domingo, 27 de março de 2011

A fila nossa de cada dia


Nem é tão ruim quanto parece. Às vezes, a gente exagera nos medos, nas superstições, nas imagens pré concebidas e fica odiando aquele momento de uma ameaça tão grave como nos parece o direito de freqüentar a fila das pessoas com mais de 60 anos. Nem é tão grave assim. O problema é que acontece de repente. Precisaríamos de mais tempo do que uma noite para nos acostumarmos com a idéia. Em um dia, não se pode entrar na fila curtinha, tem que encarar a fila grandona. A fila dos ocupados. A fila dos apressados. A fila dos que precisam correr muito para vencer as obrigações. No outro dia, logo no outro dia, pronto: acaba de ser instaurado um novo tempo e você pode sim fazer parte daquele pequeno grupo de pessoas que, a despeito do privilégio, adora uma fila. Todo aposentado adora uma fila! Não se pensou nisso quando se instituiu a lei que estabelece essa gentileza. Não se pensou que aposentado tem tempo para tudo, até para a fila. Não se pensou que depois da fila, o aposentado vai para casa e não tem mais nada para fazer até a próxima fila. Não se previu que quem precisa executar serviços com agilidade é exatamente o trabalhador que tem compromisso com horário, que bate o ponto, que se divide entre estudar, produzir, trabalhar, e outras coisinhas mais embutidas pelo meio. Não é o caso dos aposentados. Aposentado é aquele sujeito que se diverte na fila, que faz amizades na fila, que conversa na fila, que troca gentilezas na fila, que paquera na fila, que fala mal do governo na fila, que acha uma babaquice esse negócio de ter fila especial porque ele, na verdade, tem saúde, tem energia, tem disposição e - principalmente - não tem mais nada para fazer naquele dia comprido que começa animado numa fila. É certo que há filas e filas. Há filas toleráveis e há filas execráveis. Fila de banco é a preferida porque tem ar condicionado e tem cadeiras para sentar. Mas o aposentado não senta. Quem gostaria de sentar – e não pode- é o trabalhador que está caindo pelas tabelas de cansaço. A noite foi curta, o filho chorou, a mulher teve cólica menstrual, o fantasma do desemprego assombrou, o limite da conta extrapolou todas as medidas, e o coitado, além de não dormir, ainda teve que acordar pontualmente no mesmo horário, enquanto o aposentado ainda dormia. Enquanto a fila nem existia. Isso me parece uma tremenda injustiça. Isso me parece um atentado contra o bom senso. Isso me parece um legalismo sem precedentes na história da humanidade. Vamos combinar uma coisa: ninguém merece uma fila. E o trabalhador, menos ainda, porque o tempo dele é muitíssimo mais curto do que o tempo daquele que não trabalha mais. A partir dessa premissa, todo estabelecimento deveria ter competência para evitar filas. Enquanto isso não acontece, a exceção para filas especiais deveria existir para as pessoas fisicamente incapacitadas, fossem elas velhas ou não tão velhas. Mas há filas e filas, em todos os lugares. Cada uma delas tem uma característica própria que lhe confere um adjetivo especial. Fila no caixa do supermercado é desagradabilíssima. Fila do SUS ninguém merece. Fila para qualquer tipo de diversão é uma tremenda heresia, afinal o cidadão saiu para espairecer e não para cumprir uma obrigação. Fila em restaurante para um prato de comida é uma humilhação. Fila para usar o banheiro é uma temerosidade. O sujeito agüenta até onde agüenta, e no vigésimo passinho para a frente pode começar a anunciar ao seu nariz que não está agüentando mais. Essas coisas acontecem até nas melhores famílias. Eu me lembro de que, no curso primário, um colega pediu ao professor para usar o banheiro. Naquele tempo, o professor precisava autorizar para que o aluno pudesse usar o banheiro. O idiota do professor não autorizou, o burro do aluno obedeceu, e minutos depois, a sala toda rescendia a lírios do campo. Todos nós esperávamos ansiosamente por aquele momento, o momento em que um professor idiota seria ridicularizado por um aluno burro. Todos nós, crianças, sabíamos que o negócio ia acabar aonde acabou. Menos o professor que era a autoridade máxima. Aliás, as autoridades máximas não são muito eficientes para atender as necessidades do povo. Eu também me lembro, bem mais recentemente, de uma fila para um banheiro improvisado, que vi na televisão, durante o carnaval. A fila era imensa e o repórter -esse ser que não deve ter necessidade nenhuma, de coisa alguma, em tempo algum- ficava esperando para flagrar o sujeito que fazia xixi no poste. Achei uma tremenda injustiça. Afinal, se as autoridades não disponibilizam banheiro em numero suficiente, o cidadão que necessita de um xixi não pode ser responsabilizado por quebrar o protocolo. No aeroporto de Viracopos, em Campinas, há apenas dois banheiros femininos na sala de embarque. Um é para portadoras de necessidades especiais e o outro é para portadoras de necessidades físicas. Afinal para que você iria ao banheiro se não fosse por necessidade física? E ai, em Viracopos, acontece uma coisa estranha: o banheiro das mulheres com necessidades especiais, com portas maiores para cadeirantes, fica vazio porque graças a Deus estatisticamente há poucas mulheres nessa condição. Em compensação, o banheiro das pessoas com necessidades físicas – todas as demais- fica o tempo todo congestionado e a fila avança para o meio do salão numa solene demonstração de burrice mansa e coletiva. Como é possível que, tendo apenas dois banheiros, um deles possa ficar obsoleto por falta de clientela? Da ultima vez que estive na fila, foi me dando um nervoso tão grande, e uma urgência de igual tamanho, que tive que tomar uma atitude. Fiz um arranjo que me pareceu justo: encaminhei as mães com crianças, e as senhoras idosas – entre as quais me inclui- para o banheiro das pessoas com necessidades especiais e só isso já foi o suficiente para aliviar o congestionamento do tráfego, do intestino, e da bexiga. Esvaziou-se tudo ao mesmo tempo. Via de regra, o brasileiro que faz xixi é de uma passividade que me irrita. O brasileiro que viaja é de uma inércia que me consome. O brasileiro que se submete mansamente a todo tipo de arranjo que tenha a tarja de socialmente correto não tem capacidade para discernir um comportamento de manada. O efeito manada é assim: onde passa uma boiada, passa o boi. Todos os bois juntos fazem a boiada, mas aquele boi que fica sozinho tem mais chance de escapar do corredor que leva todos para o abate. É só uma questão de inteligência. Onde há consenso quase sempre há burrice. A fila das pessoas com necessidades especiais nem é tão ruim quanto parece e, convenhamos, tem mordomia. No começo você fica um tanto quanto embaraçado, mas depois acostuma. Acostuma-se rapidamente com tudo o que é bom. E acostuma-se tanto que podemos até gostar. Afinal, se a carteira de identidade nos concede esse privilégio por que não usá-lo? Se preciso responder, respondo. Por um único motivo: nem tudo o que é socialmente correto é moralmente aceitável ou possível de ser seguido à risca. Desconfiar dos privilégios pessoais e individuais, assim como desconfiamos dos privilégios de classes é demonstração de civilidade e bom senso. Essa é a parte bonita da história. Mas seria hipocrisia não destacar o oposto: o exercício da transgressão, sempre que a regra contraria a lógica, é uma qualidade dos seres inteligentes. E dos necessitados. Ambos merecem se não o aplauso, pelo menos, a tolerância.