segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

DAMA DE FERRO

Quem já deixou alguma vez de se entender consigo, saberá do que estou falando: Há uma parte em mim que mal conheço, sequer suspeito, de tão doida ela é. Há uma parte em mim habitando vastidões dentro de mim, que me faz duvidar de qualquer impossibilidade. Mais ou menos assim como quando a gente olha um ser e diz: não sei do que esse ser é capaz, melhor ficar longe dele. Só que o ser sou eu. Como pois vou ficar longe de mim?

Essa doida faz impulsivamente coisas que eu não faria e jamais diria. Escrever então, nem pensaria. No entanto, faço, falo e escrevo com tal coração forte e destemido, embora desconheça de onde me vem essa competência atrevida. Passado o momento loucura, volto a ser a mesma: cheia de culpa, de amor, de compreensão e doçura que me condenam e dizem: - sua doida, como você pode?

Mas mesmo essa doida que mal conheço, e que é capaz de coisas que não sei,- tome cuidado,-tem um certo ritmo que vem à tona em circunstâncias pré determinadas, o que equivale a dizer que a conheço vagamente.

Por exemplo: o ritmo de organização que me toma a cada vez que vou viajar. Esse, já sei que me aparece sempre na última semana que antecede a viagem.

Nos últimos dias resolvo arrumar gavetas e rasgar papéis. Eu adoro rasgar papéis, mas os que gostaria mesmo de rasgar, não posso, então rasgo tudo o que posso: contas antigas de luz, de água, de telefone, notas fiscais, correspondências que mal abro quanto recebo e coisas tais. Também nesses últimos dias, sou tomada pela urgência de resolver coisas que venho adiando há tempos: exames médicos. Às vésperas de uma viagem estou envolvida com exames médicos ou, pelo menos, agendando os exames para a minha volta. Também faz parte da organização verificar o bem estar dos animais: carteirinha de vacinação e aplicação de vermífugos, banho e tosa. Nunca viajo sem ir ao banco retirar o extrato da minha conta, o que equivale a dizer checar todos os débitos e os créditos antes da viagem, anotando tudo num caderninho. Os armários passam por uma revista minuciosa só porque vou viajar. As roupas que não uso há meses, experimento, para descobrir diante do espelho porque não as usei e lhes dar melhor destino. A faxina se estende para os demais cômodos da casa: examino se os vidros estão limpos e deixo tudo o que me parece necessário anotado numa lista para a minha funcionária se desincumbir, enquanto estou viajando.

O que me deixa perplexa é que essa não sou eu. Convivo numa boa com papéis que se acumulam nas gavetas, com exames médicos atrasados, com animais sem banho, com extratos não verificados e armários mais ou menos bagunçados. E se os vidros estão sujos eu fecho a cortina e não me descabelo. Mas basta marcar uma viagem para baixar em mim o espírito da Dita.

Antes de uma viagem, também sou tomada pela solidariedade: se alguém que conheço está sofrendo, não posso viajar sem antes telefonar ou visitar. E se o sofrimento é meu, tenho que agendar uma visita à pastora Taty antes de por o pé na estrada. Antes de por o pé na estrada também, sou tomada pelo desejo de me desfazer de coisas que não uso. Segundo o Silvio, meu professor de musculação em Maringá, essa prática se chama desapego. Seja lá o que for, é coisa demais para a minha cabeça que além dessa listinha, precisa desincumbir-se desta outra: manicure, pintura de cabelo, sobrancelha, e malas.

Eduardo Mascarenhas, psicanalista, escreveu um artigo, certa vez, no qual afirmou com muita propriedade, que pessoas organizadas por fora são bagunçadas por dentro. Na impossibilidade de arrumar o que vai por dentro, capricham na arrumação externa.

Pode ser. Às vésperas de uma viagem o meu padrão de pensamento que já não é dos melhores, perde todos os parâmetros de normalidade. Viajar me é doce demais, eu mal mereço. Sinto-me culpada – pasmem- por não estar em dois lugares ao mesmo tempo. Sinto pena dos animais que não me terão por perto. Sinto que a casa sofrerá a minha ausência: será uma casa sem dona. Sinto que tudo o que deixei de fazer, ficará à minha espera, aguardando a minha volta. É como se todas essas coisas se levantassem dentro de mim como uma objeção ao lazer do qual irei desfrutar apenas levemente, porque na verdade não desfruto em lugar algum. Mas para que nada me acuse de nada, faço às vésperas da ausência o que não fiz na presença, e se não dou conta, anoto numa agenda, para depois da volta, executar como prioridade máxima.

O que não consigo anotar na agenda é exatamente essa angústia de mim, essa vastidão imensa que não identifico no espelho, que me parece outra e não eu. Não sei descrever quem é essa. Não sei conviver com uma dama de ferro. Não posso suportar uma mulher tão metódica, eu que sou apenas regularmente organizada. Mas essa também sou eu. Eu com raiva do meu outro eu.

A raiva é recíproca: eu te odeio!




















sábado, 17 de dezembro de 2011

O assédio do Papai Noel

Quem escapa do assédio do Papai Noel? Pelo visto, ninguém. A lista dos que se rendem inclui homens e mulheres, velhos e crianças. E não me diga que as crianças encabeçam a lista. Quem encabeça a lista são as mulheres, elas sim as verdadeiras responsáveis por infiltrar o velhinho pela chaminé, enchendo a casa de penduricalhos, montando a árvore com bolas coloridas, comprando os presentes, escolhendo o cardápio,- ui coitado do peru e do porquinho- preparando a comida, decorando a mesa, sem esquecer das roupas novas, para a grande noite: a véspera. A noite que antecede o Natal é o ápice desse fervo que começa antes do início de dezembro e encerra só depois do ano Novo.

Quem introduz o ano novo é o Papai Noel que parece estar hospedado em cada casa até o dia 6 de janeiro, ele e a turma dos folgados que se mudam para o endereço dos outros, até a data mágica de 6 de janeiro, quando o circo é desmontado e a casa fica finalmente livre de entulhos e de parentes. Vovozinha só desocupa o quarto da netinha depois do dia 6. Aquele tio folgado que veio com toda a família, também só esvazia o sótão depois do dia 6, quando a churrasqueira para de funcionar e o caminhão de cerveja deixa de fazer entrega. Dia 6 é o dia da Folia de Reis e também o dia de alforria do casal anfitrião que, pode enfim restabelecer a ordem do seu pequeno núcleo familiar.

Bem feito! Quem mandou inventar.

Não me parece natural nenhuma dessas coisas extraordinárias que se fazem em torno de uma idéia comercial, mas por mais que eu fuja, acabo cedendo minimamente ao assédio, talvez porque se eu não cumprir o protocolo a cobrança externa cobrará dividendos maiores.

Toda celebração que obriga todo mundo a parecer feliz, mesmo quando não há motivos para celebrar, é de uma crueldade que me assusta. Toda celebração que invoca o céu como álibi para cometer desvarios coletivos de ordem econômica, e social, é de uma ilegitimidade que me espanta.

Imagine como é difícil aderir à idéia de felicidade quando se perde um ente querido. Não há mais o que comemorar. Nada do que foi será/ de novo /do jeito que já foi um dia.

Há pessoas para as quais a idéia se apresenta, no mínimo, desfocada: eu sou uma delas.

Sempre fui assim, mesmo antes de. Sempre me pareceu que essas festas nivelam o mundo lá em cima e projetam uma expectativa de felicidade universal que não corresponde à realidade de todos os homens, mesmo os de boa vontade. Não há velhinhos trazendo presentes que não nos custem nada. Os presentes custam dinheiro e alguém tem que pagar por eles. Não há datas mágicas e nem bônus que não nos cobrem dividendos. Depois do Natal e do ano novo, além dos presentes que foram parcelados no cartão de crédito, o cidadão que já pagou ICMS sobre tudo o que deu, também terá que pagar impostos sobre a propriedade, sobre a renda, sobre o carro, além das férias anuais obrigatórias na praia – que a família pede,- matrículas dos filhos na escola, mais a listinha de material escolar que dobra a esquina da rua com tantos itens.

Sei que sou chata lembrando a você todas essas coisas, mas vai por mim e puxa o freio.

Tenho grande lucidez para aderir a um circo provisório: não gosto de nada provisório. Se a vida fosse um permanente Natal, eu colocaria a mais linda árvore no canto da sala de estar e a deixaria ali para sempre. Acho linda uma árvore de Natal. Acho linda uma cidade iluminada. Acho maravilhoso um auto de Natal. Acho belíssimo o espírito de Natal. Só que tudo acaba.

Natal é um arremedo fugaz que passa e deixa um vazio. Depois que me acostumo com a visão da árvore inserida no conjunto, depois que me deslumbro com as luzes e o brilho, tenho que desmontar a árvore, e aquele buraco, que antes não existia, passa a existir, sob a minha ótica de eternidade. Depois que a cidade é enfeitada com mil luzes, volta a mergulhar na semi escuridão. Qual a vantagem disso?

Não contem comigo para nada provisório. Eu e o provisório não nos damos bem. Entre o novo, que não vai durar para sempre, e a permanência acostumada, prefiro a permanência acostumada.

Aos motivos sentimentais, estéticos, e econômicos, posso acrescentar mais um, de caráter social: acho o Natal uma tremenda injustiça com os pobres. Eu me lembro de natais sem nenhum colorido na minha infância e de quanto sofrimento me era a manhã de Natal, na hora de apresentar o meu presente às amigas que vinham trazendo os seus. A comparação era inevitável. Criança pobre sofre muito no Natal. Adulto pobre digere melhor a data com as respectivas diferenças. Mas não pense que, se você deu ao seu filho adulto um Uno Mille, ele não vai comparar com o Audi que o amigo ganhou. Compara sim. É inevitável. Papai Noel é sempre mais generoso com uns do que com outros, dependendo do endereço em que a cegonha entrega a criança.

Associar a idéia do nascimento de Jesus com um Papai Noel elitista que oferece presentes de acordo com as posses, é algo inconcebível sob o ponto de vista espiritual. Quem precisa mais recebe menos, quem precisa menos, recebe mais. Vá explicar isso para o filho da empregada. Tente fazê-lo entender porque papai Noel foi mais bonzinho com o filho da patroa da mãe dele, do que com ele.

Eu estou irremediavelmente fora do Natal, desde todos os meus natais. Mas ainda assim, estou dentro. Esse fora-dentro faz de mim um ser que se equilibra precariamente, nessa época do ano, sobre a minha perplexidade, a minha saudade e a minha nostalgia. Compro presentes apenas para os que ainda conservam a ilusão que acompanha a data. Tento não azedar o leite das crianças. Não me dou presentes e não cultivo a idéia naqueles que me rodeiam. Quase sempre não recebo nada. Não decoro a casa. Não patrocino comilança generalizada. Minha mesa é uma mesa sem exageros gastronômicos, circunscrita ao círculo familiar mais próximo. Não engordo um grama no natal. Não choro. Não me entrego a recordações. Tento encarar a data de uma maneira leve. Sobrevivo. E respiro aliviada no dia 2 de janeiro, quando tudo acaba.

Em casa, acaba mais cedo: não recebo nenhum tio folgado. Melhor assim









Basta a cada dia o seu próprio mal, mas não há ser humano que se contente com tão pouco. Nós juntamos o mal de ontem, com o mal de hoje, e o mal de amanhã, e o dia vira uma maldade só, pairando absoluta sobre as nossas cabeças, não em forma de nuvenzinha negra, mas em forma de céu de chumbo. Não é assim que deve ser.


Aceitar que cada dia tem o seu mal, nos faz pensar que a soma dos dias é a soma do mal e essa não é a lição didática que a Bíblia ensina.


Basta a cada dia o seu próprio mal, tem a ver com o fato de que o mal de ontem, deve ficar no ontem, para que possamos lutar contra o mal de hoje. O mal de amanhã pode não se concretizar porque, afinal, quem sabe a soma dos seus dias? Não temos certeza se amanhã viveremos, então para quê nos preocuparmos com um mal cujo dia pode não amanhecer?


O problema do mal encontra atuação dentro de cada dia. Cada dia tem o mal que lhe corresponde, e o mal de ontem corresponde ao dia de ontem. O mal de ontem, pertence ao ontem. O que existe de mal no dia de hoje, é para ser enfrentado hoje. Se o mal se estender até amanhã, não será mais o mal de hoje, será o mal de amanhã.
Dia sem mal é o dia da morte, se o óbito ocorrer à zero hora e hum minuto. Se passar disso, já é um dia com o seu próprio mal. A nossa vingança é que haverá um dia em que o mal não poderá nos tocar.


O mal de hoje, se não for outro, é, pelo menos, esse: depois de uma noite de sono, tocar a dura terra com os pés bem fixos no chão.


Basta a cada dia o seu próprio mal, e se não for outro, pode ser cumprir a rotina estafante de um trabalho que te desagrada. Se não for outro, pode ser o metrô que entrou em greve. Se não for outro, pode ser o motoqueiro que ultrapassou o carro e levantou o indicador em riste, (e você nem soube porquê). Se não for outro, pode ser o elevador que te deixou na mão na hora de ir para o trabalho. Se não for outro, pode ser a rinite que não te deu folga durante o tempo todo. Se não for outro, pode ser o fora que o namorado te deu. Se não for outro, pode ser a empregada que não apareceu para trabalhar. Se não for outro, pode ser o chefe que voltou de férias. Se não for outro, pode ser o TCC que não foi aprovado. Se não for outro, pode ser a ex mulher perguntando cadê a pensão das crianças. Se não for outro, pode ser o oficial de justiça batendo na porta para te prender. Se não for outro, pode ser uma infinidade de males que acompanham o seu dia, a cada dia, apenas para te fazer lembrado de que aqui não é o céu. É um jeito muito eficiente de desencorajar o cidadão do céu a estabelecer uma morada definitiva, aqui na terra.


Basta a cada dia o seu próprio mal. O mal de hoje, para mim, foi um tanto quanto leve, porque também tem essa: a vida nos ensina a conter o mal, conspirando contra a importância que ele se arroga e diminuindo o seu poder. A vida nos ensina a pegar o mal pelo colarinho e jogá-lo pela janela. A mandar o mal pra ponta da praia negra, de patinetes, num sol africano de 40 graus.


Acordei às 5 da manhã e tomei o meu café, às 5.30. Esse foi o primeiro mal: acordar às 5 da manhã. Mas foi um mal menor, se comparado ao mal maior que me fora infligido: eu deveria estar na clínica as 8,30, em jejum, para realizar uma série de exames de rotina. Como conheço o meu metabolismo, já sei que um jejum de três horas é mais que suficiente para fazer desaparecer do estômago qualquer vestígio de comida. Então, acordei às 5 para tomar o meu café e não fiquei com fome a manhã inteira como o mal queria. - Você está em jejum? – Estou em jejum. E estava em jejum de 3 horas e meia, mas ele não precisava saber disso.


O segundo mal foi que me esqueci de levar a requisição médica para a autorização do exame, o que obrigou-me a voltar à tarde, mas não foi um mal tão grande porque o médico atendeu-me pela manhã sem a requisição, e os exames estavam ótimos, graças ao meu bom Deus.


O terceiro mal foi que recebi um e-mail com a mesma conversa de sempre, acenando com uma projeção literária, mas foi um mal menor se comparado ao que recebi tempos atrás dizendo que a China compraria todos os meus livros e que eu precisava urgente contratar um tradutor.


O quarto mal foi que o vidraceiro marcou comigo para medir os vidros da minha futura casa, e não veio. Mas foi um mal menor, porque o pedreiro que me acompanharia, teve dor de barriga e também deixou de vir.


O quinto mal foi que o meu gato vomitou uma bola de pelo, mas poderia ter sido um mal maior se ele tivesse retido essa porcaria no estômago.


O sexto mal, ainda não sei: são apenas 19 horas e 45 minutos.


É dessa qualidade de mal que a Bíblia está falando. Você acha que vale a pena levar qualquer uma dessas


bobagens na bagagem de um novo dia? Não faça isso! A cada dia basta o seu próprio mal.


Viver é uma convivência inteligente com o mal. Viver é não subestimar o poder do mal. Viver é aprender que contra o mal, só vale a astúcia. Viver é não se antecipar ao mal, mas é chegar junto com ele. Viver é oferecer ao mal a resistência que lhe é devida. Viver é cavar trincheiras para o mal não aumentar território. Viver é ser titular das próprias defesas. Viver é, finalmente, reconhecer que o mal se combate com luta, mas a guerra por aqui nunca termina.


Acho que estou aprendendo.

Como eu cheguei a "1822"




Eu já sabia que o livro estava sendo celebrado de norte a sul, e de leste a oeste, mas encarar um livrão daqueles, apenas para acompanhar a tendência literária do momento, me causava um profundo cansaço. Sou daquelas que quando compra, não desiste de jeito nenhum, mesmo que a leitura seja enfadonha e repetitiva. E quem tem formação em história já sabe que a história está encerrada na história. Então por que ler mais um livro da mesma história que foi contada no meu curso de história? Só depois que comprei e devorei o livro fui entender que é possível ser formada em história sem conhecer toda a informação sobre a história.


O livro é escandalosamente novo, é completo, é envolvente e uma vez acabada a leitura você fica com a sensação de que acabou mesmo. Depois eu explico o porquê do “escandalosamente novo”.


Com certeza , vocês já sabem que estou falando do best seller "1822," do escritor maringaense Laurentino Gomes, primo da minha amiga Renata, ai que orgulho, dá licença.

Conheci Renata na academia que freqüento todas as manhãs, quando estou em Maringá, que é o meu segundo domicílio. Trocamos um dedinho de prosa, falei que escrevia, que tinha um site na web, ela me perguntou sobre o quê, demorei um tantinho para responder que era uma escritora de comportamentos, uma cronista que pega um fato objetivo, revira pelo avesso e faz a crônica surgir pelo lado de dentro, reproduzindo a repercussão dos fatos, e não propriamente o fato em si. Nada novo, muitos já fizeram isso.

Pensei que, descrito assim, seria complicado entender mas quê nada, ela entendeu. A conversa correu frouxa e como uma coisa puxa a outra eu disse que quem escreve, também lê, o que acaba roubando todo o tempo e impedindo o escritor de viver, já levando a conversa para o lado subjetivo, que é a minha visão de mundo.

Ela me perguntou se eu havia lido "1822" e fiquei com vergonha de dizer que não havia lido "1822", porque afinal todo escritor brasileiro que se preze já leu "1822". Na verdade, eu tinha passado os olhos no livro anterior, "1808", de um jeito muito leve e sem compromisso. Explico: quando estou em Maringá, pela manhã, vou à academia, e à tarde visito a livraria Nobel que fica no shoping. São os meus programas.

A livraria Nobel é o melhor lugar de Maringá, depois da minha casa. O Massao, que era dono de uma banca de revistas, fez da Nobel um ponto de encontro literário como tantos que existem por ai nas grandes metrópoles, mas que aqui no interior, só agora começa a aparecer.

Que delícia aquele espaço: livros, livros e mais livros, poltronas, café, comidinhas, ar condicionado, e nos finais de semana, música popular ao vivo, num nível de sonoridade que não atrapalha a leitura, nem cansa os tímpanos. A sensação é de pertencer: Achei a minha praia! Sem sol, sem calor, sem areia, sem bronzeador, sem nada que me cause desconforto.
Pois então. Foi nesse nível de satisfação quase paradisíaca que tive contato com "1808", ouvindo um som, tomando um chocolate quente com chantilly, comendo uma panqueca, lendo uma página aqui, outra ali, envolvendo os cinco sentidos com tudo que mencionei, inclusive o livro, fato que me ocorre agora até poderia dar nome a um outro livro: “Ouvir, Ler e Comer,” mas é melhor não tentar. Vão me mandar para a Tailândia.

Parece um jeito muito desfavorável para abordar um livro sério como esse, dando uma lambida aqui, outra ali e é mesmo, livro não é sorvete. Não sei o que pensaria a família real a respeito, mas em minha defesa posso afirmar que já presenciei coisas piores sendo perpetradas contra a cultura.

Há poucos dias, vi uma montanha de livros numa secção de saldos, cujo preço envergonharia o escritor, desvalorizando o seu trabalho, a sua história, o seu pendor literário, a sua vocação. Vocês não vão acreditar, mas nesse dia, eu comprei Clarice Lispector por quatro reais e noventa centavos, só porque em cima da cara da Clarice tinha uma manchinha amarela! Fiquei pasma! Se queimam Clarice Lispector por esse preço, com ou sem manchinha, não quero nem pensar o que fariam com Ana Maria Ribas. Deixa pra lá.

Voltando a "1822", o livro. Depois que a Renata perguntou-me se eu havia lido, e ainda por cima contou que o autor era seu primo, entendi a urgência do momento e fui à livraria Nobel comprar os dois, o "1808" e o "1822". Queria começar pelo primeiro porque sou metódica, mas o primeiro estava em falta, então comprei o "1822".

Li o livro em duas noites. Na primeira, parei a meia noite e meia, no final do capítulo “ A Princesa Triste" e só pude retomar na noite seguinte, terminando a leitura do livro em torno de idêntico horário. Mesmo sabendo que sou uma tremenda leitora dinâmica, confesso que até eu espantei comigo! E não pensem que foi superficial, não foi mesmo. Li, entendi, analisei, aprendi, me envolvi, emocionei, ri, descansei o livro no peito diversas vezes (como faço sempre que a admiração me toma), enfim, fui capturada pelo texto, pelos personagens, pela história, pela época, pelo dinamismo e pela agilidade que a escrita me cobrava. Ou eu lia, ou os fatos saltariam da página e seguiriam à frente, sem mim. Fui junto até acabar. Quando acabou, acabou.

Depois de "1822" jamais será possível reescrever a história do Brasil desse jeito tão humano e tão pessoal. D.Pedro, de fato, existiu. Isso não é maravilhoso? Para mim ele passou a existir após a leitura. A descrição do seu temperamento e das suas características pessoais fizeram-me saber que ele amou o Brasil, amou as mulheres, foi fogo, foguinho, apaixonou-se, escreveu cartas de amor, teve medo, ciúmes, dúvidas, coragem, foi magnânimo, generoso, bondoso, rude, mandão, mulherengo, brincalhão, encarnou contradições, passou fome, frio, cansaço, teve diarréia, fez cocô no mato, renunciou ao conforto, enfrentou longas jornadas em lombo de burro, sofreu como pai e como homem, gastou-se neste país pelo qual viu o mundo e o experimentou, em toda a sua crueza.

Eu não sabia de nada dessas coisas que um historiador jamais incluiria em seus livros, e um repórter, com o seu faro para notícias, nunca excluiria da sua obra.

Dona Leopoldina, mais que imperatriz foi uma mulher a quem interessavam as pedras, as flores, os insetos, as pequenas alegorias que introduzem os fatos da vida a um patamar mais elevado, ainda que não estejamos falando de botânica ou de zootecnia. Por tais percepções, ela prescindiu de vaidades, foi sábia, generosa e passou para a história como uma mulher cuja postura e código de conduta, anos mais tarde, a rival Domitila tentaria reproduzir. Ponto para Leopoldina.

Mas a grande incógnita que me foi desvendada, atende pelo nome de José Bonifácio de Andrada e Silva. Ai está um homem que eu gostaria de ter conhecido, mesmo baixinho, mesmo magrinho, mesmo franzino. Só o fato de ter sido um abolicionista não justificaria, por si, a minha admiração pelo personagem. Mas o conjunto de atitudes que tomou em defesa da ordem, e as filigranas que transparecem na narrativa dando conta do seu temperamento combativo e ao mesmo tempo normal, gentil, um homem que dava atenção às crianças, um dançarino de lambada em cima de uma mesa, ( sei que foi dançarino de lundu, mas pra mim foi lambada, e pronto) me fizeram perceber que desempenhou vários papéis sem perder a dimensão comum da existência. Se eu fosse Bonifácio também escolheria Paquetá para um exílio voluntário até a morte. Isso se chama coerência.

Todas as minhas considerações têm um viés subjetivo. Eu sei. Embora me seja possível depois da leitura compreender a história do país de uma maneira mais abrangente e sob uma perspectiva muito mais ampla, continuo enrolada emocionalmente com os tipos humanos que encontrei por ali. Não tenho culpa, sou uma escritora de comportamentos e não uma historiadora.

Laurentino Gomes conseguiu a façanha de ser as duas coisas ao mesmo tempo.

Fiquei de explicar porque o livro é escandalosamente novo. Porque perto dele, todos os livros anteriores ficam velhos. Ainda que o autor tenha subido aos ombros de historiadores que vieram antes dele, ainda que tenha lançado mão de pesquisas acadêmicas contemporâneas, como bem atesta a extensa bibliografia citada ao final de cada capítulo, prevalece o fato de que há um élan que é só dele, e o move, em direção ao que é pessoal, e ao que é transpessoal, em cada personagem.

Se eu pudesse estabelecer um paralelo entre estes, e alguns daqueles que constam na Bíblia, eu diria que em todo personagem histórico, seja bíblico ou não, o desafio do historiador e o mérito do registro está em suscitar em seus leitores, a noção de que a história é incapaz de comportar, retratar e fidelizar toda a realidade humana subjetiva, seja ela boa ou ruim. Nesse sentido, Laurentino Gomes me parece imbatível.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Comer, rezar, amar - Uma análise da vida





Comer, rezar, amar - Uma análise da vida


Não vi o filme. Li o livro e gostei do script. Logo, pensei que a escritora tem uma imaginação pra lá de fértil e que, por essa, e por outras qualidades, merece receber os direitos autorais que lhe são devidos e mais a paparicação que a fama lhe trouxe.
Vale esclarecer que comprei o livro não acreditando numa linha do que estava sendo descrito pela imprensa como história real. Já se sabe o que penso da personalidade inventiva dos escritores. Mas comprei pensando em admirar o esforço literário para parecer crível, a exposição generosa do perfil escancarado pela moça, a tentativa de montar o cenário mais natural possível para cada uma dessas necessidades humanas.
Comer, rezar e amar são necessidades básicas do ser humano, não necessariamente nessa ordem. Sem comer ninguém se mantém em pé por muito tempo, sem rezar ninguém morre, - porque na hora trágica até o ateu reza- e sem amar ninguém vive, no máximo vegeta.
Logo comer, rezar e amar são acidentes geográficos que acontecem a todo mundo, todos os dias, em qualquer lugar da terra.
Comer. Para comer, a escritora saiu de EUA e se deslocou para a Itália. Viajou para o país errado. Se em EUA come-se mal, na Itália também não se come bem.
Não sei porque a Itália tem fama de ser o país onde melhor se come. Ledo engano. Come-se mal pra xuxu.
Detalhe bobo: sem xuxu. Sem farofa. Sem churrasco. Sem arroz e sem feijão. Sem as generosas porções que os nossos restaurantes servem no Brasil.
Na Itália, toda massa é al dente. Bom pra quem tem dente. Mas para o brasileiro comum, para a média da população brasileira acostumada a uma ponte fixa, a uma dentadura básica com e sem Corega, a massa ideal é a de consistência cremosa, que não ofereça resistência.
Na Itália, serve-se uma massa quase crua! E dá-lhe azeite para ajudar a descer.
A pitzza italiana tem bordas queimadas, e nenhum aditivo que suavize a secura, a não ser uma minguada porção de queijo no centro. O resto é farinha.
Nem pense em pedir katchup. O italiano considera uma heresia a misturança que fazemos com o que eles chamam de pitzza napolitana.
Essas são as lembranças que eu guardo da culinária italiana. Posso lhes garantir que em Roma não se come bem, mesmo pagando o mesmo que La Gilbert pagou, e mesmo comendo o que La Gilbert comeu.
Um conselho: Coma no Bixiga mesmo. Depois de comer nas cantinas italianas do Bixiga você ainda pode matricular-se num curso de italiano e falar razoavelmente bem o idioma que ela classificou como divino. (Coisa de gringo.) Tudo sem sair do Brasil. Essa primeira parte tá resolvida a preços módicos. E se você precisar de um livro que conte a história do Bixiga, - com i- posso lhe indicar um.
Para rezar. Para rezar, ela começou rezando no banheiro e foi parar num ashram na Índia.
Segundo o Google, ashram é um monastério para pessoas que querem desligar-se do mundo e estar a sós com Deus. E foi ai que o livro começou a me intrigar. Porque eu também fiquei morrendo de vontade de ir para um ashram onde pudesse ter -com Deus - a experiência que ela descreveu.
Esse é o tipo de programa que me atrai. La Gilbert poderia comer todos os antepastos e pastos da Itália que não me chamaria atenção. Poderia também comer, beijar e amar todos os belíssimo italianos que ela descreve ( são lindos mesmo!!!) que não me despertaria nenhum tipo de luxúria incipiente. Mas experimentar um vivo contacto com o Deus Vivo, não é algo que eu possa ler com desdém, ou duvidar de primeira, ou ignorar e fazer de conta que não entendi.
Em relação às coisas de Deus eu tenho um lema: faz parte da minha vida acreditar. Portanto, eu acredito primeiro, e vejo o que acontece depois, segundo a minha crença. Achei muito crível a maneira como as coisas aconteceram entre ela e Deus. Eu sei que é assim que funciona. E sei também que é assim que não funciona. Deus não cabe em parâmetros humanos , mas de vez em quando, cabe. Por isso, na dúvida, ofereço o benefício da crença. Ponto.
Fiquei com uma baita inveja do tempo que ela passou lavando o chão do monastério. Eu creio nisso. Creio que lavar o chão de um monastério é uma forma de lavar a alma. É um ato profético de grande simbolismo espiritual. Também creio muitíssimo no poder do silêncio. Aprender a calar é condição imprescindível para Deus falar. O resto é criança brincando na hora do recreio.
O mundo está repleto de religiões cristãs que oferecem a hora do recreio com torcida organizada. De vez em quando importam um mágico para melhorar a recreação.
Eu quero experimentar a hora do exame. A hora do auto-exame. Mente apaziguada com o silêncio de fora, esperando tranquilamente pela voz de dentro. Isso existe, não tenho como duvidar.
E foi ai que o livro começou a ganhar contornos de realidade, para mim. Como não posso ir para a Índia, talvez devesse começar pelo chão do banheiro. Ou do quarto. To pensando por onde começar.
Amar. Depois da Itália e da Índia, La Gilbert foi para a Indonésia, ainda pensando em evolução espiritual. Caprichosa, a moça! Na Indonésia, além de rezar, foi surpreendida por Deus com um presente do céu e só então, como resultado da busca diligente, veio a boa hora de amar.
Isso também faz sentido: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e todas as demais coisas lhe serão acrescentadas.” Ou seja: quando se busca em primeiro lugar as coisas de Deus, o resto vem por acréscimo, como um presente.
Na Indonésia, La Gilbert encontra o brasileiro Felipe, que além de brasileiro, tem cara de gente fina. Tem cara de filho da dona Terezinha que mora na esquina. Tem cara de professor de filosofia. Tem cara de quem gosta de criança. Tem cara de quem acredita em Deus. Tem cara de quem ama cachorro. Mesmo careca. Mesmo mais velho. Mesmo usando óculos de grau. Mesmo divorciado. Mesmo morando na Indonésia. Felipe ou José Lauro Nunes, para os íntimos, é daqueles raros homens que dá pra confiar de primeira, de segunda e de terceira, até completar a volta ao mundo, sem marcha a ré. E o melhor: parece ser de carne e osso. Imagine isso tudo perdido na Indonésia, falando português?!
- Que sortuda! É o primeiro pensamento.
O segundo é: - Deus está nesse negócio porque "toda boa dádiva e todo dom perfeito desce do alto, do Pai das luzes, em quem não há sombra e nem mudança de variação.”
Tá bom. E agora? O que eu faço agora com uma história dessas que parece ter saído de um conto de fadas?
Eu penso. Penso nela como pensam os bobos. Penso nela como pensam os crédulos. Penso nela como pensam os que têm fé. Essa é a parte bonita. Terminei o livro e ainda penso nele. No livro. Na história do livro. Na mensagem que ele encerra.
A parte feia é: -penso com certa perplexidade mórbida. Afinal, tinha tudo para dar errado. E como deu certo, mamma mia?
Eu não sei. O que sei é que não é todo dia que se abandona um marido dormindo na cama para ir rezar no banheiro. Ou num ashram na Índia. E Deus ouve!
Não é todo dia que se pede despensa do trabalho para comer macarronada na Itália. Ou para fazer um curso de italiano porque essa é a língua mais melodiosa do mundo. E Deus aprova!
Não é todo dia que se abandona o mundo conhecido do país em que nascemos para enfrentar o desconhecido, em outro país. Em outro estado. Em outra cidade. E Deus vai junto!
Não é todo dia que se tem a coragem de sair por ai com uma mochila nas costas para conhecer outras culturas. E Deus abençoa!
Não é todo dia que se pega carona com desconhecidos, em três países diferentes, e dá sorte de encontrar gente normal. Nenhum tarado, nenhum assassino, nenhum doido. E Deus protege!
Não é todo dia que se viaja para outro continente afim de fazer um balanço da própria vida. Normalmente, a gente faz isso em casa mesmo. Na segurança do lar. Ao lado do homem que reparte a cama conosco. No colo da mãe. No peito do pai. Afagando o cachorro. Sendo afagada por ele. Ouvindo Roberto Carlos. Comendo miojo na panela. Tomando chá de canela na cozinha. Rezando antes de dormir sem poder especificar direito o que se quer. Amando os amores possíveis. Sonhando com os sonhos impossíveis. Sentindo culpa. Morrendo de medo. Pedindo perdão. Tentando ser melhor.
Não é todo dia que a gente encontra uma mulher tão corajosa como La Gilbert. As heroínas mais comuns comem, rezam, e amam do jeito que dá, e em troca, a vida lhes concede a ração acostumada de cada dia, o amor sem convicção, um pai nosso e uma Ave Maria. E tá tudo combinado nas estrelas.
Elizabeth Gilbert pode ter montado um teatro de ficção com o seu "Comer, Rezar, Amar," mas foi uma montagem perfeitamente crível. Uma narrativa incrivelmente bela. Dessas que de tão bem feitas, até duvidando a gente acredita. E morre de inveja.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Duas dúzias de mim




Sempre que vou viajar, acontece-me algo muito estranho. Na véspera, terminando de arrumar as malas, quando embalo as coisas para dormir, à espera da minha volta, o meu entusiasmo pela viagem diminui e dá lugar a um sentimento que se parece com um adeus definitivo.

Viajar para mim é uma espécie de morte, a morte das coisas que ficam, a morte da paisagem que vejo da janela do meu quarto, a morte da rotina de cada dia, a morte dos meus hábitos, a morte dos meus animais, a morte das pequenas coisas com as quais preencho a vida e gasto o meu tempo.

Antes mesmo de ir, já fui. Já fui quando me esvazio gradativamente das realidades que me preenchem e por já ter ido, antes mesmo de ir, a saudade bate forte no peito e a nostalgia me domina. Se há algo sobrenatural que sonho receber um dia, quando deixar este mundo é a capacidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, liberta da impossibilidade da matéria que me obriga à permanência em apenas um. Trata-se de um atributo tão imenso que sempre que o desejo peço perdão a Deus por esse querer absurdo que está acima da minha capacidade de comum mortal.

Tenho pois essa digressão emocional que rouba a minha alegria às vésperas de uma viagem. Antes não. As semanas que antecedem a viagem trazem-me um presságio de esperança. Fico feliz quando me programo para uma viagem. A programação é motivo de celebração. Imagino-me lá e a imagem do lá enche-me de expectativa. Lá é que será bom. Lá haverá um jeito de olhar para o céu e ver só o sol, só as nuvens, só a grandeza de Deus. Lá, ao acordar, poderei usufruir da paz sem guerra. Lá, se eu não dormir, não lutarei contra a insônia, nem tentarei abduzir o sono, tão grande será o descanso de mim comigo. Além disso, há esse outro isso: agrada-me a idéia de usufruir de uma mobilidade fictícia – porque afinal, quem é livre?- mas a mim parece-me que sim, que sou livre e que posso ir e vir, embora naquele momento interesse-me mais o ir do que o vir. Na preparação de uma viagem, na idéia que apenas se insinua, bem à distância, sinto-me como devem sentir-se os passarinhos quando migram para outro continente.

Porém, quando se aproxima o dia da partida, sinto saudades dos momentos de permanência acostumada. Também sinto que as coisas terão saudades de mim. As coisas. Coisas que latem, coisas que miam, coisas que andam pelo telhado e na calada da noite vêm buscar comida na minha sacada, coisas que voam e pedem alpiste, coisas que eu alimento e que me alimentam, coisas que me servem, coisas às quais eu sirvo, coisas que se movem e que não se movem, mas são feitas da mesma matéria com as quais Deus nos criou: os átomos. Será que os átomos sabem o que é saudade? Eu creio que sim. Eu creio que um chinelo velho jogado na lata do lixo sente saudades do pé que o transportou. Acho que é por isso que certas pessoas vão acumulando coisas e não conseguem desfazer-se de nada. Porque sentem o que o chinelo sente. Graças a Deus, eu dou o chinelo para outra pessoa antes que ele fique muito velho e ai o problema passa a ser de outra pessoa. Essa é a forma que encontrei para não me apegar a muitas coisas. Reciclo, redireciono, passo pra frente e procuro esquecer.

Eu entendo perfeitamente pessoas que não gostam de mudanças. Eu acho que também não gosto. Pensando bem sou avessa a mudanças. Uma simples mudancinha de uma semana me deixa assim, toda melancólica. Mas nem por isso deixo de mudar. Eu entendo perfeitamente as pessoas que não gostam de viajar. Mas nem por isso deixo de viajar. Eu entendo perfeitamente que a vida é um exercício de desapego. Já comecei a fazer o dever de casa há alguns anos. Faço esse exercício de maneira suave, mas ininterrupta. Estou me desapegando de coisas que devem deixar de pertencer-me antes que eu mesma não me pertença mais. Tenho pavor de pensar em deixar para as minhas filhas uma porção de velharias cheirando a mofo, cujo valor seja apenas sentimental. Afinal, nenhum filho merece uma herança atávica feita de objetos que se perpetuaram na espécie familiar. Já comecei a sondagem: discretamente vou descobrindo o que deve ficar para quem, e o que não deve ficar para ninguém. Se a coisa mais difícil do mundo é encontrar um dono para as coisas que o defunto deixa no armário, tudo bem: tentarei fazer isso pelas minhas meninas antes de virar defunta.

Porque eu também já fiz a coleta seletiva deixada pela minha avó, pelos meus pais, e pelo meu filho. Porque eu também já morri um pouco a cada vez que me desfiz daquilo que durante anos, ficou guardado no mesmo armário. Coisas. Coisinhas. Caixas. Caixinhas. Todas com a cara do dono, pedindo respeito e exigindo consideração. A consideração que se deve ter com os seres vivos e que, às vezes, não temos.

Eu odeio todas as espécies de morte, todas as separações, todas as interrupções, todos os afastamentos, todas as ausências, todos os processos que nos obrigam a escolher entre este ou aquele, entre isso ou aquilo. Eu quero este e quero aquele, quero isso e quero aquilo. Cabe tudo dentro do meu coração. Mas que pena: não cabe dentro das convenções sociais, não cabe dentro do esquema doméstico, não cabe dentro do código civil, não cabe sequer nas leis da física. Uma pessoa é uma só, não pode ser duas. Uma pessoa é uma só, não se divide. Uma pessoa é uma só, mas juro que dentro de mim tem lugar para mais duas dúzias de mim.

































Seres Moventes

Viracopos é um laboratório riquíssimo de observação antroposófica, uma estação onde se pode observar de perto o comportamento dos iguais diferentes.
Somos todos iguais diferentes, portadores de uma humanidade rasa que adora se mover. O homem é um ser inquieto, está sempre em movimento.
Em direito civil há os chamados seres moventes. Obviamente ser movente é tudo o que se move, embora em direito civil seja um termo que se aplique apenas aos burros, cavalos e coisas tais que possuam 4 patas.
Nisso somos todos iguais: poeirinha cósmica diluída no oceano da matéria sem raízes que nos imobilizem ao chão. Somos diferentes na singularidade com que escolhemos o nosso destino, no comportamento determinado pela cultura, pelo temperamento, pelas preferências estéticas, escolhas sutis que revelam a nossa individualidade através do jeito de falar, de andar, de vestir, de nos conduzir pela vida afora.
Ou pelas plataformas de embarque adentro. Viracopos e todos os grandes aeroportos do mundo funcionam como uma vitrine que expõe todo tipo de seres moventes. A proximidade favorece a exposição. O fluxo estagnado determina a observação. Todo mundo sentadinho lado a lado, num salão apertado, com poucos banheiros, ou em fila indiana à espera de alguma coisa, todo mundo à mercê de regulamentos cuja lógica nos escapa, cuja segurança nada nos assegura, todo mundo com a disposição de alunos disciplinados e, ao mesmo tempo, displicentes, famintos, sedentos, fisiologicamente necessitados, alheios ao espetáculo que proporcionamos, uns aos outros, na interatividade forçada a que nos submetemos enquanto esperamos a hora de nos mover, porque seres moventes somos.
Da última vez que me movi, entrei na fila dos famintos e dos fisiologicamente necessitados uma vez, e depois me sentei observando uma coisa nova que acontece em Viracopos: entre as poltronas da área de embarque foram dispostos alguns assentos de tamanho grande com os seguintes dizeres : “Reservado para pessoas obesas.”
Pessoas obesas existem em todos os lugares, de acordo com a observação comum. Mas uma coisa é observar os obesos e outra coisa é estar habitando um corpo obeso. Do ponto de vista das pessoas não obesas, é fácil determinar quem é obeso e é uma expressão de gentileza lhes destinar poltronas mais largas e confortáveis.
Mas do ponto de vista das pessoas obesas, obeso é a mãe. Obeso é a mãe de todo aquele que ousar sugerir que o obeso seja obeso. Ocorre que o conceito de obesidade é algo subjetivo e só a OMS tem parâmetros científicos para determinar quem cruzou a linha da obesidade e quem está chegando lá. O resto fica no senso comum que varia segundo a interpretação sensorial de cada um e que, por isso mesmo, tende a ser cruel com o outro e complacente consigo.
Por isso, embora o salão de embarque estivesse repleto de pessoas obesas, eu não vi nenhuma que assim se considerasse, e que estivesse disposta a ocupar os tronos sem cetro e sem majestade do rei Momo, instalados a cada fileira, porque seria pagar um mico muito grande fora do carnaval.
Resultado da ação social: salão lotado, pessoas em pé, e todas as poltronas de gordo, vazias.
Gordo é sempre o outro. Gordo é a senhora sua mãe. Gordo é a sogra. Gordo é o chefe. Gordo é o filho do patrão. Gorda é a perua da vizinha. Gordo é o filho da mãe que teve a infeliz idéia de escancarar que aquele assento foi pensado para os gordos.
Se a ANAC está tão preocupada com o bem estar dos gordos, deveria obrigar a aviação civil a oferecer em seus aviões uma fileira de poltronas só para os gordos.
Eu não sei se você já se moveu ao lado de um gordo. Eu já. Sobra banha e falta assento e aquilo que sobra, com certeza, acaba ultrapassando a tênue linha que divide as duas poltronas onde se concentram os respectivos traseiros dos seres que se movem. Não há nada a fazer. A não ser lamentar o azar e pedir a Deus que a aeronave chegue logo ao destino.
Viracopos é assim: um circo onde qualquer um pode participar do espetáculo. Se você não quiser ser o artista pode ser espectador, pode ver, pode ouvir, pode racionalizar, pode se divertir, pode indignar-se, encorajar-se, pode fazer suposições, só não pode ausentar-ser. Não há como ausentar-se do recinto. Somos forçados a uma convivência pacífica de duração variável no campo de concentração em que os seres moventes ficam retidos como seres de 4 patas, até que a aeronave decole com aqueles que escolheram mover-se naquele dia e hora. Sim, porque o horário marcado com dias de antecedência é apenas para os seres moventes respeitarem. As empresas aéreas não o respeitam nunca. Contudo, temos que admitir: por conta da diversidade dos seres moventes, às vezes, essa maratona é divertida.
Nessa ocasião, além de observar o comportamento dos gordos, também consolidei o aprendizado em relação aos seres moventes do sexo feminino que usam Viracopos como plataforma de lançamento.
Foi assim: esse ser movente que vos escreve estava sentada ao lado de dois seres moventes do sexo masculino que, por suposição, eram amigos, mas também poderiam ser parentes. Inimigos não eram porque o papo rolava animado. Em Viracopos a gente supõe, mas nunca tem certeza. Para ter certeza seria preciso cometer uma indiscrição. Claro que nenhum ser movente, em perfeito estado de juízo e adequação social, sucumbe a essa curiosidade. Estávamos, pois, os três seres moventes nesse clima de dedução civilizada, lado a lado, como se estivéssemos sentados na sala de casa, cruzando e descruzando as respectivas patas. Ou melhor, as respectivas pernas. Estranhos e íntimos. Tão perto e tão longe. Tão impessoal e tão causal. Tão casual e tão formal. Impossível não observar o mundo pela mesma perspectiva, impossível não ouvir, impossível não entender, impossível não acompanhar o raciocínio dos seres moventes que estão colados a nós. A certa altura, a vontade é abandonar a postura impávido colosso, cantar o hino nacional sem essa estrofe, pedir licença, e intrometer-se no diálogo para oferecer a nossa modesta visão sobre o assunto. Qualquer assunto. Que de assunto a gente entende.
Claro que não nos intrometemos. Mas claro que foi assim, nessa participação silenciosa e involuntária, que aconteceu o que acontece sempre em Viracopos: um ser movente do sexo feminino entrou no ângulo da visão coletiva. Mas esse não era um ser movente comum, era de arrastar quarteirão, só pelo prazer de admirar uma coisa diferente que se movia do nada para lugar algum. Na verdade, esse era um ser movente delivery que poderia ser despachado para qualquer lugar do Brasil e do exterior. Imagine um mulherão de hum metro e oitenta centímetros, fora o salto, apertada numa saia de 50 centímetros, pernão musculoso de jogador de futebol, rabo de cavalo tordilho, peito de chester, e bunda de passista de escola de samba, e você obterá a visão da garanhona que prendeu a atenção dos comuns mortais que, naquela noite, se moviam.
Obviamente, os dois seres moventes que estavam ao meu lado também ficaram seduzidos pela aparição salomônica. Assombrados. Atordoados. Visivelmente embabascados. Após dois minutos de silêncio dedicados à babação explícita, o ser movente mais velho olhou para o ser movente mais novo, e fez a pergunta que não queria calar: - " Cara, o que você faria com um mulherão desse?” O ser movente mais novo apressou-se a esclarecer o que não faria: - “Deus me livre! Abraçar uma mulher dessa deve dar uma puta sensação de abraçar um homem.” Detalhe: o ser movente que fez a avaliação era pequeno, magro, franzino, desprovido de músculos, mas com muito cérebro.
Ambos os seres moventes riram e este ser movente que vos escreve também riu. Mas riu por dentro. Porque em Viracopos o ser movente que está sozinho só pode rir por dentro. É terminantemente proibido rir por fora. Porque é assim que deve ser. Porque é assim que os seres moventes devem se comportar: heroicamente silenciosos, esfingicamente surdos, convenientemente mudos. Comporto-me então, mas depois venho aqui e conto tudo.

domingo, 27 de março de 2011

A fila nossa de cada dia


Nem é tão ruim quanto parece. Às vezes, a gente exagera nos medos, nas superstições, nas imagens pré concebidas e fica odiando aquele momento de uma ameaça tão grave como nos parece o direito de freqüentar a fila das pessoas com mais de 60 anos. Nem é tão grave assim. O problema é que acontece de repente. Precisaríamos de mais tempo do que uma noite para nos acostumarmos com a idéia. Em um dia, não se pode entrar na fila curtinha, tem que encarar a fila grandona. A fila dos ocupados. A fila dos apressados. A fila dos que precisam correr muito para vencer as obrigações. No outro dia, logo no outro dia, pronto: acaba de ser instaurado um novo tempo e você pode sim fazer parte daquele pequeno grupo de pessoas que, a despeito do privilégio, adora uma fila. Todo aposentado adora uma fila! Não se pensou nisso quando se instituiu a lei que estabelece essa gentileza. Não se pensou que aposentado tem tempo para tudo, até para a fila. Não se pensou que depois da fila, o aposentado vai para casa e não tem mais nada para fazer até a próxima fila. Não se previu que quem precisa executar serviços com agilidade é exatamente o trabalhador que tem compromisso com horário, que bate o ponto, que se divide entre estudar, produzir, trabalhar, e outras coisinhas mais embutidas pelo meio. Não é o caso dos aposentados. Aposentado é aquele sujeito que se diverte na fila, que faz amizades na fila, que conversa na fila, que troca gentilezas na fila, que paquera na fila, que fala mal do governo na fila, que acha uma babaquice esse negócio de ter fila especial porque ele, na verdade, tem saúde, tem energia, tem disposição e - principalmente - não tem mais nada para fazer naquele dia comprido que começa animado numa fila. É certo que há filas e filas. Há filas toleráveis e há filas execráveis. Fila de banco é a preferida porque tem ar condicionado e tem cadeiras para sentar. Mas o aposentado não senta. Quem gostaria de sentar – e não pode- é o trabalhador que está caindo pelas tabelas de cansaço. A noite foi curta, o filho chorou, a mulher teve cólica menstrual, o fantasma do desemprego assombrou, o limite da conta extrapolou todas as medidas, e o coitado, além de não dormir, ainda teve que acordar pontualmente no mesmo horário, enquanto o aposentado ainda dormia. Enquanto a fila nem existia. Isso me parece uma tremenda injustiça. Isso me parece um atentado contra o bom senso. Isso me parece um legalismo sem precedentes na história da humanidade. Vamos combinar uma coisa: ninguém merece uma fila. E o trabalhador, menos ainda, porque o tempo dele é muitíssimo mais curto do que o tempo daquele que não trabalha mais. A partir dessa premissa, todo estabelecimento deveria ter competência para evitar filas. Enquanto isso não acontece, a exceção para filas especiais deveria existir para as pessoas fisicamente incapacitadas, fossem elas velhas ou não tão velhas. Mas há filas e filas, em todos os lugares. Cada uma delas tem uma característica própria que lhe confere um adjetivo especial. Fila no caixa do supermercado é desagradabilíssima. Fila do SUS ninguém merece. Fila para qualquer tipo de diversão é uma tremenda heresia, afinal o cidadão saiu para espairecer e não para cumprir uma obrigação. Fila em restaurante para um prato de comida é uma humilhação. Fila para usar o banheiro é uma temerosidade. O sujeito agüenta até onde agüenta, e no vigésimo passinho para a frente pode começar a anunciar ao seu nariz que não está agüentando mais. Essas coisas acontecem até nas melhores famílias. Eu me lembro de que, no curso primário, um colega pediu ao professor para usar o banheiro. Naquele tempo, o professor precisava autorizar para que o aluno pudesse usar o banheiro. O idiota do professor não autorizou, o burro do aluno obedeceu, e minutos depois, a sala toda rescendia a lírios do campo. Todos nós esperávamos ansiosamente por aquele momento, o momento em que um professor idiota seria ridicularizado por um aluno burro. Todos nós, crianças, sabíamos que o negócio ia acabar aonde acabou. Menos o professor que era a autoridade máxima. Aliás, as autoridades máximas não são muito eficientes para atender as necessidades do povo. Eu também me lembro, bem mais recentemente, de uma fila para um banheiro improvisado, que vi na televisão, durante o carnaval. A fila era imensa e o repórter -esse ser que não deve ter necessidade nenhuma, de coisa alguma, em tempo algum- ficava esperando para flagrar o sujeito que fazia xixi no poste. Achei uma tremenda injustiça. Afinal, se as autoridades não disponibilizam banheiro em numero suficiente, o cidadão que necessita de um xixi não pode ser responsabilizado por quebrar o protocolo. No aeroporto de Viracopos, em Campinas, há apenas dois banheiros femininos na sala de embarque. Um é para portadoras de necessidades especiais e o outro é para portadoras de necessidades físicas. Afinal para que você iria ao banheiro se não fosse por necessidade física? E ai, em Viracopos, acontece uma coisa estranha: o banheiro das mulheres com necessidades especiais, com portas maiores para cadeirantes, fica vazio porque graças a Deus estatisticamente há poucas mulheres nessa condição. Em compensação, o banheiro das pessoas com necessidades físicas – todas as demais- fica o tempo todo congestionado e a fila avança para o meio do salão numa solene demonstração de burrice mansa e coletiva. Como é possível que, tendo apenas dois banheiros, um deles possa ficar obsoleto por falta de clientela? Da ultima vez que estive na fila, foi me dando um nervoso tão grande, e uma urgência de igual tamanho, que tive que tomar uma atitude. Fiz um arranjo que me pareceu justo: encaminhei as mães com crianças, e as senhoras idosas – entre as quais me inclui- para o banheiro das pessoas com necessidades especiais e só isso já foi o suficiente para aliviar o congestionamento do tráfego, do intestino, e da bexiga. Esvaziou-se tudo ao mesmo tempo. Via de regra, o brasileiro que faz xixi é de uma passividade que me irrita. O brasileiro que viaja é de uma inércia que me consome. O brasileiro que se submete mansamente a todo tipo de arranjo que tenha a tarja de socialmente correto não tem capacidade para discernir um comportamento de manada. O efeito manada é assim: onde passa uma boiada, passa o boi. Todos os bois juntos fazem a boiada, mas aquele boi que fica sozinho tem mais chance de escapar do corredor que leva todos para o abate. É só uma questão de inteligência. Onde há consenso quase sempre há burrice. A fila das pessoas com necessidades especiais nem é tão ruim quanto parece e, convenhamos, tem mordomia. No começo você fica um tanto quanto embaraçado, mas depois acostuma. Acostuma-se rapidamente com tudo o que é bom. E acostuma-se tanto que podemos até gostar. Afinal, se a carteira de identidade nos concede esse privilégio por que não usá-lo? Se preciso responder, respondo. Por um único motivo: nem tudo o que é socialmente correto é moralmente aceitável ou possível de ser seguido à risca. Desconfiar dos privilégios pessoais e individuais, assim como desconfiamos dos privilégios de classes é demonstração de civilidade e bom senso. Essa é a parte bonita da história. Mas seria hipocrisia não destacar o oposto: o exercício da transgressão, sempre que a regra contraria a lógica, é uma qualidade dos seres inteligentes. E dos necessitados. Ambos merecem se não o aplauso, pelo menos, a tolerância.