sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Seres Moventes

Viracopos é um laboratório riquíssimo de observação antroposófica, uma estação onde se pode observar de perto o comportamento dos iguais diferentes.
Somos todos iguais diferentes, portadores de uma humanidade rasa que adora se mover. O homem é um ser inquieto, está sempre em movimento.
Em direito civil há os chamados seres moventes. Obviamente ser movente é tudo o que se move, embora em direito civil seja um termo que se aplique apenas aos burros, cavalos e coisas tais que possuam 4 patas.
Nisso somos todos iguais: poeirinha cósmica diluída no oceano da matéria sem raízes que nos imobilizem ao chão. Somos diferentes na singularidade com que escolhemos o nosso destino, no comportamento determinado pela cultura, pelo temperamento, pelas preferências estéticas, escolhas sutis que revelam a nossa individualidade através do jeito de falar, de andar, de vestir, de nos conduzir pela vida afora.
Ou pelas plataformas de embarque adentro. Viracopos e todos os grandes aeroportos do mundo funcionam como uma vitrine que expõe todo tipo de seres moventes. A proximidade favorece a exposição. O fluxo estagnado determina a observação. Todo mundo sentadinho lado a lado, num salão apertado, com poucos banheiros, ou em fila indiana à espera de alguma coisa, todo mundo à mercê de regulamentos cuja lógica nos escapa, cuja segurança nada nos assegura, todo mundo com a disposição de alunos disciplinados e, ao mesmo tempo, displicentes, famintos, sedentos, fisiologicamente necessitados, alheios ao espetáculo que proporcionamos, uns aos outros, na interatividade forçada a que nos submetemos enquanto esperamos a hora de nos mover, porque seres moventes somos.
Da última vez que me movi, entrei na fila dos famintos e dos fisiologicamente necessitados uma vez, e depois me sentei observando uma coisa nova que acontece em Viracopos: entre as poltronas da área de embarque foram dispostos alguns assentos de tamanho grande com os seguintes dizeres : “Reservado para pessoas obesas.”
Pessoas obesas existem em todos os lugares, de acordo com a observação comum. Mas uma coisa é observar os obesos e outra coisa é estar habitando um corpo obeso. Do ponto de vista das pessoas não obesas, é fácil determinar quem é obeso e é uma expressão de gentileza lhes destinar poltronas mais largas e confortáveis.
Mas do ponto de vista das pessoas obesas, obeso é a mãe. Obeso é a mãe de todo aquele que ousar sugerir que o obeso seja obeso. Ocorre que o conceito de obesidade é algo subjetivo e só a OMS tem parâmetros científicos para determinar quem cruzou a linha da obesidade e quem está chegando lá. O resto fica no senso comum que varia segundo a interpretação sensorial de cada um e que, por isso mesmo, tende a ser cruel com o outro e complacente consigo.
Por isso, embora o salão de embarque estivesse repleto de pessoas obesas, eu não vi nenhuma que assim se considerasse, e que estivesse disposta a ocupar os tronos sem cetro e sem majestade do rei Momo, instalados a cada fileira, porque seria pagar um mico muito grande fora do carnaval.
Resultado da ação social: salão lotado, pessoas em pé, e todas as poltronas de gordo, vazias.
Gordo é sempre o outro. Gordo é a senhora sua mãe. Gordo é a sogra. Gordo é o chefe. Gordo é o filho do patrão. Gorda é a perua da vizinha. Gordo é o filho da mãe que teve a infeliz idéia de escancarar que aquele assento foi pensado para os gordos.
Se a ANAC está tão preocupada com o bem estar dos gordos, deveria obrigar a aviação civil a oferecer em seus aviões uma fileira de poltronas só para os gordos.
Eu não sei se você já se moveu ao lado de um gordo. Eu já. Sobra banha e falta assento e aquilo que sobra, com certeza, acaba ultrapassando a tênue linha que divide as duas poltronas onde se concentram os respectivos traseiros dos seres que se movem. Não há nada a fazer. A não ser lamentar o azar e pedir a Deus que a aeronave chegue logo ao destino.
Viracopos é assim: um circo onde qualquer um pode participar do espetáculo. Se você não quiser ser o artista pode ser espectador, pode ver, pode ouvir, pode racionalizar, pode se divertir, pode indignar-se, encorajar-se, pode fazer suposições, só não pode ausentar-ser. Não há como ausentar-se do recinto. Somos forçados a uma convivência pacífica de duração variável no campo de concentração em que os seres moventes ficam retidos como seres de 4 patas, até que a aeronave decole com aqueles que escolheram mover-se naquele dia e hora. Sim, porque o horário marcado com dias de antecedência é apenas para os seres moventes respeitarem. As empresas aéreas não o respeitam nunca. Contudo, temos que admitir: por conta da diversidade dos seres moventes, às vezes, essa maratona é divertida.
Nessa ocasião, além de observar o comportamento dos gordos, também consolidei o aprendizado em relação aos seres moventes do sexo feminino que usam Viracopos como plataforma de lançamento.
Foi assim: esse ser movente que vos escreve estava sentada ao lado de dois seres moventes do sexo masculino que, por suposição, eram amigos, mas também poderiam ser parentes. Inimigos não eram porque o papo rolava animado. Em Viracopos a gente supõe, mas nunca tem certeza. Para ter certeza seria preciso cometer uma indiscrição. Claro que nenhum ser movente, em perfeito estado de juízo e adequação social, sucumbe a essa curiosidade. Estávamos, pois, os três seres moventes nesse clima de dedução civilizada, lado a lado, como se estivéssemos sentados na sala de casa, cruzando e descruzando as respectivas patas. Ou melhor, as respectivas pernas. Estranhos e íntimos. Tão perto e tão longe. Tão impessoal e tão causal. Tão casual e tão formal. Impossível não observar o mundo pela mesma perspectiva, impossível não ouvir, impossível não entender, impossível não acompanhar o raciocínio dos seres moventes que estão colados a nós. A certa altura, a vontade é abandonar a postura impávido colosso, cantar o hino nacional sem essa estrofe, pedir licença, e intrometer-se no diálogo para oferecer a nossa modesta visão sobre o assunto. Qualquer assunto. Que de assunto a gente entende.
Claro que não nos intrometemos. Mas claro que foi assim, nessa participação silenciosa e involuntária, que aconteceu o que acontece sempre em Viracopos: um ser movente do sexo feminino entrou no ângulo da visão coletiva. Mas esse não era um ser movente comum, era de arrastar quarteirão, só pelo prazer de admirar uma coisa diferente que se movia do nada para lugar algum. Na verdade, esse era um ser movente delivery que poderia ser despachado para qualquer lugar do Brasil e do exterior. Imagine um mulherão de hum metro e oitenta centímetros, fora o salto, apertada numa saia de 50 centímetros, pernão musculoso de jogador de futebol, rabo de cavalo tordilho, peito de chester, e bunda de passista de escola de samba, e você obterá a visão da garanhona que prendeu a atenção dos comuns mortais que, naquela noite, se moviam.
Obviamente, os dois seres moventes que estavam ao meu lado também ficaram seduzidos pela aparição salomônica. Assombrados. Atordoados. Visivelmente embabascados. Após dois minutos de silêncio dedicados à babação explícita, o ser movente mais velho olhou para o ser movente mais novo, e fez a pergunta que não queria calar: - " Cara, o que você faria com um mulherão desse?” O ser movente mais novo apressou-se a esclarecer o que não faria: - “Deus me livre! Abraçar uma mulher dessa deve dar uma puta sensação de abraçar um homem.” Detalhe: o ser movente que fez a avaliação era pequeno, magro, franzino, desprovido de músculos, mas com muito cérebro.
Ambos os seres moventes riram e este ser movente que vos escreve também riu. Mas riu por dentro. Porque em Viracopos o ser movente que está sozinho só pode rir por dentro. É terminantemente proibido rir por fora. Porque é assim que deve ser. Porque é assim que os seres moventes devem se comportar: heroicamente silenciosos, esfingicamente surdos, convenientemente mudos. Comporto-me então, mas depois venho aqui e conto tudo.

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