da avó, mãe de Darlene, que continua vizinha de Marlene.

Mas quem cuida do menino é Marlene. E como miséria pouca nem faz cócegas, a grande ainda estava aguardando para fazer a sua aparição: o menino, agora, está apresentando vitiligo, uma doença de pele de fundo emocional.  Marlene então, vem aprender com o doutor como se trata adequadamente um vitiligo, ouve a notícia de que a doença não tem cura,  e diz assim: “eu amo tanto aquele menino.”

Olhando nos seus olhos, me vem a última descoberta: são verdes - um caminho aberto para Deus. Marlene é maior do que eu pensava. Eu continuo pequena.


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Moral dessas histórias.

O que é a moral da história? É o ensinamento que você pode retirar daquilo que leu. Isso todo mundo sabe. Mas cada um retira da história, o que quer, o que precisa, o que deseja, ou o que lhe vai dentro do coração. E isso lembra algo que a Bíblia ensina: “ a boca fala do que está cheio o coração.” E a mente interpreta segundo essa abundância. 

 Se o seu coração estiver temeroso de tentar habitar em outro país, você pode entender, na fala do menino, que há uma indicação para não ir habitar em outro país. Mas se o seu coração estiver desejoso de habitar em outro país, então você entenderá que é preciso aprender a falar a língua do país, antes de habitar esse país. Se você vai, ou se você fica, afinal, é uma decisão sua. Que você não pode atribuir a mim ou tentar adivinhar o desejo do escritor, apenas pelo que escreve. O escritor é um caleidoscópio. 

Com a letra do funk você pode aprender que Deus registra tudo, e pode temer. Mas se você escolher brincar com o lobo mau, já sabe: “ eu disse mau, mau, mau... o lobo é super mau.” Outra escolha sua.

 Com Marlene, Mô e Darlene, o aprendizado é vasto como o mundo. Eu, por exemplo, escolhi Marlene como a princesa da minha história. Porque Marlene ama. Marlene ama com o amor dos puros, dos símplices, dos que se despojam de si para entregar ao outro o que ela tem de melhor. Marlene é a grande heroína da minha história. 

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Cheguei ontem de viagem. Vocês pensaram que eu tinha ido para o outro lado do mundo? Que nada. Bélgica me espera, mas ainda demora alguns meses. Ou anos: depende da decisão de Deus. O polígono da seca, no Piauí também.  Wanderley está ajeitando o meu envio como missionária.  Tudo incubado, aguardando o nascimento. Que por final, só nascerá se Deus não abortar esses dois fetos ainda prematuros, mas ganhando peso e força a cada dia. 

Paulo César Melges, de Londrina- PR,  a saudade estava sendo sua? Que nada! A saudade é minha. Voltei para dizer a vocês que escrever continua sendo a minha praia. Todo dia, uma vez ao dia, duas vezes ao dia, mil vezes ao dia. Enquanto Deus me permitir. Porque escrevo sob sua inspiração e, por isso, cada linha do que escrevo, só pode servir para honrar e glorificar ao nome dEle.

Mas isso depende da leitura que vocês fazem do meu texto. Só uma coisa não depende de nada: o amor de Deus, em suas múltiplas manifestações  por cada um de nós: as Marlenes, os Môs, e as Darlenes. 

Bom estar de volta. Tenham uma boa semana. 


Ana Ribas


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PRIMEIRA PARADA.
Primeira parada: um posto de gasolina.

Ele vai para o banheiro masculino, ela para o banheiro feminino.
Evidentemente.
Meio segundo depois no mesmo ângulo em que se separaram, voltam a se encontrar.

- O banheiro masculino está interditado? – ela pergunta.
- Está. Como você sabe? – ele responde.
-Tem um homem usando o banheiro feminino.

E mais não deu tempo de explicar. Acelera Brasil, sai na frente e esculhamba o dono do posto. Entra no carro, ainda xingando. Ela entra calada. O preço do álcool também estava a R$1 e não sei quanto e a confusão já estava formada.

- Você viu o homem? – ele pergunta.
- Não, eu vi a porta trancada – ela responde.
- E como você sabe que tinha um homem lá?
- porque ele disse: tá ocupado dona!!!
- E porque você não me explicou isso?
- Porque não deu tempo. Você saiu a mil por hora.
- Coitado do homem, nem merecia
- Imagine se merecesse.

Ele se irrita e ela ri.

10 Km depois, outro posto. Ele vai para o banheiro masculino, ela vai para o banheiro feminino.

Logo que ela entra, e fecha a porta, alguém entra e fecha a outra porta que dá acesso ao recinto. Por fora.

O que não dá para rir dá para chorar e vice versa. Dois minutos depois, e muitas pancadas na porta, a faxineira vem com a chave e a liberta.

De longe, ele ri. Ela está braba. A faxineira constrangida vem pedir desculpas. Ela aceita, ele retruca:

- Foi a senhora quem  soltou a minha mulher? Como a senhora me faz uma coisa dessas?


A mulher ri, o frentista ri, e todo mundo ri.


E você Etelvina, o que acha?


Depois dessa Etelvina de Oliveira é o seguinte: Eu te recomendo ir para Paris,  via Air France. Sem olhar para trás.


Ana Ribas




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O SINO DE OURO.
Ana Maria Ribas. 





Hoje quero falar sobre a espontaneidade da vida. A vida acontece. As coisas se constroem. E nós somos construídos com as coisas que são e acontecem.  Com as pessoas que tocamos. Com as convergências que não adivinhamos.  Com atos divinos: apenas humanos. 

Além de viver, da forma como vivem os homens, há  a capacidade de sermos plasmados em milhões de outras possibilidades. De que forma essas coisas acontecem? Em que momento exato da vida, por exemplo, deixamos de achar os animais meras criaturas de quatro patas e lhes atribuimos uma personalidade? Em que momento da vida, passamos a gostar de canjica e deixamos de gostar de arroz doce? Não sabemos. E nem mesmo sabemos, porque entramos em infindáveis gostos e des-gostos que, nos fazem imperceptivelmente mudados, a curto prazo, e completamente transformados a longo prazo.

Anos atrás, eu não acalentava nenhum amor pelos animais. Dava um fim em todos os cachorros que as crianças traziam, arrumando-lhes um novo dono, enquanto elas estavam na escola. E hoje, não apenas amo os animais como também sou deles uma admiradora e defensora apaixonada. Eu não saberia mais viver sem proteger os animais. 

 Em que momento essa metamorfose aconteceu? Em que dia deixei de ser a bruxa má para ser a rainha protetora? Eu não sei. Posso buscar na memória vestígios que me levem a uma provável explicação, mas isso não me daria o direito de dizer: foi ali que passei a amar cães, gatos, piriquitos, papagaios e a bicharada toda. 

A verdade é que a história subjetiva é, muitas vezes, mais  dinâmica do que a objetiva. Por causa disso,  quando o sino de ouro toca no céu, não conseguimos ouví-lo na terra. Somos surdos a essa espécie de chamado que nos abençoa em vida. E ainda assim, somos abençoados. 

Eu não tenho a pretensão  de compreender todas as coisas: seria muita onipotência desejar viver com essa máxima compreensão. Eu só gostaria de interpretar adequadamente,  em que exato momento, o que era externo se me tornou tão visceral a ponto de se fazer parte integrante de mim, de maneira que existir, sem tais convicções, me parece, agora, tão difícil.  

Esse tema me veio de maneira muito forte.  E foi assim que me veio: Eu tomava meu segundo café da manhã – às 10 horas da manhã. E diante de mim estava o pão integral, o mel e a margarina. Que sobrepostos, formaram um fatia grossa. Uma considerável porção de carboidrato para se gastar na academia. Devagar, lentamente, fui cortando aquela fatia em pedacinhos – tenho essa mania de cortar tudo em pedacinhos  – e fui comendo até que: o pão sumiu. 

Dentro de mim, o pão. Fora de mim, mais nada. 

Em raro momento de cintilância divina,  percebi que não há nada que nos modifique por dentro, que não tenha um reflexo por fora.  Também percebi que há situações nesta vida tão extremas que, enquanto não as assimilamos como parte de nós, elas se tornam fardos fora de nós, fardos que temos que carregar, como uma carga. Mas, quando permitimos que o peso  se misture às nossas experiências de vida – como a fatia de pão se misturou a mim, e se tornara agora parte do meu ser- então ganhamos um novo jeito de ver, de olhar, de existir, de perceber, de nos mover na terra. Um alento para prosseguir. 

Tudo exige um processo metabólico: seja o pão que saboreamos ou as dores pelas quais passamos. A diferença é: onde estamos carregando a nossa dor? Nos lombos, por fora, como carga pesada que sacrifica um animal, e o curva diante dos homens? Ou por dentro, com a harmonia invisível dos seres que, compreendendo ou não compreendendo, curvam o espírito diante de Deus? 

 Eis aí algo celestial a ser pensado, com a diligência máxima de quem procura o toque de um sino de ouro. Blém, Blém, Blém...



Ana Ribas




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PARA SEMPRE TE AMAREI. 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 





Todo domingo é assim: uma dia em que preciso escrever. Um dia em que em algum lugar do mundo deve estar havendo um equívoco. Porque vocês todos somem- vão para onde vocês? - e eu apareço. 

Para onde vão vocês aos domingos?

- Vão para a praia? Aqui não tem.
- Vão para os shopings? Aqui não tem.
- Vão para os teatros? Aqui não tem. 
- Vão para a casa da mãe? Aqui não tem. 

Mas também não faz a mínima diferença. Escreverei  para uns poucos perdidos num domingo sujo. 

Ou limpo. Já limpei todos os cocôs dos cachorros em volta da piscina porque hoje Nalva não vem. Hoje também é dia de lembrar a falta que Nalva me faz, e o aumento de salário que ela merece, mas que o presidente Lula não reconhece.  Eu não posso ser mais reconhecida do que o presidente, porque ele é a autoridade máxima. 

Domingo é dia de Maria mas também pode ser dia de Amadeu. Amadeu Bernardelli. Hoje amanheci com saudades dele: personalidade caricata e muito intrigante. Poucos dias antes de morrer, estávamos os dois no hospital, ele com o braço magro todo furado por inúmeras agulhadas, o rosto abatido,  a alma ainda procurando alento;

-Ana, eu vou te explicar o que é a morte. – Ele me disse olhando ora para mim, ora para o azul do céu, que aparecia em nesgas pela cortina do quarto hospitalar.  
-Explique, então. 
- A morte é assim como se o cabra estivesse muito cansado depois de um longo dia de trabalho. Daqueles lá na fazenda, carregando saco. E aí, sem mais nem menos, ele deita, dorme e quando acorda, pergunta: mas já amanheceu? A morte é isso. 
- E quando será o amanhecer? – eu instigo a resposta só para ter a máxima certeza  de que ele, finalmente, compreendeu tudo. 
- O amanhecer será quando Jesus voltar.

Ele sabia! Com toda a irreverência que o acompanhou em vida, ele sabia dessa delicadeza que me parecia tão impossível de se saber no mundo dos que apenas vivem.  

Era também um cara de surpresas brutas. Que por mais brutas que fossem, vinham sempre acompanhas de humor. 

Um dia, bate-lhe na porta, um mendigo. Que não era assim bem um mendigo, mas um cidadão cansado do trabalho, espreitando a mendicância. Homem forte, parrudo. 

 Amadeu Bernardelli atende o homem lá da rede, deitado na varanda. O homem começa a desfiar uma história comprida, como prefácio para o pedido. Meu sogro, levemente irritado com a história forjada, e mais irritado ainda com o seu descanso interrompido, propõe  ao sujeito a seguinte questão:

- Se você parar a sua história por aí, leva cincão, se continuar, leva hum  só. E tirando do bolso os 5 reais, despachou o sujeito, rua afora. 

Num dia de muita dor para mim, ele me disse chorando muito: 

- Por que ele e não eu?  Em toda uma vida foi a primeira vez que vi meu sogro chorar. Nem mesmo quando teve a perda  da sua prória cria, ele chorou. Mas naquele dia, já devidamente surrado pela vida, alquebrado pelo peso dos anos,  meu sogro chorou.

Mas essa lembrança não é puramente minha, é uma lembrança compartilhada com outros afetos. 

A lembrança mais pura, aquela que ficou sendo puramente minha,  foi no dia em que eu estava aprendendo a andar de bicicleta, levantando e caindo, levantando de novo para cair de novo, toda ralada, a molecada atrás de mim, alarido de festa em plena rua, e ele passou, parou, avaliou o meu comportamento, e  disse-me assim: 

- “Se eu fosse, pelo menos 20 anos mais novo, e não fosse seu sogro, você não seria a minha nora.”

 O tom era de quem finge estar irritado, mas nas linhas e nas entrelinhas, ele esparramou-se  em  um amor tão delicado! Que eu fiquei comovida e até agora me comovo. Ele estava dizendo que se casaria comigo!  

Aquilo foi tão grande para mim, que dali até a sua morte, a minha resposta em atos concretos de vida,  foi assim: 

- “Eu também te amo, seu Amadeu. Para sempre te amarei.”  




Ana Ribas




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DOCE COMO ALGODÃO DOCE. 
ANA MARIA RIBAS. 





- Vovó Ana você sabia que a minha mãe me levou em São Paulo, para ver as patinadoras no gelo? Eu fui,  de vestido cor-de-rosa. 

Ela está na fase do “você sabia”. As palavras ditas com rapidez de relâmpago.  Nove entre dez,  começam assim. Eu estou na fase do “nada sei”. Ela olha o mundo com um olhar invictamente cor-derosa. Eu me visto de verde-periquito para disfarçar o gelo. 

Dois mundos nos separam e uma genética marcadamente forte nos aproxima. Eu sou ela ontem, e queira Deus, que ela não me seja eu, amanhã. 

- Sabia que eu tô com saudades de você? Ela me fala- dengosa. 

Saudades é pouco quando se trata de obter um único e necessário olhar para o futuro dos outros. Que da alegria dos outros podemos nos vestir quando ficamos sem a nossa. Por osmose, sempre acabamos nos contagiando. E há 2 meses tem-me faltado esse necessário contágio. 

- Sabia que o meu pai foi para “Isael”? O pai está lá a serviço do reino, por uns dias. 

Israel seria um dos poucos destinos que me levariam para longe de casa. Foi lá que escrevi num guardanapo o título do meu livro: “Não há Jerusalém sem Gólgota.” Olhando do Monte das Oliveiras, eu vi Jerusalém e vi o Gólgota, que nem estava acessível à linha da visão, mas eu vi. Cinco anos depois, em exatos 7 dias e 7 noites jogo no papel os sentimentos daquele dia e me nasce enfim:  “ Não há Jerusalém sem Gólgota.” 

Mas essa que me telefona em cor-de-rosa, essa que eu amo tanto, não sei direito o que fazer com ela. Na chegada sim, eu sei: beijos, abraços, tudo o que é gostoso. Mas isso, para uma criança, é um preâmbulo: em seguida, ela espera que venham intermináveis subidas e descidas na casa da árvore, mas o gás da alegria logo me acaba e eu fico toda confusa.

Sinto o desamparo da extrema doçura.  Porque o meu amar só sabe amar na linha do tempo, ininterruptamente,  quando dentro dele cabe o infinito. Que vocação eu tenho para o infinito! Só o infinito pode me preencher. Há tempos desisti de ser preenchida com o áspero barro, ou com o mais terno dos ternos encantos. Não acontece assim. Comigo não acontece.  Só Deus me salva de um olhar comprido sobre o por do sol. Só Deus me salva do último suspiro antes de adormecer. Enfim. 

Mas eu tenho netos – dois – e tenho essa que me é neta e que escolheu como modelo a avó. Diante dela, algodão doce perde o doce para mim, tão ínsipido fica.  E ainda sentindo esse desamparo, preciso encontrar um jeito de ser o que ela pensa que sou,  e já o procuro antes que o carro pare na porta.

Mesmo cansada dos 800 km de viagem, retoco a maquiagem, penteio o cabelo, coloco o cinto, fecho o zíper da bota, procuro na bolsa um brinco, na frasqueira um perfume, troco o óculos de grau por um óculos de sol, cumpro todo o protocolo que deve cumprir uma avó que é modelo para a neta. Faço tudo isso só para ela. 

Eu lhe sou a ponte movediça entre dois castelos. Em um castelo, habita a mãe, cabeça. Em outro, a avó – Martha Rocha, talvez, para ela? Ou Ana Maria Braga?  Que sei eu? Que sei eu, dessa, cor-de-rosa rosíssima, que vem para mim, de lábios apertados, não para o beijo, mas para o batom?

Eu acho que lhe sou o futuro possível: ela não quer a profissão de  dentista, como a mãe, ela quer  a profissão de vovó Ana. 

A satisfação que eu lhe devo, sendo o que ela espera que eu seja, me é devolvida em forma do mais profundo amor: seu olhar me acompanha de maneira tão atenta, que eu não ando, flutuo. 


Doce como algodão doce. Até a hora de voltar. 




Ana Ribas




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EU JÁ TENHO VOZ.
ANA MARIA RIBAS.




  
Desde que ouvi Rosemeri Tunala, declamando um poema, fiquei desejando criar uma palavra, em áudio, para vocês.  Mas – pensei- não sou poeta. O que  falar em hum minuto? E depois, me veio a questão do sotaque, terrivelmente do interiorrrr. Um sotaque caipira, do qual nunca consegui me livrar, nem fazendo muita força. E as questões técnicas: como gravar, sem uma mixagem, sem uma musiquinha de fundo? Ficaria muito pobre!  Enfim, a vontade foi ficando de lado, mas me era recorrente. De vez em quando, voltava lá de novo, e dá-lhe Tunala em “Como é Bom Sentir.” Sem mixagem nenhuma, ela por ela e só.   Essa Rosemeri é uma delicadeza das mais puras: uma voz pequena, mas essa voz pequena tem uma melodia que areja a alma, como brisa do mar. Ouçam! 

Na noite anterior a esta,  sonhei que  tentava incluir um texto e me vinha uma mensagem de retorno: “texto não compatível.” Espiei o tal incompatível: era pequeno, de poucas linhas.  Já lhes falei como dou atenção aos meus sonhos, e como tenho o dom de identificar quando eles vêem de Deus. Entendi o recado: era a hora de me dar voz, ou melhor, de dar-me em voz para vocês. Com sotaque e tudo. 

Fui em busca de ajuda para conseguir gravar. Minha inexperiência me fazia pensar que seria necessário algum outro aparelho além do pc para realizar a transferência de arquivos. Na minha cabeça, só cabia a transferência vinda de outra máquina para esta. Pensei em ir ao Paraguai buscar qualquer coisa com gravador e o tal Bluetooh. Moro relativamente perto do Paraguai.  Mas com a alta do dólar, desisti de vez. 

Meu MP4! Fui em busca do meu MP4, perdido há tempo, em alguma gaveta. Gastei cerca de dois dias procurando o dito cujo. Mas sou organizada, esse foi um episódio avulso - tenho uma filha que também usa o meu MP4 e daí resulta que não há um único lugar para esse.  Finalmente, quando encontro, não faço a mínima idéia de como gravar e como realizar a transferência. 

Procuro o Maicon. Maicon é meu vizinho, fera no assunto. Ele vem, gravamos: a voz desaparece em meio a um ruído que parece estar vindo de Marte. Uma hora depois, e várias tentativas frustradas, tarde perdida,  Maicon resolve usar a chave que abriria o enigma:

- Ana, porque você não compra um microfone? 
-Mas eu tenho um microfone...
-Ah, tem? Então traga lá. 

Trago o microfone, o programa já veio na máquina. Dois minutos depois a minha voz inunda a sala, diretamente do pc. Para mim, ficou ótima, nem mereço tanto. Ganho voz e  o direito a, finalmente, “como é bom sonhar”.

São 22 horas e 35 minutos, horário em que escrevo. Já gravei 4 áudios, dessa qualidade que vocês poderão conferir ouvindo.  Todos eles com uma mensagem simples, baseada nas verdades mais simples da Palavra de Deus. Até eu me surpreendo com a simplicidade daquilo que me vem, quase improvisando: “a abelha foi chamada para produzir mel. 

-Mas isso não é o óbvio, Deus? 
-Isso é o óbvio visto do lado direito. Experimente virar do avesso. 
-Então tá. 

Dois minutos depois, entendo:  a abelha foi chamada para produzir o mel, mas ela acabou com ferrão,  picando as pessoas. Alguém estragou o projeto original de Deus. E por causa disso, a abelha  pica, e quando pica, dói. Que danada! 

Começo a compreender que o mistério não é tão simples. Todos fomos feitos para um objetivo nobre, mas o ferrão, esse nos vem como um anexo de última hora, acompanhando o rabo. Ou a cauda, você escolhe.

 Eu fico com cauda. Acho mais chic. 

E assim, com cauda e tudo, percebo que a iluminação é um dom que vem do céu, enquanto escrevemos, ouvimos, ou lemos, sem necessidade de grandes elucubrações mentais. Porque a palavra é uma semente e a semente contém vida. Mas a vida contida na semente não fica evidente, assim como a vida contida na palavra também está oculta. Mas, subitamente, um dia vinga, para aqueles que cultivam a terra. 

Esse "subitamente" vem de cima. E se não vier de cima e do alto, não virá, de nenhuma outra maneira.  E nem precisa vir pela voz de trovão,  de João Batista. Pode vir pela voz pequena de  Elias, o Tesbita. 

 Mas essa é de Ana Maria: voz do interiorrrr do Paraná, do interior de mim, do interior de Deus. 


Aos mestres do Recanto das Letras - simplezinho, mas  com carinho!




Ana Ribas




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VINTE E QUATRO HORAS.  
ANA MARIA RIBAS. 




Não posso olhar o dia de perto sem enxergá-lo de longe, nas suas vinte e quatro horas. Tudo bem que seis são para dormir. Mas ainda me sobra muito. E esse muito é tão pouco que não dou conta.  Como gastar, enfim o meu dia? Como gastar fazendo o que gosto muito, e preenchendo as brechas com o que gosto menos, se o que gosto muito não me deixa brecha para gastar no que gosto menos? Quantas coisas tem-se acumulado em minha vida à espera de uma brecha: coisas importantes que não mereciam brechas, mas um horário fixo, um dia fixo, uma data determinada a não se esquecer. 




 Uma olhada retroativa no calendário particular, aquele que cada um coleciona marcando as datas especiais,  mostra-me que o dia dois de outubro já  foi, e eu bem sabia que já tinha ido. Mas ficava transferindo o mea culpa e a solução para o outro dia. Esse era o dia. 




 Quem sabe comprando um livro do assunto que ele mais gosta,  não consigo acalmar  o casal? -  ela também, indignadíssima comigo,- e com toda razão-  porque esqueci de cumprimentá-lo no dia do aniversário. Esse: dois de outubro. Faço as contas: com seis dias de atraso, preciso caprichar no presente e no cartão. Preciso bordar em letras de amor o que me faltou em lembrança. Meu Deus, como pude esquecer?




 Nem preciso de Deus para a resposta. Saio tão pouco de casa, uso tão pouco o talão de cheques, nada que me aproxime da necessidade de perguntar ao  primeiro vivente que passa ao lado: “em que dia, mês e ano estamos nós, depois da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo?” que esqueci! Acontece-me de esquecer. 




Um livro que trate de uma guerra, contrabalanceando ideologia e horror, embrulhado em papel dourado, com um cartão feito no capricho,  me redimiria desse pecado. São 10 horas da manhã, hoje não tenho obrigações a que eu mesma me imponho, como parte da disciplina.  Dá tempo de ir até a cidade vizinha, porque a minha – ainda- não tem uma livraria. 




 -Ainda se fala assim? Livraria? 




 Esses dias tentei convencer o Ivo da absoluta necessida de termos uma livraria: A Livraria da Beth! Mas como não sou a Beth, e o meu marido não se chama Zuenir, a resposta foi um silêncio de profunda indignação. Ivo não acredita mais nos meus dotes empresariais, porque já provei que não tenho dotes empresariais e como não há prova sem ônus, adivinha quem pagou o ônus? Pois é : ele mesmo.




 Então seguimos para Umuarama – eu comigo mesma-  a métropole mais próxima. Que também não tem uma mega livraria que reúna muitos títulos.  Mas tem algo que se aproxima. O esforço mais honesto que se faz em favor do universo literário recebe o nome de Livraria Paraná. As 11,00 horas estou dentro dela. Já vou entrando e perguntando:




 - Chegou “A Louca da Casa?”




 As moças se entreolham e percebo que devem pensar que a louca sou eu: já é a terceira vez, em dois meses, que apareço por lá perguntando sobre a louca da casa. Também percebo que estão  mal preparadas para vender livros porque jamais ouviram falar nesse título. E em outros, que perguntei.




 Mas  fui até Umuarama  para comprar um livro cujo tema seja uma guerra, qualquer guerra que tenha havido no universo, menos as guerras domésticas. Fui comprar um livro para presentear uma pessoa que me ama muito, e que eu também amo muito, mas que fez aniversário há seis dias  e eu esqueci. 




 No caminho até o expositor, uma nova tentativa para me presentear, resulta em uma nova impossibilidade. 




  - Tem Clarice Lispector? 
- Qual o nome do livro?
- Qualquer um. 




  Também não tem qualquer um.

Sem encontrar um único livro que trate das guerras de que ele gosta, encontro um tema que se aproxima, pelo doloroso e pelo verídico. Para ele: “ 102 Minutos – A História Inédita da Luta pela Vida nas Torres Gêmeas”. Para mim: “Uma Breve História do Mundo”. 




 Passo na famárcia de manipulação, mando manipular o creme que uso sempre. Percebo que o Dr. Humberto faz um esforço enorme para lembrar-se de mim e não consegue. Eu também não me lembrava mais do nome dele- só da simpatia- mas dou um jeito de perguntar para a atendente. Então começo a chamá-lo pelo nome e percebo que o sofrimento dele aumenta. Mas como são educados e sensíveis os homens orientais! Finalmente, quando retiro a receita da pasta, ele lê o meu nome e se ilumina todo. Comenta comigo, olhando no cadastro: 




 -“Ana há quase dois anos  você mandou manipular  esse creme aqui. Olha como passa o tempo!” – E não é que falando assim ele quer se desculpar? Nem precisa, meu querido, nem precisa.  




 É verdade, há quase dois anos. E há  seis dias Álvaro Henrique  Ribas Sass comemorou mais um aniversário, e eu esqueci de lhe dizer o quanto ele é importante para mim. Pois vou dizer agora, já que na hora em que deixei o presente ele não estava em casa:




  -“Querido, perdoe-me o esquecimento. Perdoe-me porque a tia te ama muitíssimo e aos que muito amam, além dos sentimentos também se lhes exige muitos pensamentos.  Pois foram esses, Henrique, foram esses, que me fizeram perder o tino.  Que Deus o abençoe grandemente. Que Ele jamais esqueça de lhe lembrar que é preciso nascer e renascer, todos os dias da sua vida,  em esperança, em paz, em justiça, e em fidelidade, diante de Deus e diante dos homens.”




 Acho que redimida estou. Até o próximo dois de outubro. 




Ana Ribas




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QUEM NÃO DESCE FICA SÓ.
ANA MARIA RIBAS. 






Eu conheço seres de uma espécie tão densa que quando escrevem não vem a letra, vem a matéria prima. Prima da dor, prima da solidão, prima da tristeza. Eu conheço uns seres tão profundos que, sob tal profundidade, viver lhes é uma tarefa muito solitária. Então, eu,  mediana nas linhas dos medianos, daqueles que muito esporadicamente colocam os olhos para fora, mais afundo na solidão do outro. A minha solidão soma-se  à desses tais e sob tal equação- que não desejo mas acontece - sucumbir ao peso é inevitável. 

Não sei em que momento verdadeiramente os conheci nesse conhecimento que sabe além do que deveria saber. Mas houve um momento em que esse conhecimento abriu-se para mim como uma cortina de voial ao sabor do vento, velando e mostrando, mostrando e velando. De sobressalto em sobressalto vou descobrindo o que nem pedi para descobrir, mas que me veio em súbita iluminação. Que dependendo do lado em que se olha parece ser indiscrição. Mas é amor. Amor que simboliza um marco nos meus ritos de passagem. 

Há alguns anos, cultivar esse amor me seria impossível. Mas hoje avelhantada de alma e contrita de espírito, ignoro o corpo e  dou-me ao luxo de amar a quem amo. Digo em alto e bom som para quem quero dizer: “ meu querido”. Ou “ minha querida”. Adquiri o direito de proclamar que a humanidade me é querida, e faço dessa doce palavra uma extensão dos meus pensamentos.

 Que valor tem para mim poder expressar os meus pensamentos!  Esse é o lado bom. O lado bom de penetrar no outro é saber exatamente em quem você tem depositado as suas reservas emocionais, os pronomes de tratamento, os verbos e os adjetivos, que inventamos para sermos nós, para marcarmos o mundo com a nossa rubrica histórica. 

A melhor coisa que o tempo me trouxe foi exatamente isto: ver a pessoa de alma nua e saber distinguir o que é bonitinho do que é ordinário. 

O lado ruim é que ver, de repente, se torna tão perigoso. Não o perigo de Davi com Bate Seba, mas o perigo do Cristo que, olhando para cima avistou Zaqueu e nesse avistar que outra coisa pôde fazer senão dizer:  “desce depressa Zaqueu, porque hoje me convém pousar em sua casa.” 

Porque o Cristo pôde entrar na casa de Zaqueu sem ter sido convidado. Cristo pôde. Mas eu precisaria do convite. E o convite, que seria a forma socialmente correta da indiscrição possível, pode me ser tão intransponível quanto uma porta fechada. 

Quando uma matéria ávida de Deus  se fecha para os mensageiros de Deus, só resta ao Cristo vir em pessoa. E ainda assim, Zaqueu precisa descer da árvore.


 Eu sigo em frente,  com o meu susto profundo. 




Ana Ribas




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A BENGALA QUE ERA DO MEU PAI.
ANA MARIA RIBAS. 






As coisas que têm um valor sentimental podem trazer alegria, conforto e mesmo desconforto. Um dos três sentimentos ou os três alternados. Sentimentos que nunca podem ser verdadeiramente puros: porque a saudade pode manchá-los. E nesse caso, os conservamos com manchas. 


As coisas que têm um valor sentimental pulsam para além dos átomos de que são feitas. Prescindem do valor, da beleza e da utilidade. Delas já não se cobra uma função: existem apenas.


Como a bengala que foi do meu pai, servindo-lhe de apoio durante os últimos anos de vida. E que também lhe serviu de instrumento de protesto: quanta bengalada meu pai desferiu contra o ar, sempre para cima, nunca para os lados. Que violento meu pai nunca foi. Foi apenas um protestador pacífico. 


Pois essa bengala tinha para mim um grande valor sentimental. De quando em quando, eu passeava com ela pelo jardim de casa, em volta da piscina, em traje de banho, apenas para sentir no duro da madeira a lembrança quente e macia da mão do meu pai. E também por esse motivo: o motivo que leva a menina a antecipar o futuro, usando os sapatos de saltos altos da mãe. Mas essa era a bengala de meu pai. 


A bengala do meu pai estava sob a minha estrita posse desde o dia 20 de novembro de 2001 quando ele nos deixou. E que lugar eu escolhi para manter intacta a bengala do meu pai: o cantinho do box do banheiro que era dele. E que ninguém mais usava. 


Meu pai morava nos fundos da minha casa, mas não devia. Devia morar na frente, no melhor cômodo da casa, na sala de visitas. Dei às visitas que nunca me visitavam o melhor cômodo, e dei para o meu pai, aquele que me gerou, os fundos da minha casa.


Interessante que, enquanto ele estava vivo parecia-me tão normal dizer: “ meu pai mora comigo, lá nos fundos de casa.” 


Vivo ele, o fundo de casa me era um lugar digno: ensolarado, amplo, quase um loft, onde depois que ele se foi montei a minha academia de ginástica. Mas morto o pai, o lugar me pareceu indigno de sua memória. E eu, indigna de ser sua filha. E foi nessa indignidade toda que aprendi que não se dá, como única opção, para os que estão partindo deste mundo, os fundos de casa. Os que estão partindo devem fazê-lo pela frente.


Incomodada em minha alma, e sem saber como expor esse que me era o incômodo, procurei o Ivo e tentei vender a ele a idéia estapafúrdia de demolir a construção, e fazer ali um jardim. – “Um jardim japonês”, eu disse a ele, entusiasmada, pensando que, ao acrescentar uma qualificativa ao meu jardim, estaria melhor convencendo o dono da casa e do dinheiro, a dar-me autorização e verbas para a construção do jardim. 


Não adiantou: Ivo me disse assim mesmo: “é mais fácil eu te comprar uma passagem para você visitar os jardins do Japão, do que concordar com essa idéia absurda de demolir o que já está pronto.” E ainda acrescentou com a lógica dos brutos: “isso aqui ainda pode servir para um de nós dois, no futuro.”


Mas que insensível sabe ser esse bruto, esse que me compreende tanto nas manhãs de domingo, mas age com a lógica dos homens de negócio nas segundas, e nas terças, e nas quartas, e nos demais dias da semana. 


Então, pedi para montar uma academia e ele concordou. Uma academia de nada, para uma malhadora de nada: alguns poucos aparelhos, uma esteira, uns pesinhos. E aquilo me valeu de muito: passava as manhãs ali entre meus cachorrros e meus livros, deitada num colchonete, pensando. Que pensar, e conversar com meus bichos, é matéria de que gosto muito. 


Um dia, aposentei a academia dos fundos de casa, e passei a frequentar para valer, a academia que se instalou na rua da minha casa: muito mais moderna, cheia de som e de vida. E de jovens que me tratam como se tratam aos iguais. Uma alegria só. 


E a Nalva, essa, passou-me a usar o banheiro, o tal banheiro que escondia a bengala em reserva de lembrança eruginosa. 


Pois num desses dias, quando Nalva precisou aliviar-se de suas necessidades, bateu a porta do banheiro por dentro, e ao tentar sair, descobriu-se trancada. Para sempre trancada. O trinco do lado de dentro, havia sumido, num passe de mágica. E dá-lhe grito. E dá-lhe que ninguém ouvia seus gritos, tão grande é o mausoléu a que chamo casa. 


Sobrou para quem? Para a bengala! Não sei o que levou Nalva a pensar que dando bengaladas na porta, a porta se abriria. O fato é que fui encontrá-la chorando, algumas horas depois, quando senti fome de comida e não senti cheiro de almoço. Sentada no chão, suando em bicas, lá estava Nalva. A porta com algumas escoriações. A bengala, quebrada. Quando vi Nalva naquela situação, também chorei: pela bengala. 


Não sei se ainda tenho em casa os pedaços daquela que, um dia, foram bengalas. Ouso pensar que sim, que Nalva me fez essa bondade. Mas prefiro não saber e por isso não pergunto.A dúvida me é menos angustiante do que a certeza. 


Em meu coração, ainda tenho aquela bengala. E outras coisas mais, que me doem. Como bengaladas na cabeça, essas coisas me doem. 




Ana Ribas




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SE VOCÊ FÔR, NÃO SE ESQUEÇA DE VOLTAR.
ANA BERNARDELLI. 






Há alguns anos, eu estava em Nova York e tinha o dia livre. Tomei o café da manhã, no hotel, e fui caminhar no Central Park, que ficava bem próximo dalí. Quando regressei, por volta das 16,00 horas, uma das mesas ainda estava ocupada desde as 8,00 horas da manhã: uma mulher dormia, debruçada sobre ela. Na verdade, ela não só dormia: Ela roncava, balançando cristais


No ímpeto do momento, sem me lembrar da cultura da individualidade, largamente difundida na “Capital da Liberdade”, solicitei ao garçon, para que verificasse o que acontecia ali. Mas a equipe de garçons, que servira o café da manhã, já havia sido trocada. Consegui, enfim saber o que me interessava: essa era a rotina acostumada daquela velha milionária excêntrica. Ela residia no hotel e passava o restante do dia, comendo, dormindo, acordando, comendo, dormindo, acordando, indefinidamente, até que a noite chegasse, e ela fosse conduzida ao quarto, para, enfim, dormir.


Naquele momento, tentei realizar esse exercício de transferência tão necessário, quando se está em terra estranha: Compreender a mulher, sua solidão, sua rotina de milionária, para, de certa forma, amenizar a estranheza que aquela atitude me causava. Morando num dos metros quadrados mais caros do mundo, coberta de jóias, com as unhas muito vermelhas, a mulher, debruçada sobre a mesa, dormia o sono dos indigentes.


Em qualquer parte do mundo um velho abandonado é frágil, mas em Nova York, a fragilidade vinha revestida de poder. De tempos em tempos, o garçon, vestido de pingüim, aproximava-se, cerimonioso, trocava a água, o café, e de repente, sem nenhuma cerimônia, abria a bolsa da mulher, dava-lhe um comprimido que ela engolia, obediente, num gorgolejar de ganso, e, passado aquele momento, de breve lucidez, ela submergia, novamente, no mesmo sono. 


No ângulo em que me sentara, eu podia vê-la. De início, como uma caricatura de mal gosto, a observava, com fixidez de espanto. De quando em quando, levantava molemente a cabeça, olhava em volta, sem nenhum susto ou pudor, para logo depois, mergulhar de novo sobre a mesa, num mergulho de morte. Tudo transcorrendo num clima de perfeita normalidade.


Ao som de uma música suave, que não era nenhum bolero ou tango, mas tinha lá a sua afinidade sonora, o ambiente poderia lembrar, talvez, um cabaré da velha Argentina. O garçon se movendo, acostumado, por entre o brilho do latão e a transparência dos cristais. A velhinha dormindo sobre a mesa, também acostumada. E eu ali, tentando me desvencilhar de sentimentos que não podiam ser meus.


Em evidência, confrontavam-se naquele momento, duas situações antagônicas: o direito que a cultura americana conferia à velha anciã de dormir, roncar e babar sobre a mesa, garantindo-lhe a indiferença coletiva, a ausência de pena ou de pesar, chocando-se com o meu direito, o direito desta outra América, perplexa de sentimentos e de compaixão, devidamente representada por mim.


Sentei-me ao lado, pedi um café, abri um livro e fiquei, como figurante, acompanhando com certa reverência aquela cena, que parecia ter sido concebida por algum diretor de cinema americano.


Nem a imponência arquitetônica de Manhatan, nem a tecnologia americana, nem a diversidade cultural, nem o luxo de Madison Square, nem a agitação da 5ª Avenida, nem as pessoas amalucadas que cruzaram comigo, nem as luzes da Broadway, nada marcou-me mais do que aquilo. De uma certa maneira, eu me introduzi naquele cenário, participando do espetáculo, tornando-me íntima dos protagonistas: Éramos três!


Éramos três intérpretes de uma dialética silenciosa, cujo diálogo mudo beirava a fantasia de um hospício, e nos permitia a familiaridade simulada, a intimidade fingida. Nesse estar em casa, sem estar em casa, poderíamos olhar de frente, uns para os outros, poderíamos tirar o sapato e coçar o pé, de maneira quase íntima, sem nos reconhecermos jamais, pelo simples motivo de que nunca nos víramos antes, e nunca jamais nos veríamos depois.


Naquele ambiente luxuoso, tudo era mesmo postiço. Como a falsa leveza com que eu me sentava no sofá, de pernas cruzadas, a tudo assistindo, o garçon se movia, elegante, pelo salão, em tudo contribuindo, e a velha dormia relaxada, sobre a mesa, a nada compreendendo.


Por razões que nunca saberíamos explicar, e nem seria preciso, nós nos estranharíamos pelo século dos séculos e, ainda assim seríamos cúmplices e reféns da mesma miséria, vencidos pela mesmas limitações. A indigência do homem passeava despudorada naquele salão, mostrava a sua cara mais exótica, vingava-se do luxo que havia à nossa volta, naquele saguão: uma turista melancólica, um mordomo frio e eficiente e uma milionária decadente, compartilhavam o mesmo bule de café amanhecido há séculos, com o gosto da solidão, tristeza e amargura. 


Naquele momento, “flashs” da infância passaram como um raio pela minha memória, quando a voz da minha mãe me dizia, bem baixinho: “Menina, não olhe, não seja curiosa... é feio!” 


Mas, por ser tarde demais, eu olhei. Eu olhei e vi, como a vida toda tenho olhado e visto, o que muitos não conseguem ver. E não apenas isso: eu não somente vi, mas também compreendi, como jamais gostaria de compreender.


Enigmas permaneciam indecifraváveis dentro de mim. Ainda assim eu soube. De alguma maneira, eu soube que ali estava um espetáculo mais trágico, mais triste, e mais real do que “A Bela e a Fera” , que estava sendo levado pela Broadway, a poucas quadras do hotel. De alguma maneira, eu descobri que aquela mulher não tinha marido, não tinha filhos, não tinha netos, ninguém com quem pudesse compartilhar uma xícara de café e uma história. Descobri que, fossem quais fossem, os laços que ela houvesse criado em sua trajetória, esses laços tinham-se rompido ao longo da vida, e o que lhe restava agora, era apenas, a miséria de uma gorda conta bancária e um anônimo quarto de hotel. Fossem quais fossem os relacionamentos que ela construíra ao longo do tempo, haviam-se evaporado, não lhe restando, nem ao menos, raízes estáveis que sustentassem uma casa no campo, um jardinzinho saudando a chegada da primavera, um cãozinho que, abanando o rabo, lambesse seu rosto a cada manhã, um santuário só seu, para abrigar a galeria dos sonhos destruídos, as fotos, os livros, as pequenas coisas que dão à vida um sentido tribal sagrado.


De alguma maneira eu olhei, e no segundo seguinte vi tudo isso, sem conseguir deixar de ver menos do que isso. 


Quando me levantei dalí, eu o fiz com uma certeza: A rotina, seja ela em Nova York, ao lado do Central Park, ou no Brasil, na minha pequena Cruzeiro do Oeste, se não for acompanhada de objetivos significativos e eternos, é sempre um balé grosseiro, desumanizado, quase virtual.


Olhando para aquela mulher, como quem cava fundo na terra, acrescentei um conceito novo aos valores da vida: nenhum homem consegue prescindir, totalmente, da rotina, mas todo homem pode e deve preencher a rotina com escolhas significativas e duráveis. 


Naquele fim de tarde, em Nova York, consegui formular, uma proposição definitiva sobre a mordomia do homem na administração do tempo, e da vida: É preciso dar à rotina objetivos significativos e transcedentais. É preciso fortalecer os relacionamentos, criando vínculos, cujos elos possam merecer a chama ardente de um coração apaixonado. Mas, se não for possível a paixão, pelo menos, que eles mereçam a obstinação de um guerreiro que não vacila, que compreende o amor à sua gente, como o tesouro mais precioso a ser preservado. 


É preciso ver Deus refletido no espelho, do outro lado do salão, enquanto nos movemos nesta terra, com a característica mais sublime, dos viajores celestiais: A característica da fé que considera fundamental o momento de regressar. Porque a morte espiritual e a concupiscência do mundo, são parceiros da inconsciência, de quem passa a vida dormindo, sem saber como encontrar o caminho de volta para a casa.


Naquela tarde, em Nova York, desejei encontrar, ainda mais rapidamente, o caminho de volta para casa. Caminhei até a calçada, respirei fundo, e olhei para o céu...


Ana Maria, New York, 1996.




Ana Ribas




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VAI LÁ NA MINHA TAMBÉM.
ANA BERNARDELLI. 






Ele me disse assim: "Ana, quando eu tiver uma filha, ela vai se chamar Sophia Bernardelli." E o nome dele é Emannuel Clélio, e o seu sobrenome não é Bernardelli.


Sempre visito Emannuel em sua escrivaninha. E ainda depois que leio o texto, leio o contexto: a linha e as entrelinhas. 


Ah, a compreensão das pessoas, a súbita iluminação do mundo do outro através da palavra, o desvendar de horizontes apenas pressentidos. 


E eu fico pensando. Que danado é esse Emannuel. Escolheu um nome para a sua filha que combina com o meu sobrenome italiano enquanto eu, dona do sobrenome italiano, escolhi para minhas filhas nomes brasileiros. O mais próximo de Berlusconi que me aproximei foi com Silvia Bernardelli. 


Mas:  a compreensão das pessoas. A compreensão do mundo que Emannuel me proporcionou com o seu comentário. Do mundo que ele guarda por dentro. Um mundo que lhe permite escolher o sobrenome como quem escolhe um nome. Um mundo que lhe permite fazer um sinal de positivo  mesmo diante das dificuldades da vida. Esse mundo que lhe permite a irreverência de passar por nossas escrivaninhas dizendo: "ei, vai lá na minha também."


Esse é o mundo que eu espreito. Esse é o povo que eu amo. Essa é a gente que me convém. Sem frescuras. Mas se de aprendizagem é feita a vida, os frescos também nos ensinam o valor de ser ligeiramente afrescalhado. Que por inteiro eu não aguento.

Ser gente é o maior empreendimento humano. Hoje encontrei um autor que toma xixi e o recomenda como estimulante sexual. Eu li e acreditei. Eu acredito. Porque sempre há o que se acreditar, procurando  a verdade subjetiva que corre como um rio subterrâneo, paralelo à verdade objetiva. 


Ser simples é a maior dádiva. Ser puro é manter-se incontaminado tomando xixi de manhã. Ser poeta é mais uma tendência do que um estilo de escrever. Adélia Prado nunca me deixou ser poeta mas ainda assim - sou.

E nesta manhã dedico a minha poesia a mim mesma. E me saúdo e me acho fantástica porque Deus tem-me concedido o dom de ver nos outros apenas o que eu gostaria que fosse visto em mim.




Ana Ribas




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