sábado, 17 de dezembro de 2011

Como eu cheguei a "1822"




Eu já sabia que o livro estava sendo celebrado de norte a sul, e de leste a oeste, mas encarar um livrão daqueles, apenas para acompanhar a tendência literária do momento, me causava um profundo cansaço. Sou daquelas que quando compra, não desiste de jeito nenhum, mesmo que a leitura seja enfadonha e repetitiva. E quem tem formação em história já sabe que a história está encerrada na história. Então por que ler mais um livro da mesma história que foi contada no meu curso de história? Só depois que comprei e devorei o livro fui entender que é possível ser formada em história sem conhecer toda a informação sobre a história.


O livro é escandalosamente novo, é completo, é envolvente e uma vez acabada a leitura você fica com a sensação de que acabou mesmo. Depois eu explico o porquê do “escandalosamente novo”.


Com certeza , vocês já sabem que estou falando do best seller "1822," do escritor maringaense Laurentino Gomes, primo da minha amiga Renata, ai que orgulho, dá licença.

Conheci Renata na academia que freqüento todas as manhãs, quando estou em Maringá, que é o meu segundo domicílio. Trocamos um dedinho de prosa, falei que escrevia, que tinha um site na web, ela me perguntou sobre o quê, demorei um tantinho para responder que era uma escritora de comportamentos, uma cronista que pega um fato objetivo, revira pelo avesso e faz a crônica surgir pelo lado de dentro, reproduzindo a repercussão dos fatos, e não propriamente o fato em si. Nada novo, muitos já fizeram isso.

Pensei que, descrito assim, seria complicado entender mas quê nada, ela entendeu. A conversa correu frouxa e como uma coisa puxa a outra eu disse que quem escreve, também lê, o que acaba roubando todo o tempo e impedindo o escritor de viver, já levando a conversa para o lado subjetivo, que é a minha visão de mundo.

Ela me perguntou se eu havia lido "1822" e fiquei com vergonha de dizer que não havia lido "1822", porque afinal todo escritor brasileiro que se preze já leu "1822". Na verdade, eu tinha passado os olhos no livro anterior, "1808", de um jeito muito leve e sem compromisso. Explico: quando estou em Maringá, pela manhã, vou à academia, e à tarde visito a livraria Nobel que fica no shoping. São os meus programas.

A livraria Nobel é o melhor lugar de Maringá, depois da minha casa. O Massao, que era dono de uma banca de revistas, fez da Nobel um ponto de encontro literário como tantos que existem por ai nas grandes metrópoles, mas que aqui no interior, só agora começa a aparecer.

Que delícia aquele espaço: livros, livros e mais livros, poltronas, café, comidinhas, ar condicionado, e nos finais de semana, música popular ao vivo, num nível de sonoridade que não atrapalha a leitura, nem cansa os tímpanos. A sensação é de pertencer: Achei a minha praia! Sem sol, sem calor, sem areia, sem bronzeador, sem nada que me cause desconforto.
Pois então. Foi nesse nível de satisfação quase paradisíaca que tive contato com "1808", ouvindo um som, tomando um chocolate quente com chantilly, comendo uma panqueca, lendo uma página aqui, outra ali, envolvendo os cinco sentidos com tudo que mencionei, inclusive o livro, fato que me ocorre agora até poderia dar nome a um outro livro: “Ouvir, Ler e Comer,” mas é melhor não tentar. Vão me mandar para a Tailândia.

Parece um jeito muito desfavorável para abordar um livro sério como esse, dando uma lambida aqui, outra ali e é mesmo, livro não é sorvete. Não sei o que pensaria a família real a respeito, mas em minha defesa posso afirmar que já presenciei coisas piores sendo perpetradas contra a cultura.

Há poucos dias, vi uma montanha de livros numa secção de saldos, cujo preço envergonharia o escritor, desvalorizando o seu trabalho, a sua história, o seu pendor literário, a sua vocação. Vocês não vão acreditar, mas nesse dia, eu comprei Clarice Lispector por quatro reais e noventa centavos, só porque em cima da cara da Clarice tinha uma manchinha amarela! Fiquei pasma! Se queimam Clarice Lispector por esse preço, com ou sem manchinha, não quero nem pensar o que fariam com Ana Maria Ribas. Deixa pra lá.

Voltando a "1822", o livro. Depois que a Renata perguntou-me se eu havia lido, e ainda por cima contou que o autor era seu primo, entendi a urgência do momento e fui à livraria Nobel comprar os dois, o "1808" e o "1822". Queria começar pelo primeiro porque sou metódica, mas o primeiro estava em falta, então comprei o "1822".

Li o livro em duas noites. Na primeira, parei a meia noite e meia, no final do capítulo “ A Princesa Triste" e só pude retomar na noite seguinte, terminando a leitura do livro em torno de idêntico horário. Mesmo sabendo que sou uma tremenda leitora dinâmica, confesso que até eu espantei comigo! E não pensem que foi superficial, não foi mesmo. Li, entendi, analisei, aprendi, me envolvi, emocionei, ri, descansei o livro no peito diversas vezes (como faço sempre que a admiração me toma), enfim, fui capturada pelo texto, pelos personagens, pela história, pela época, pelo dinamismo e pela agilidade que a escrita me cobrava. Ou eu lia, ou os fatos saltariam da página e seguiriam à frente, sem mim. Fui junto até acabar. Quando acabou, acabou.

Depois de "1822" jamais será possível reescrever a história do Brasil desse jeito tão humano e tão pessoal. D.Pedro, de fato, existiu. Isso não é maravilhoso? Para mim ele passou a existir após a leitura. A descrição do seu temperamento e das suas características pessoais fizeram-me saber que ele amou o Brasil, amou as mulheres, foi fogo, foguinho, apaixonou-se, escreveu cartas de amor, teve medo, ciúmes, dúvidas, coragem, foi magnânimo, generoso, bondoso, rude, mandão, mulherengo, brincalhão, encarnou contradições, passou fome, frio, cansaço, teve diarréia, fez cocô no mato, renunciou ao conforto, enfrentou longas jornadas em lombo de burro, sofreu como pai e como homem, gastou-se neste país pelo qual viu o mundo e o experimentou, em toda a sua crueza.

Eu não sabia de nada dessas coisas que um historiador jamais incluiria em seus livros, e um repórter, com o seu faro para notícias, nunca excluiria da sua obra.

Dona Leopoldina, mais que imperatriz foi uma mulher a quem interessavam as pedras, as flores, os insetos, as pequenas alegorias que introduzem os fatos da vida a um patamar mais elevado, ainda que não estejamos falando de botânica ou de zootecnia. Por tais percepções, ela prescindiu de vaidades, foi sábia, generosa e passou para a história como uma mulher cuja postura e código de conduta, anos mais tarde, a rival Domitila tentaria reproduzir. Ponto para Leopoldina.

Mas a grande incógnita que me foi desvendada, atende pelo nome de José Bonifácio de Andrada e Silva. Ai está um homem que eu gostaria de ter conhecido, mesmo baixinho, mesmo magrinho, mesmo franzino. Só o fato de ter sido um abolicionista não justificaria, por si, a minha admiração pelo personagem. Mas o conjunto de atitudes que tomou em defesa da ordem, e as filigranas que transparecem na narrativa dando conta do seu temperamento combativo e ao mesmo tempo normal, gentil, um homem que dava atenção às crianças, um dançarino de lambada em cima de uma mesa, ( sei que foi dançarino de lundu, mas pra mim foi lambada, e pronto) me fizeram perceber que desempenhou vários papéis sem perder a dimensão comum da existência. Se eu fosse Bonifácio também escolheria Paquetá para um exílio voluntário até a morte. Isso se chama coerência.

Todas as minhas considerações têm um viés subjetivo. Eu sei. Embora me seja possível depois da leitura compreender a história do país de uma maneira mais abrangente e sob uma perspectiva muito mais ampla, continuo enrolada emocionalmente com os tipos humanos que encontrei por ali. Não tenho culpa, sou uma escritora de comportamentos e não uma historiadora.

Laurentino Gomes conseguiu a façanha de ser as duas coisas ao mesmo tempo.

Fiquei de explicar porque o livro é escandalosamente novo. Porque perto dele, todos os livros anteriores ficam velhos. Ainda que o autor tenha subido aos ombros de historiadores que vieram antes dele, ainda que tenha lançado mão de pesquisas acadêmicas contemporâneas, como bem atesta a extensa bibliografia citada ao final de cada capítulo, prevalece o fato de que há um élan que é só dele, e o move, em direção ao que é pessoal, e ao que é transpessoal, em cada personagem.

Se eu pudesse estabelecer um paralelo entre estes, e alguns daqueles que constam na Bíblia, eu diria que em todo personagem histórico, seja bíblico ou não, o desafio do historiador e o mérito do registro está em suscitar em seus leitores, a noção de que a história é incapaz de comportar, retratar e fidelizar toda a realidade humana subjetiva, seja ela boa ou ruim. Nesse sentido, Laurentino Gomes me parece imbatível.

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