Contos


Canto Solitário número 01
Ana Maria Ribas - 1.988


Às vezes lhe acontecia de ouvir o canto de um passarinho e sentir saudades, no momento mesmo em que o ouvia. E protegida pela penumbra da tarde que caía, segredar   para a árvore mais próxima: estou cansada de tanto sentir. 
Dessa maneira, conhecia o mundo. Não era o fato que a seduzia, era o secreto que fluia de cada acontecimento. E que só ela via.

Mas como suportar, sozinha, acontecimentos que não aconteciam? Sentir-se tomada por uma vaga melancolia a cada vez que um passarinho cantasse, fechar os olhos ao sol que se punha redondo  para não ter a reflexão subitamente inundada de luz, perder-se no silêncio da noite e só se achar quando o corpo, cansado, ganhasse alívio no sono: Acontecia-lhe estar exaurida de tanto sentir.
 
Teria quando muito uns 7 ou 8 anos quando chegou para brincar  uma amiga da mesma idade.  Ela  revelou-lhe, solene:
- Assim não dá. Temos que resolver de uma vez por todas a nossa vida . – Ouvira a irmã mais velha dizer isso ao namorado, na noite anterior.

 A amiguinha a olhou com grandes olhos sem entender. Amizade para ela, era um sentimento trágico que desesperava a alma e  não admitia, sequer, o roubo de um lápis. 
E como a outra continuasse a olhá-la de uma maneira meio sonsa , ainda procurando dentro de si a culpa, não suportou: deu-lhe logo uma tapona de 5 dedos na cara gorda e correu para o quintal, para as galinhas que não disfarçavam.

Lá ficou um longo tempo, profundamente vitoriosa e infeliz.
Vida era finalmente isso: sair da superfície e atolar bem no fundo e só voltar dali quando as coisas compartilhadas se tornassem verdadeiras e cristalinas. Tão concretas quanto um lápis materializado na palma da mão. Então sim, o brilho da fidelidade a reviveria toda e ela poderia novamente: ser.
 
Porque ela era só, mas sabia perdoar. Sempre fora só não da forma como o são os seres humanos, cuja vida principia e acaba na crueza do individual – pois pode alguém nascer e morrer pelo outro não sendo o Cristo? Ela era só porque todos os sentimentos trágicos do mundo concentravam-se nela mesma, impossibilitando qualquer contato com o fio da vida comum. 
 
Ela era só, porque pensava. Já naquela época pensar era materia de que gostava muito. 
Renegava secretamente qualquer caminho que a desvisse da infelicidade de sentir – esse sentir secretamente acumulado – porque intuitivamente tinha certeza de que a sua natureza não lhe permitiria viver impunemente. Em alguma esquina da vida, ela encontraria o que já pressentia como sendo só seu: a milésima parte da cruz de Cristo.
 
Só um dia fôra feliz, quando ainda era um bebê. Mas a quem ela diria: crescer é doloroso? A quem ela indagaria da vertigem que é viver?
 
Crescera e nada mudara. Passou a respirar ainda mais  densamente,  alimentando-se de fogo, repousando em brasas. Vivia distraida- como que ausente – e mesmo agora, quando tropeçara nessa pedra tão pesada, não desviou do nada o olhar comprido e nem permitiu que o gemido da dor fosse mais audível do que um suspiro no silêncio: comportar uma alma sempre lhe fora doloroso.

Era uma dor acostumada.
 
Ana Ribas

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