sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Duas dúzias de mim




Sempre que vou viajar, acontece-me algo muito estranho. Na véspera, terminando de arrumar as malas, quando embalo as coisas para dormir, à espera da minha volta, o meu entusiasmo pela viagem diminui e dá lugar a um sentimento que se parece com um adeus definitivo.

Viajar para mim é uma espécie de morte, a morte das coisas que ficam, a morte da paisagem que vejo da janela do meu quarto, a morte da rotina de cada dia, a morte dos meus hábitos, a morte dos meus animais, a morte das pequenas coisas com as quais preencho a vida e gasto o meu tempo.

Antes mesmo de ir, já fui. Já fui quando me esvazio gradativamente das realidades que me preenchem e por já ter ido, antes mesmo de ir, a saudade bate forte no peito e a nostalgia me domina. Se há algo sobrenatural que sonho receber um dia, quando deixar este mundo é a capacidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, liberta da impossibilidade da matéria que me obriga à permanência em apenas um. Trata-se de um atributo tão imenso que sempre que o desejo peço perdão a Deus por esse querer absurdo que está acima da minha capacidade de comum mortal.

Tenho pois essa digressão emocional que rouba a minha alegria às vésperas de uma viagem. Antes não. As semanas que antecedem a viagem trazem-me um presságio de esperança. Fico feliz quando me programo para uma viagem. A programação é motivo de celebração. Imagino-me lá e a imagem do lá enche-me de expectativa. Lá é que será bom. Lá haverá um jeito de olhar para o céu e ver só o sol, só as nuvens, só a grandeza de Deus. Lá, ao acordar, poderei usufruir da paz sem guerra. Lá, se eu não dormir, não lutarei contra a insônia, nem tentarei abduzir o sono, tão grande será o descanso de mim comigo. Além disso, há esse outro isso: agrada-me a idéia de usufruir de uma mobilidade fictícia – porque afinal, quem é livre?- mas a mim parece-me que sim, que sou livre e que posso ir e vir, embora naquele momento interesse-me mais o ir do que o vir. Na preparação de uma viagem, na idéia que apenas se insinua, bem à distância, sinto-me como devem sentir-se os passarinhos quando migram para outro continente.

Porém, quando se aproxima o dia da partida, sinto saudades dos momentos de permanência acostumada. Também sinto que as coisas terão saudades de mim. As coisas. Coisas que latem, coisas que miam, coisas que andam pelo telhado e na calada da noite vêm buscar comida na minha sacada, coisas que voam e pedem alpiste, coisas que eu alimento e que me alimentam, coisas que me servem, coisas às quais eu sirvo, coisas que se movem e que não se movem, mas são feitas da mesma matéria com as quais Deus nos criou: os átomos. Será que os átomos sabem o que é saudade? Eu creio que sim. Eu creio que um chinelo velho jogado na lata do lixo sente saudades do pé que o transportou. Acho que é por isso que certas pessoas vão acumulando coisas e não conseguem desfazer-se de nada. Porque sentem o que o chinelo sente. Graças a Deus, eu dou o chinelo para outra pessoa antes que ele fique muito velho e ai o problema passa a ser de outra pessoa. Essa é a forma que encontrei para não me apegar a muitas coisas. Reciclo, redireciono, passo pra frente e procuro esquecer.

Eu entendo perfeitamente pessoas que não gostam de mudanças. Eu acho que também não gosto. Pensando bem sou avessa a mudanças. Uma simples mudancinha de uma semana me deixa assim, toda melancólica. Mas nem por isso deixo de mudar. Eu entendo perfeitamente as pessoas que não gostam de viajar. Mas nem por isso deixo de viajar. Eu entendo perfeitamente que a vida é um exercício de desapego. Já comecei a fazer o dever de casa há alguns anos. Faço esse exercício de maneira suave, mas ininterrupta. Estou me desapegando de coisas que devem deixar de pertencer-me antes que eu mesma não me pertença mais. Tenho pavor de pensar em deixar para as minhas filhas uma porção de velharias cheirando a mofo, cujo valor seja apenas sentimental. Afinal, nenhum filho merece uma herança atávica feita de objetos que se perpetuaram na espécie familiar. Já comecei a sondagem: discretamente vou descobrindo o que deve ficar para quem, e o que não deve ficar para ninguém. Se a coisa mais difícil do mundo é encontrar um dono para as coisas que o defunto deixa no armário, tudo bem: tentarei fazer isso pelas minhas meninas antes de virar defunta.

Porque eu também já fiz a coleta seletiva deixada pela minha avó, pelos meus pais, e pelo meu filho. Porque eu também já morri um pouco a cada vez que me desfiz daquilo que durante anos, ficou guardado no mesmo armário. Coisas. Coisinhas. Caixas. Caixinhas. Todas com a cara do dono, pedindo respeito e exigindo consideração. A consideração que se deve ter com os seres vivos e que, às vezes, não temos.

Eu odeio todas as espécies de morte, todas as separações, todas as interrupções, todos os afastamentos, todas as ausências, todos os processos que nos obrigam a escolher entre este ou aquele, entre isso ou aquilo. Eu quero este e quero aquele, quero isso e quero aquilo. Cabe tudo dentro do meu coração. Mas que pena: não cabe dentro das convenções sociais, não cabe dentro do esquema doméstico, não cabe dentro do código civil, não cabe sequer nas leis da física. Uma pessoa é uma só, não pode ser duas. Uma pessoa é uma só, não se divide. Uma pessoa é uma só, mas juro que dentro de mim tem lugar para mais duas dúzias de mim.

































Seres Moventes

Viracopos é um laboratório riquíssimo de observação antroposófica, uma estação onde se pode observar de perto o comportamento dos iguais diferentes.
Somos todos iguais diferentes, portadores de uma humanidade rasa que adora se mover. O homem é um ser inquieto, está sempre em movimento.
Em direito civil há os chamados seres moventes. Obviamente ser movente é tudo o que se move, embora em direito civil seja um termo que se aplique apenas aos burros, cavalos e coisas tais que possuam 4 patas.
Nisso somos todos iguais: poeirinha cósmica diluída no oceano da matéria sem raízes que nos imobilizem ao chão. Somos diferentes na singularidade com que escolhemos o nosso destino, no comportamento determinado pela cultura, pelo temperamento, pelas preferências estéticas, escolhas sutis que revelam a nossa individualidade através do jeito de falar, de andar, de vestir, de nos conduzir pela vida afora.
Ou pelas plataformas de embarque adentro. Viracopos e todos os grandes aeroportos do mundo funcionam como uma vitrine que expõe todo tipo de seres moventes. A proximidade favorece a exposição. O fluxo estagnado determina a observação. Todo mundo sentadinho lado a lado, num salão apertado, com poucos banheiros, ou em fila indiana à espera de alguma coisa, todo mundo à mercê de regulamentos cuja lógica nos escapa, cuja segurança nada nos assegura, todo mundo com a disposição de alunos disciplinados e, ao mesmo tempo, displicentes, famintos, sedentos, fisiologicamente necessitados, alheios ao espetáculo que proporcionamos, uns aos outros, na interatividade forçada a que nos submetemos enquanto esperamos a hora de nos mover, porque seres moventes somos.
Da última vez que me movi, entrei na fila dos famintos e dos fisiologicamente necessitados uma vez, e depois me sentei observando uma coisa nova que acontece em Viracopos: entre as poltronas da área de embarque foram dispostos alguns assentos de tamanho grande com os seguintes dizeres : “Reservado para pessoas obesas.”
Pessoas obesas existem em todos os lugares, de acordo com a observação comum. Mas uma coisa é observar os obesos e outra coisa é estar habitando um corpo obeso. Do ponto de vista das pessoas não obesas, é fácil determinar quem é obeso e é uma expressão de gentileza lhes destinar poltronas mais largas e confortáveis.
Mas do ponto de vista das pessoas obesas, obeso é a mãe. Obeso é a mãe de todo aquele que ousar sugerir que o obeso seja obeso. Ocorre que o conceito de obesidade é algo subjetivo e só a OMS tem parâmetros científicos para determinar quem cruzou a linha da obesidade e quem está chegando lá. O resto fica no senso comum que varia segundo a interpretação sensorial de cada um e que, por isso mesmo, tende a ser cruel com o outro e complacente consigo.
Por isso, embora o salão de embarque estivesse repleto de pessoas obesas, eu não vi nenhuma que assim se considerasse, e que estivesse disposta a ocupar os tronos sem cetro e sem majestade do rei Momo, instalados a cada fileira, porque seria pagar um mico muito grande fora do carnaval.
Resultado da ação social: salão lotado, pessoas em pé, e todas as poltronas de gordo, vazias.
Gordo é sempre o outro. Gordo é a senhora sua mãe. Gordo é a sogra. Gordo é o chefe. Gordo é o filho do patrão. Gorda é a perua da vizinha. Gordo é o filho da mãe que teve a infeliz idéia de escancarar que aquele assento foi pensado para os gordos.
Se a ANAC está tão preocupada com o bem estar dos gordos, deveria obrigar a aviação civil a oferecer em seus aviões uma fileira de poltronas só para os gordos.
Eu não sei se você já se moveu ao lado de um gordo. Eu já. Sobra banha e falta assento e aquilo que sobra, com certeza, acaba ultrapassando a tênue linha que divide as duas poltronas onde se concentram os respectivos traseiros dos seres que se movem. Não há nada a fazer. A não ser lamentar o azar e pedir a Deus que a aeronave chegue logo ao destino.
Viracopos é assim: um circo onde qualquer um pode participar do espetáculo. Se você não quiser ser o artista pode ser espectador, pode ver, pode ouvir, pode racionalizar, pode se divertir, pode indignar-se, encorajar-se, pode fazer suposições, só não pode ausentar-ser. Não há como ausentar-se do recinto. Somos forçados a uma convivência pacífica de duração variável no campo de concentração em que os seres moventes ficam retidos como seres de 4 patas, até que a aeronave decole com aqueles que escolheram mover-se naquele dia e hora. Sim, porque o horário marcado com dias de antecedência é apenas para os seres moventes respeitarem. As empresas aéreas não o respeitam nunca. Contudo, temos que admitir: por conta da diversidade dos seres moventes, às vezes, essa maratona é divertida.
Nessa ocasião, além de observar o comportamento dos gordos, também consolidei o aprendizado em relação aos seres moventes do sexo feminino que usam Viracopos como plataforma de lançamento.
Foi assim: esse ser movente que vos escreve estava sentada ao lado de dois seres moventes do sexo masculino que, por suposição, eram amigos, mas também poderiam ser parentes. Inimigos não eram porque o papo rolava animado. Em Viracopos a gente supõe, mas nunca tem certeza. Para ter certeza seria preciso cometer uma indiscrição. Claro que nenhum ser movente, em perfeito estado de juízo e adequação social, sucumbe a essa curiosidade. Estávamos, pois, os três seres moventes nesse clima de dedução civilizada, lado a lado, como se estivéssemos sentados na sala de casa, cruzando e descruzando as respectivas patas. Ou melhor, as respectivas pernas. Estranhos e íntimos. Tão perto e tão longe. Tão impessoal e tão causal. Tão casual e tão formal. Impossível não observar o mundo pela mesma perspectiva, impossível não ouvir, impossível não entender, impossível não acompanhar o raciocínio dos seres moventes que estão colados a nós. A certa altura, a vontade é abandonar a postura impávido colosso, cantar o hino nacional sem essa estrofe, pedir licença, e intrometer-se no diálogo para oferecer a nossa modesta visão sobre o assunto. Qualquer assunto. Que de assunto a gente entende.
Claro que não nos intrometemos. Mas claro que foi assim, nessa participação silenciosa e involuntária, que aconteceu o que acontece sempre em Viracopos: um ser movente do sexo feminino entrou no ângulo da visão coletiva. Mas esse não era um ser movente comum, era de arrastar quarteirão, só pelo prazer de admirar uma coisa diferente que se movia do nada para lugar algum. Na verdade, esse era um ser movente delivery que poderia ser despachado para qualquer lugar do Brasil e do exterior. Imagine um mulherão de hum metro e oitenta centímetros, fora o salto, apertada numa saia de 50 centímetros, pernão musculoso de jogador de futebol, rabo de cavalo tordilho, peito de chester, e bunda de passista de escola de samba, e você obterá a visão da garanhona que prendeu a atenção dos comuns mortais que, naquela noite, se moviam.
Obviamente, os dois seres moventes que estavam ao meu lado também ficaram seduzidos pela aparição salomônica. Assombrados. Atordoados. Visivelmente embabascados. Após dois minutos de silêncio dedicados à babação explícita, o ser movente mais velho olhou para o ser movente mais novo, e fez a pergunta que não queria calar: - " Cara, o que você faria com um mulherão desse?” O ser movente mais novo apressou-se a esclarecer o que não faria: - “Deus me livre! Abraçar uma mulher dessa deve dar uma puta sensação de abraçar um homem.” Detalhe: o ser movente que fez a avaliação era pequeno, magro, franzino, desprovido de músculos, mas com muito cérebro.
Ambos os seres moventes riram e este ser movente que vos escreve também riu. Mas riu por dentro. Porque em Viracopos o ser movente que está sozinho só pode rir por dentro. É terminantemente proibido rir por fora. Porque é assim que deve ser. Porque é assim que os seres moventes devem se comportar: heroicamente silenciosos, esfingicamente surdos, convenientemente mudos. Comporto-me então, mas depois venho aqui e conto tudo.