Cartas

Carta para Marilurdes.

Do lado esquerdo da bancada do meu pc, um envelope branco escrito com letras desenhadas,  que eu reconheceria aqui, na China, em qualquer lugar do mundo. Essa letra me é inconfundível.  Não somente a letra: a disposição espacial com que grafaram o nome e endereço do destinatário e do remetente, já revelam a pessoa contestadora que escreveu ali. Imaginem: num grande envelope branco, o endereço foi colocado bem ao meio... deitado em brancas nuvens... isso mesmo, na horizontal... e logo mais abaixo o nome do remetente, solto, avulso, necessitando do exercício de inteligência do carteiro para saber quem é quem.

Conviver com Marilurdes é sempre um exercício de inteligência, que exige certa maleabilidade  às contestações polêmicas que se levantam no meio da jornada. Eu, não só convivi  pacificamente com ela, durante todos os anos em que trabalhamos juntas, como aprendi muito. Sei que algumas pessoas que também conviveram conosco, em igual período do mesmo tempo,  não concordarão. Porque não  tiveram a chance  de conhecer o seu lado bom. Só o  lado mesquinho, as miudezas  que todos temos. Que estas não exigem uma percepção mais apurada. Mas eu a conheci pelo direito e pelo avesso. E a essa altura dos acontecimentos, não  precisaria ser benevolente. Já nos aposentamos,  e estamos separadas pelas contingências da vida.

Foi para isso que ela, gentilmente me escreveu: para comunicar a sua recente aposentadoria e me fazer uma homenagem. Porque Marilurdes é assim: ela faz homenagem quando acha conveniente, quando o homenageado e a homenageante  já deixaram o cargo, quando a homenagem não rende outra coisa que não  um coração enternecido e grato. Essa é a hora de Marilurdes homenagear porque ela não condescende com o poder de forma leviana. Nada nela é leviano. Tudo tem peso. E a carta que ela me enviou pesa toneladas. Toneladas de amor e gratidão.

O meu coração está assim meio amolecido, levemente gelatinoso, desde que li a carta. Tentei escolher alguns trechos para transcrever, mas ela merece que não haja cortes. Vou transcrevê-la toda, ou quase toda:

Querida Amiga Ana Maria

Com a mente e o coração cheio de gratidão e saudade desejo que esta te encontre feliz, com saúde.

Nesta altura da última e mais nobre conquista profissional - para quem trabalhou sempre como para Deus e não para os homens- não posso deixar de agradecer a uma pessoa a quem devo muitas obrigações.

Uma diretora que foi muito mais amiga, mãezona e conselheira do que administradora ( altamente competente).

Contando também que o privilégio de trabalhar numa Escola tão Especial, devo a ti. E quero viver muitos anos, até mesmo Vida Eterna, para poder sempre falar, citar, como exemplo de bondade, compreensão, imparcialidade, tolerância, enfim, sabedoria, esta pessoa digna: Ana Maria.

Foi realmente honra tê-la como diretora que fugiu a regra geral!

Querida amiga, muralha nenhuma impedirá, tempo algum vai apagar este sentimento de amizade sincera que temos e que suplanta qualquer inconveniente.

Muitos - obrigada é pouco.
Jeová Deus que ama pessoas leais e verdadeiras recompensar-te-á por tudo.

Um abraço cheio de gratidão e admiração.

Marilurdes.


Bem, já que a carta foi postada aqui, a resposta terá que ser por aqui. A resposta terá o caminho inverso: primeiro aqui, e depois pelo correio. Porque certamente, ela será guardada em seus guardados, aqueles que ela, de vez em quando, compartilhava comigo. Sempre com lágrimas. Fui das poucas pessoas que a vi chorar. Ela é gaúcha e gaúcho não chora, tchê.

Marilurdes, minha querida companheira de guerra.

A vida é uma guerra, com muitas batalhas, e juntas, enfrentamos algumas delas. Diga-se, logo de início, que você não é mulher de fugir a nenhuma batalha.
 
Lembro-me especialmente de um dia, quando lhe vi, chegando à escola, frágil, miúda, lutando contra um vento forte que teimava em dobrar a sua inseparável sombrinha. De longe, na dobrinha da esquina,  avistei você e naquele momento, num relance mágico, obtive a compreensão da sua fortaleza interior. Uma fortaleza que se desmancha nos momentos de ternura, mas que   se restabelece nas circunstâncias em que se impõe a defesa pessoal e coletiva. Como um bom soldado de guerra.

 Porque você sempre foi - e quiçá será para sempre -  mulher de defesas coletivas, comprando brigas ao perceber o exercício gratuito de autoridade, tão comum aos neófitos no poder.  Nunca tivemos problemas uma com a outra. Tivemos sim, um mútuo aprendizado. Aprendi muitas coisas com você. Desde a sua linguagem rebuscada _ altamente competente - até raciocínios mais elaborados acerca de Deus e dos homens.

Concordo plenamente com você,  quando disse que eu, enquanto diretora durante 20 anos, fui mais mãe, amiga e conselheira. O nosso governador do Estado nunca desconfiou que me pagava para ser diretora, e eu era mãe. Mas, pela graça de Deus, tudo deu tão certo. Os filhos e filhas, que Deus ali me deu, reconheceram em mim alguma autoridade.  Porque a autoridade vem do céu, e se do céu não vier, vira um inferno na terra. Por isso, nossa escola, naquele tempo, foi um pedacinho do céu. Nisso todos concordamos.

Para mim, a sua marca registrada será sempre a individualidade num mundo altamente massificado. Individualidade no falar, no vestir, no pensar, no amar, no existir. Você é você. Amada por uns, odiada por outros, mas jamais ignorada. Jeová Deus lhe fez assim e o desejo do meu coração é que, a cada dia, Ele possa encontrar um caminho mais excelente para lapidar essa jóia. Esse trabalho de lapidação nunca acaba. E você saberá como fazer para se engajar, ainda mais, na escola de Jeová.

Não pare nunca. Prossiga sempre. O caminho que leva ao céu ainda tem muitas avenidas a serem percorridas. Não tome atalhos. Olhe para o Alto. Continue chorando. Aquele que leva a preciosa semente, andando e chorando, voltará com alegria, trazendo consigo os seus molhos. Essa é a Palavra de Jeová Deus e a minha palavra para você.

Entre tantos só este voltou para agradecer? Foi a pergunta que o Senhor Jesus fez ao leproso. Somos todos leprosos em nossa pressa involuntária e você é aquele único que voltou para agradecer. Não volte, minha amiga, prossiga. Prossiga com a minha bênção, com o meu amor, com a minha admiração nada secreta.

Te amo em Cristo.

Ana Maria


Ana Ribas

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CARTA PARA ZENAIDE.

ZENAIDE:
Que sentimento delicado esse que me veio, quando  abri o meu livro de visitas e descobri que você passou por aqui. Passou por aqui uma pessoa cuja expressão de beleza é capaz de perceber as mudanças que o tempo fez em mim. O período A.D. P. e o período D.D.P.   ( Antes do Paulo e depois do Paulo). Na verdade, foi Deus quem fez, mas Deus é o dono do tempo , e Ele usou esse tempo para gerar luz, através de um caminho de densas sombras.

Minha vida tem sido um período de claras e escuras metades. Tem amanhecido e tem anoitecido milhões de vezes, em menos de 24 horas. Às vezes, amanheço no escuro e na medida em que o sol se põe, recebo a luz e tudo fica claro. Outras vezes, ocorre o contrário.  Sou  luz no dia, e sombra na noite. Tenho usado a luz para ser um pouco feliz para mim,  e a sombra para compartilhar com os outros a parte eficaz do meu sofrimento.

Percebi que os períodos de sombra me fazem mais produtiva. Ser feliz para mim mesma é um processo um pouco egoísta, porque a felicidade pessoal nos absorve tanto, que o umbigo passa a ser o alvo das nossas mais infrutíferas divagações. Na sombra, rompemos a casca do ovo, deixamos de viver em torno de, aprendemos a transitar o caminho íngreme da verticalidade,  abrimos à força uma fenda  que nos faz espiar uma nesga de céu.

Descobri que o sofrimento é uma escada. Uma escada que permite a  Deus descer à terra dos homens.  E  permite aos homens subirem alguns degraus para estar mais perto de Deus.

 O sofrimento transcende e nos eleva a  um lugar intermediário entre a terra e o céu. Creio que foi isso que  o apóstolo Paulo quis ensinar, quando a divina inspiração o levou a registrar o conhecido versículo:  “quando sou fraco, então é que sou forte.”

Sem a dor, o mundo teria menos de Deus, e o céu teria menos dos homens.  Sem a dor, os sofrimentos de Cristo, de Maria, dos apóstolos, dos profetas,  seriam cada vez  menos lembrados. Sem essa lembrança, terapêutica e didática, a alegria imediata e o prazer momentâneo seriam a marca da escola do mundo. O “modus operandi” de todos os homens.

 Mas Cristo veio para marcar o mundo com a vergonha da cruz. E a vergonha da cruz nos faz mais humildes e mais dependentes da graça e da misericórdia de Deus.

 A verdade é que o mundo sofre dores de parto e precisa sofrer para fazer nascer o Cristo subjetivo, aquele que não quer ficar restrito ao  céu, mas quer habitar em cada coração.   Um Cristo coletivo não produz muito resultado. De que nos serviria  ter um Cristo exclusivamente no céu , na hora mais dolorida da nossa humanidade?  Não! Cristo precisa estar aqui conforme Ele prometeu que estaria,  até a consumação dos séculos. E tem cumprido a promessa, para aqueles que o recebem.

Há muita gente que sofre...! Mas o que fazemos com o  sofrimento de Cristo e com o nosso, o que fazemos com a mistura dos dois,  é que determina o resultado final da vida.

  Há os que sofrem,  mas usam a máscara do Arlequim. Vendem a idéia de que a vida é um eterno carnaval.
 Há os que se especializam em esconder os vestígios das emoções, sob grossas camadas de maquiagem.
Há os que apagam as pegadas tortas da vida, deixando só as evidências de um caminho reto, plano, sem curvas.
Há os que  camuflam  os menores vestígios do infortúnio, por causa de um orgulho desmesurado.

 É uma opção de vida, mas é uma opção menos útil à obra que Deus tem para realizar na terra.  E o homem que aceita tornar-se menos útil à  Deus, corre o risco de tornar-se inútil para Deus.

Por isso, decidi que se tal dor me foi concedida, tal dor que eu nunca desejei,  mas me foi  conferida, essa dor deveria ser consagrada ao serviço de Deus. Escancarei, joguei a máscara fora, assumi o fato de que, quer eu queira, quer não queira, tornou-se irreversível: sou uma mulher de dores. Está escrito na minha cara, no meu sorriso, no meu olhar,  na minha escrita, no meu jeito de ser feliz em doses homeopáticas.

É possível ser feliz, sendo uma mulher de dores? Claro que sim. Agora mesmo estou imbuída de uma sensação de felicidade que me faz desejar abraçar todos os seres do mundo. Principalmente, aqueles que sofrem. Sei que  você é uma mulher que sofre e que, em seu sofrimento particular, existe a submissão aos desígnios inescrutáveis de Deus.

Esses dias conversando pelo MSN com uma amiga que passou por idêntica situação, contei-lhe a minha escolha pessoal a respeito da dor que nos é comum. Ela me disse, bem humorada, que ninguém jamais verá uma lágrima em seu rosto, mesmo que ela “trupique” na rua e perca a unha do dedão do pé, sem anestesia. Ela é uma pessoa forte, forte, forte. Que eu amo, independente dessa  aparente fortaleza. Às vezes, eu desejaria ser como ela. Mas do estofo de que fui feita, não há lugar para a dureza do aço. Então sigo, sendo essa mesma que sou.

É uma escolha ou um destino? Não sei.  Só sei que  Deus precisa de homens e mulheres que assumam o sofrimento, sublimando a sua presença sobre o sofrimento. O sofrimento sem Deus é inútil. Deus deseja ser reverenciado sobre todo sofrimento, Deus necessita estar acima do sofrimento, Deus carece ocupar um  espaço grande, profundo e permanente na criação de qualquer evento, objetivo ou subjetivo. Sem isso, Deus não tem caminho para atuar.
  
Na criação do mundo, o registro: “ Havia trevas sobre a  face do abismo e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” Trevas, abismo, águas e Deus. Nada parece ser mais dissonante aos olhos humanos, e no entanto, assim  não é, aos olhos de Deus. Deus se move sobre o abismo, guarde bem isso que estou lhe dizendo agora, de uma forma pessoal. É palavra Rhema e  o Espírito de Deus lhe dará entendimento em tudo.

No abismo e nas trevas, Deus se move.   Nada pode deter o mover de Deus.  Deus é mais, sempre mais. Deus é mais do que a dor, Deus é mais do que  a morte, Deus é mais do que a tristeza, Deus é mais do que a maior das frustrações,  Deus é mais do que os  sonhos de felicidade, daquela espécie de felicidade que o humanismo valoriza tanto. Deus é mais.

E porque Deus é mais, tenho sido feliz como me é possível ser, em períodos de luz e sombra. Na luz, Deus resplandece em mim, nas sombras, eu desapareço enquanto Ele aparece,  e dessa forma, juntos, temos feito uma parceria que dura as 24 horas de um dia que nunca acabou.

Porque  aquele dia, nunca acabou. Sei que aqui na terra  jamais vai acabar. Mas Deus é mais do que  aquele dia. E porque Deus é mais, criei alguns mecanismos de defesa, para me fazer lembrada dessa Presença que é mais.

  Entre esses mecanismos, está  esse site.

O que escrevo tem feito bem a muitas pessoas, inclusive a mim. Às vezes, escrevo para mim. Tanto já foi escrito nesse mundo e, tão bem escrito, e no entanto, constatei que o que me foi dado escrever,  ainda faz falta.  Aqui do meu “monastério particular” procuro escrever como se estivesse falando com uma única pessoa. Como se ela e eu, estivéssemos sentadas no sofá de casa. Procuro a individualidade no coletivo. Porque a dor  é única, mas é também universal.

Este é  um site para glorificar a Deus até nas linhas que denunciam a tristeza, a saudade e a perplexidade . Que Deus me livre de tudo o que seja fútil. Tenho medo da futilidade porque  me conheço um pouco e percebo que gosto  da glória dos homens até quando digo que não a desejo para a minha vida.  Que Deus me perdoe por isso.

 A minha oração a Deus é para que,  cada pessoa que entrar aqui, perceba não somente a mim, mas o Deus que habita  em mim.

Obrigada por você ter existido de forma eficaz  em minha vida, num tempo tão necessário. Obrigada pelo carinho que sempre me devotou.

Que a lembrança de tudo quanto vivemos juntas, seja forte  e bela como  a  vida.  Que a nossa  fé comum nos faça viver, nestes últimos tempos, sabendo que morrer é apenas andar um degrau acima da pedra, da dificuldade, dos obstáculos. Não é tão difícil assim, porque  Deus está conosco.

  E nesse sentido, que Deus nos permita morrer um pouco a cada dia. Para que aquela hora não nos encontre vivas demais.

E que assim seja, porque efetivamente assim o é.

Abraço você nesse instante com toda a força do meu sentimento.

Ana Maria.

Ana Ribas

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CARTA PARA AIRTON

Airton:

Não há nenhum caminho mais curto para tocar o coração de uma pessoa do que chamá-la pelo nome. O nome encerra a idéia. Quando alguém nos chama pelo nome, tem o caminho e a porta. E já que você   passou pela porta e entrou, percorra agora, junto comigo, algumas avenidas milenares.

A figura de linguagem que você citou faz parte da natureza do escritor. O escritor sente tudo em tamanho amplificado. Se tivesse que qualificá-lo,  eu diria, sem medo de errar, pelas duas vezes em que tive contato com seus textos,  que o Airton é uma pessoa de intensa cerebração ( de cérebro), de amplos e variados conhecimentos, de interesses ecléticos, e um domínio excepcional da palavra. Junte-se a isso a sensibilidade exacerbada e temos aí, no mínimo, um escritor.

  A riqueza que  você viu é derivada da dor. A minha e a dos outros. Não concebo um escritor que não tenha experimentado a dor. Todos os demais sentimentos são desejáveis, mas a dor é imprescindível. A dor nos identifica e nos aproxima.  A inspiração no passado deriva daí. Não creio que seja com a finalidade de aprender, mas de suportar.

 Estive em Corinto e as ruínas me contaram que, um dia, todas as angústias existenciais acabarão. Naquele lugar eu vi. Vi como poucos seres humanos conseguem ver. Sou uma pessoa de paisagens, mas a geografia humana me atrai muito mais do que a topografia. Caminhando por entre aquelas ruínas, senti falta das pessoas que viveram ali. Senti falta da brincadeira das crianças e do labor dos adultos. Senti falta dos velhos sentados nas portas, distribuindo sabedoria,  apoiados sobre os bordões. Sobre os bordões se encontra a síntese da existência. Um bordão é uma bengala. Uma bengala é um apoio. O apoio só pode vir do Alto. Há uma fase na vida, em que o apoio só pode vir daí. Estive em Corinto e as ruínas me contaram.

Quantas coisas as ruínas me contaram! Aquelas ruas por onde passavam as riquezas da Grécia antiga, também abrigaram os sonhos dos homens. Para onde foram os homens de Corinto? Os escombros das edificações estão ali. Mas as pessoas passaram. Para onde foram? Para onde foram os sonhos, as perplexidades, os problemas, as angústias e os medos?

Eles vieram todos para nós. Atravessaram os séculos e aportaram em nós. Depositaram sobre os nossos ombros uma carga atávica. Alguns,  recusam-se a levá-la. Rejeitam o legado, fecham  os olhos para o que existe de mais profundo.  Outros, voluntariamente, oferecem os ombros para carregá-lo.

Faço parte desse último grupo.  Em algumas manhãs, eu acordo e digo para mim mesma: “amanhece o dia em Corinto.” Essa frase, de alguma maneira, me conforta e eu cobro alento para prosseguir. Portanto, sinto decepcioná-lo, mas creio que existe sim,  uma postura nostálgica nessa inspiração. Os  personagens do passado me ensinam a viver, mas o que mais gosto de aprender com eles está em outra esfera. Na esfera de uma vida mais ampla, além desta dimensão.

Sou apaixonada pelo antigo porque o antigo me remete ao Alpha e o Ômega. Deus é antigo e é novo, é  ancestral e é futurista. Como não tenho acesso ao futuro, circulo pelo passado, na esperança de encontrar algum vestígio que me remeta diretamente ao futuro. Não ao futuro imediato, mas ao futuro apocalíptico e eterno.
 
Assisti a um filme onde o personagem principal ensinava a um jovem. Era um sábio. E ele dizia: felicidade é a jornada e não o destino. Mas o homem é um ser de destino. Ele tem dentro de si a ansiedade dos que almejam chegar. Há muitas necessidades dentro de nós, mas nesse momento, quero identificar duas que considero fundamentais: para viver, precisamos pertencer; e para morrer, precisamos ser destinados. Se pertencemos, nos inserimos, fazemos parte de um grupo social, nos identificamos,  e isso nos faz feliz, nesta vida. Mas se não nos destinarmos, perdemos a última finalidade.

Eu quero ser destinada. Para mim, ser destinada é mais importante do que pertencer. O destino é meu lugar de permanência. Pertencer é efêmero. Um dia, há muitos anos atrás, eu queria uma casa. E aí, como boa marqueteira, criei uma idéia muito feliz para convencer o Ivo a construir  a nossa casa. Eu disse a ele: “morar é verbo definitivo.”  E de tal maneira arredondei a idéia que nos pareceu a coisa mais excelente a ser feita.   Ele comprou a idéia e eu ganhei a casa, do jeito que queria. Mas aonde morar seria um verbo definitivo?

Certamente, não neste mundo. E de que maneira eu descobri isso?  Da pior forma possível!  Não há nada definitivo neste mundo. Tudo aqui tem o selo do provisório.  Desde então, pertencer passou a ser uma necessidade menor. Meu marido, às vezes,  diz em tom de brincadeira,( e eu sei que toda brincadeira tem um fundo de verdade),  que eu deveria ter sido monja porque gosto de viver isolada. E talvez eu viva mesmo em um monastério particular, ainda que circule pelo mundo dos vivos.

Para descontrair, para que você não pense que sou profundamente nostálgica ( só um pouco) quero manifestar  a minha alegria por ter encontrado o Recanto das Letras. Um lugar onde eu olho em volta para não dizer mais: “sou só eu, cadê os outros?” Se o mundo fosse um grande galinheiro, eu diria que o Recanto é uma incubadora de pintos, alguns maiores, outros menores, alguns com pena, outros sem pena, alguns resolutos, outros titubeantes, mas todos profundamente assustados, perplexos e alarmados com o mundo dos homens. Há uma indignação que nos é comum e a palavra nos liberta. Nessa incubadora existem aqueles cujas asas maiores oferecem abrigo. Um lugar quentinho, para nos abrigarmos do medo.  E para lá corremos todos. Aqui há um pouco de  riso e alegria, mas  há também  suspiros e ais. Por isso, creio que seria mais apropriado definir o Recanto como  a UTI de  um grande hospital , repleta   de agonizados e agonizantes. Não tem jeito, a palavra corta, fere, machuca e só salva e liberta quando é liberada. Nesse sentido, agonizamos, para nos salvar uns aos outros.

Às vezes, uma frase nos salva. Quando meu filho completou 5 anos fizemos para ele uma festa de aniversário. Nessa festa, ele ganhou muitos presentes. E entre eles, um  marcou a minha vida. Não pelo presente, mas pela frase que acompanhou o presente. Um menino o presenteara com um par de meias. E ele, na inocência de uma criança, abraçou o coleguinha e disse para mim: “olha, mãe, ele me trouxe um par de meias.” Foi só isso mas a entonação de voz fez o outro perceber o sentimento de pena. Então, para se defender, o que trouxera a meia disse: “É só um par de meias, mas tem um cabidinho.”

As meias estavam em um cabide. Até hoje, procuro nas meias um cabidinho. E sempre encontro. Seja nas situações, ou nas pessoas. Mas isso, só se consegue pertencendo. Pertencer é relacional, destinar é muito solitário.

Obrigada por analisar o meu perfil. Fernando Pessoa também foi analisado. E quando o material para análise estava muito amplo, ele não coube em si e precisou se desmembrar em outros personagens.

Espero que, de alguma forma, a riqueza que existe em mim, se misture à sua riqueza, e a minha miséria, e a sua miséria, saiam mais diluídas desse contato. Sei que assim será porque já está sendo assim.

Em tempo: não sei o que é uma mulher schubertiana. Mas Schubert além de gênio, não era meio louco?  Acho que sei o que é uma mulher schubertiana.  Sim, devo sê-lo. E que seja para a honra e glória do meu Deus.

Um abraço,  é bom estar com vocês.

Ana Maria


Ana Ribas

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