quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sogro rico e porco gordo

A vida pode nos ensinar muitas coisas. Mas a vida sozinha ensina apenas o cumprimento de um ritual diário que passamos a executar de maneira quase automática. Para assimilar novos conceitos precisamos ter espírito investigativo e capacidade de observação. Olho clínico. Se aliado a esse entendimento houver um acréscimo emocional e espiritual, ganhamos sabedoria e isso é uma das aquisições que fazem uma vida comprida valer a pena.

Contudo, esse tipo de aquisição custa-nos alguma coisa. E esse custo nos isenta de uma vida leve. Ninguém que tenha adquirido sabedoria vive para si, ou se alegra somente com as suas alegrias, ou se entristece somente com as suas tristezas, mas aquele que adquiriu sabedoria olha para o conjunto da criação de Deus, seja o homem, os animais ou o cosmos, e se percebe como parte integrante de um todo. Essa percepção faz dele um ser em permanente estado de perplexidade. Não há mais como ser feliz de maneira egoística e nem há como ser infeliz de maneira isolada. Seja na alegria ou na tristeza, o homem que adquiriu sabedoria reparte com o mundo os seus sentimentos, e o seu ganho intelectual, e ambos se refletem numa vida de fraternidade universal e cósmica.

Contudo o grosso da humanidade vive como se os desmandos do mundo não a atingissem. Há uma alienação generalizada que dissemina a indiferença. Não existe uma identificação com a espécie. Até os bichos, em certa medida são mais fraternos. Tenho observado o comportamento dos animais e há um traço comum entre eles: quando bem alimentados, quando não há uma demanda própria da cadeia alimentar, os animais apresentam civilidade e até demonstram afetividade com os da mesma espécie.

O homem não. O homem pode estar alimentado, pode ter tudo quanto necessita, que ainda assim a compulsão pelo acúmulo de bens falará mais alto. O homem tem dificuldade para repartir as suas posses até com a própria prole. Alguns condenam os filhos a uma vida financeira medíocre, sob a alegação de que não morreram para distribuir a herança e se esquecem de que, por esse raciocínio torto, a própria morte pode significar um bilhete premiado para a sua descendência. Dessa maneira, não há amor filial que resista a um cálculo matemático na beira do caixão. E quem pensar o contrário estará sendo ingênuo.

Imagine uma pessoa cujo pai tenha muito dinheiro. Imagine que essa pessoa tenha uma vida de privações: o que recebe por mês mal dá para viver. No final do mês, sobram dias e falta dinheiro. Imagine quantos sonhos de consumo vão-se acumulando sem a menor possibilidade de realização. Um dia- e esse dia fatalmente chega - o pai milionário morre, e o filho pobre está a um passo de botar a mão na dinheirama toda. Por mais que ame o pai, e sofra pela separação da morte, a compensação financeira que receberá com o espólio do falecido, modulará essa dor. Para baixo.

Não tem jeito. O homem é carne e a carne, quando tentada, não fica totalmente isenta do pecado. Um pecado chama outro pecado, assim como um abismo chama outro abismo.

Não por acaso, há um ditado popular que diz assim: “ sogro rico e porco gordo só dá lucro quando morre.” Ora, todo sogro tem uma relação dupla com o casal que se forma: por um lado, é sogro, por outro é pai. E se o genro só vai ter lucro quando o sogro morrer, consequentemente, a filha, e os netos, também só lucrarão quando o pai e o avô partir desta para melhor. Bingo. Com a morte do sogro rico, o genro pobre terá muita dificuldade para disfarçar a alegria, e a filha pobre, e os netos pobres, terão muita dificuldade para se concentrarem na tristeza. Entre uma lágrima e outra, o barulhinho do vil metal vai tilintar no pensamento.

Não dá nem para censurar a família. Esse tipo de pai e avô faz por merecer esse tipo de sentimento.

Não há justificativa de ordem emocional que avalize esse comportamento egoísta. A vida é curta para todos. Privar um filho de viver melhor, privar um neto de ter uma boa casa, privar uma família de ter um bom carro, e uma renda mensal compatível com as necessidades básicas, condená-los a viver de maneira resumida até que morra, sob a alegação de que ainda não morreu, é desumano e cruel, além de ser irracional.

Quem distribui felicidade depois da morte, se priva de compartilhar alegria em vida. Isso é burrice.

Infelizmente, esse comportamento de asno acontece com muita freqüência na espécie humana. A espécie humana é a única que submete os filhos a uma degradação chamada espólio. Espólio do falecido. Olha que tarja interessante! O nome bonito do espólio é herança. O nome feio é despojo, resto. O resto do Falecido. Quando um pai morre sem prover para o futuro dos filhos, o que ele deixa no final da caminhada, é uma guerra que culmina com a distribuição do despojo, do resto. Não raro, os irmãos acabam estremecidos ao final do processo. A avidez há tanto reprimida eclode, como urubu na carniça, bem na hora em que a família deveria estar unida para celebrar a dor da separação. O pai nem esfriou no caixão e os filhos já se movem em direção à posse do despojo. Não raro, os advogados ficam com uma boa parte daquilo que foi amealhado. Nas grandes fortunas, o que se gasta com advogados, daria muito bem para ser empregado melhorando a vida dos filhos décadas antes do falecimento.

A espécie humana é muito burra. Hoje estou escrevendo para os burros e para os não tão burros. Que me perdoem os sábios. Quem tiver orelhas, que abaixe as orelhas. Quem tiver ouvidos, que ouça. Se o mundo é um pasto e nós somos animais, espera-se, pelo menos, que sejamos racionais.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

De onze em onze.

Viajar pelo sul e sudeste do Brasil tornou-se um exercício matemático para todos os viajantes que administram o seu dinheiro com responsabilidade. Antes de tudo você precisa decidir se vai de carro, de ônibus, ou de avião. A primeira consulta começa sempre pelos sites das empresas aéreas que, de vez em quando, dão um refresco e oferecem tarifas realmente promocionais. Como não é todo dia que isso acontece, o mais comum é continuar pesquisando nas empresas de ônibus. Se quiser conforto, esqueça o ônibus. Uma viagem de leito custa sempre o dobro da poltrona convencional. Sem chance. Sobra mesmo o velho e prático carro da família. Mas em termos de economia, é bom não se animar muito, se essa for a escolha. No Paraná pós Jaime Lerner, por exemplo, o número de pedágios que assolam as nossas rodovias parecem as pragas do Egito. Assim que você se livra de uma, já aparece a outra. Ou o outro. Entre Ponta Grossa e Curitiba, há pedágios que estão localizados a incríveis 20 km um do outro. Tudo bem. Você paga e sobrevive. Aí, começa a procura por um hotel de conceito econômico. Existem dois tipos de hotéis econômicos no Brasil. Existem aqueles que eram considerados 4 estrelas mas o insucesso financeiro e a falta de investimentos fez deles um produto em fase final de vida. Deteriorados, sucateados, esses hotéis parecem um depósito de ácaros e de velharias. Carpete vermelho e latão cromado são os itens mais luxuosos da decoração. Quem quer se hospedar num lugar assim? A alternativa são os hotéis das grandes redes hoteleiras internacionais que aportaram por aqui para suprir a lacuna que havia no segmento hoteleiro. Esses hotéis diferentemente dos primeiros, foram planejados para ser 3 estrelas e oferecer um estilo mais enxuto de hospedagem sem descuidar do conforto e da modernidade.

Só descuidam de uma coisa: da tarifa. O hotel econômico que foi pensado para atender um viajante que faz conta, mas quer conforto, acaba tornando-se muito caro quando se contabilizam os opcionais que ele oferece. O problema é que se considera opcional o que é fundamental. Café da manhã e garagem são itens opcionais. Mas como renunciar ao café da manhã quando ele é a refeição mais importante do dia? E como deixar o carro dormir na rua e correr o risco de acordar com ele só na lembrança? Não dá, né?

Semana passada nos hospedamos em Curitiba, num hotel Ibis da Rede Accor. Valor da diária: 110 reais. Valor do café da manhã: 11 reais. Valor da taxa de estacionamento: 11 reais. Total da diária para duas pessoas e 01 carro: 143 reais. Sem contar a taxa de ISS que eleva o total para incríveis 157 reais. Muito caro para um hotel de categoria econômica.

Fiquei pensando como enxugar essa quantia e descobri que se eu acordasse entre 4,30 e 6 horas da manhã, - horário em que acordo mesmo - poderia tomar o café madrugador que custa 5 reais e 50 centavos. Uma economia de 50% é uma economia considerável.
O café madrugador acompanha o conceito de um hotel desprovido de luxo e tem tudo o que o brasileiro comum costuma ter em sua mesa, no café da manhã. Bom, estou falando do brasileiro comum. Mas nem todos são comuns. Tem gente que come mortadela em casa, mas no hotel arrota presunto.
Enquanto tomava o meu café econômico madrugador, num imenso salão vazio de madrugadores, apareceu um casal. Vestindo trajes sociais, pareciam estar voltando de alguma festa. Ele de terno, ela de vestido longo. O fim de festa oferece sempre uma pálida miragem da produção do dia anterior. Estavam ambos destruídos, precisando urgente de uma boa manhã de sono. A mulher olhou para o buffet do café madrugador, sem nenhum entusiasmo. Parecia um ser muito exigente. O homem ainda arriscou perguntar: - “Não tá bom?” Ela respondeu: - “Não, prefiro esperar o café completo. Faltam outros tipos de frutas e croissant.”
Croissant para quem não sabe é o primo rico do pão francês.
No saguão do hotel, sentaram e esperaram. Meia hora depois, as portas se abriram para o café com croissant que o paladar requintado da madame exigia.
Conclusão: Tem homem que parece ter nascido num cacho. De banana. E tem mulher que tem cabeça só para carregar chapéu. E tem hotel que é fixado no número 11. No elevador estava escrito assim: “Festival de Sopa. Mais de 20 sabores. Preço por porção individual: 11 reais.”

Por que onze e não dez, ou quinze? Sabe- se lá porque. Mas de onze em onze, o brasileiro fica pobre e nem desconfia.

terça-feira, 27 de julho de 2010

A Argentina coloriu.

Cristina Kirchner fez a Argentina sair na frente ao aprovar a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. No Brasil de Lula ou de Dilma, deve ocorrer em breve. Só quero ver quando e como vai acontecer na Bolívia de Evo Morales e na Venezuela de Hugo Chavéz. Afinal o bloco de países sul americanos sempre caminha no mesmo compasso. Até parece que o ritmo da carruagem é determinado por um só cocheiro. Mas enquanto isso não acontece vamos conjecturar sobre o tema polêmico.
Em primeiro lugar, eu fico pensando que nenhum legislador deveria ser burro a ponto de fazer uma lei que fosse desnecessária. As leis são feitas para atender uma demanda legal e são cumpridas não apenas por força coercitiva mas pela eficácia dos seus objetivos. Ora, quando um estado decide aprovar a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o faz porque existem pessoas do mesmo sexo que querem casar-se entre si. Caso contrário, não seria necessária a criação da lei. Impedir que tal fato se legalize, como tentaram fazer os religiosos da Argentina, é querer tapar o sol com a peneira. Não se pode ter uma visão tão pequena a respeito de qualquer assunto apenas porque esse assunto contraria a nossa concepção de mundo.
Penso que essa lei tem a tendência de ser aprovada em todos os países porque afinal de contas, no mundo todo existem pessoas que decidiram optar sexualmente por pessoas do mesmo sexo. É um direito que lhes assiste. O estado não pode fazer ingerências sobre a sexualidade dos seus cidadãos e tem por obrigação zelar pelo cumprimento da lei máxima constitucional que determina que todas as pessoas são iguais perante a lei. Ora, entre essas pessoas, existem aquelas que são homossexuais. É dever do estado zelar pelos direitos desses também.
Essa lei, pois, já chega tarde. E chega para corrigir uma injustiça que tem sido cometida com todos aqueles que decidiram fazer uma opção sexual diferente da maioria. Não nos cabe aplicar aqui nenhum julgamento moral. O que acontece é que algumas pessoas aplicam um julgamento moral em situações nas quais só compete um direito constitucional. Toda a questão se resume nisso. O que os governantes devem fazer é tão somente reconhecer que todas as pessoas são iguais perante a lei e isso inclui o direito de casar, o direito de compartilhar, o direito de adotar, o direito de dividir um patrimônio, o direito de herança e o direito de ter assegurado esses direitos a despeito da opção sexual. Cabe ao Estado agilizar esse estado de direito e acabar logo com essa onipotência medieval que fere a lei como um todo. Chega a ser hilário que as pessoas queiram impedir que aconteça, de fato e de direito, o que já existe na prática desde que o mundo é mundo. O direito e a religião caminham em avenidas paralelas e estanques. Não dá para aplicar o mesmo ponto de vista em situações nas quais cabe apenas um cumprimento legal.
Em 1965, no Brasil de Castelo Branco, foi sancionada uma lei, em torno do Código Florestal, a qual determinava que todos os pequenos proprietários estavam obrigados a preservar um percentual de suas propriedades, mantendo uma reserva florestal. Como era de se esperar, os pequenos proprietários, que dispunham de poucos hectares, nunca cumpriram essa lei a ponto de se dizer que essa legislação tornou todos os brasileiros que comem arroz cúmplices de um crime ambiental, já que quase toda a produção desse grão foi semeada em reserva legal.
O que eu quero dizer com isso? Que a lei sancionada no Brasil em 1965, era uma lei que não feria nenhum princípio religioso, mas feria a necessidade básica de comer que todo brasileiro tem. Fica muito bonitinho manter uma reserva legal em todas as propriedades, desde que a nossa barriga esteja cheia de comida e não tenhamos fome. O pequeno proprietário viu que isso era impossível, foi lá, burlou a lei e plantou arroz. O brasileiro comeu, encheu o bucho, agradeceu e esqueceu. As autoridades assinaram a lei e deixaram para lá a fiscalização do seu cumprimento. E ficou tudo certo.
Aqui está o exemplo de uma lei que foi feita para ser esquecida. Do ponto de vista moral era corretíssima. Do ponto de vista material era escandalosa. Por isso não foi cumprida.
Na Argentina de Cristina Kirchner, uma lei foi aprovada pelo Congresso. Ela fere princípios religiosos, contraria dogmas estabelecidos, faz o povo da santa inquisição revirar na sepultura, mas atende ás necessidades que determinadas pessoas têm. Ocorre que, por este tempo, existem homossexuais na República Argentina. Se algum dia não houver, a lei cairá em desuso. Mas enquanto houver, ela se faz necessária.
É simples assim: as leis são feitas para atender demandas e são cumpridas quando o legislador entende que o espírito da lei repara uma lacuna e preenche um espaço legal. É o tempo que confere credibilidade a uma lei. O tempo, pois, dirá. Se houver homossexuais na república brasileira, essa mesma lei será sancionada aqui e durará enquanto houver necessidade. Se houver homossexuais na república venezuelana, essa lei será sancionada lá e permanecerá até que a sua prática se torne obsoleta.
Desculpem, mas não posso deixar de confessar: eu quero muito ver Hugo Chavéz diante das câmeras de TV, assinando essa lei. Nem me perguntem por quê.