quarta-feira, 24 de junho de 2009

A mosca do Barack Obama

Barack Obama matou uma mosca durante uma entrevista à CNBC na Casa Branca. O assunto foi muito comentado pela mídia nacional e internacional que destacou a agilidade, a coragem e a pontaria perfeita do presidente americano na ação de aniquilar o pobre mosquito que ousou atravessar o seu caminho. O mundo soube e reagiu com espanto: questionou-se principalmente qual o motivo pelo qual o assunto foi tão amplamente divulgado. Em todo o planeta Terra soube-se que Obama matou uma mosca. Entre os comuns mortais as mais diversas reações foram registradas: houve quem encontrasse no fato motivos para admirar o presidente. A grande maioria inteligente optou por ridicularizar os canais de comunicação que deram manchete a um assunto de tão pequena importância. Uma pessoa entre tantas que defendem e amam os animais ousou protestar e registrar formalmente o seu protesto. Foi Bruce Friedrich, o porta voz do grupo PETA de defesa dos direitos dos animais, que declarou o seguinte: “apoiamos a compaixão mesmo em relação aos mais pequenos, estranhos e desagradáveis animais. Cremos que as pessoas, sempre que possam ter compaixão, devem ter, pelos animais.” Com tais palavras o grupo se manifestou formalmente pedindo a Barack Obama que tivesse uma atitude mais humana, da próxima vez que uma mosca se intrometesse no seu caminho.
Durma-se com um barulho desses! Eu que sou defensora dos animais, fiquei muito pensativa com o rumor que se instalou dentro de mim. Não que eu seja muito diferente dos “petas”. Não sou. A minha compaixão pelos animais chega ao cúmulo de salvar do afogamento toda e qualquer formiga que queira compartilhar o banho de chuveiro comigo sem o uso de bóia. Faço tudo o que posso para evitar que a formiga banhista morra afogada. Mas mato barata. Com muita pena do animal, porque sei que tudo o que vive quer viver, corro atrás da barata com um chinelo na mão e se eu levo a melhor, nessa luta de vida ou morte, sei que estou higienizando o planeta. Se ela leva a melhor, também não fico triste porque não gosto de matar nada que tenha vida, mesmo que não seja vida inteligente. Sempre fiz assim e achava que estava tudo bem até Barack Obama inventar de matar uma mosca na frente das câmeras de televisão. A atitude do grupo PETA me deixou embabascada. E agora? Como farei quando uma barata atravessar o meu caminho? Exerço compaixão e deixo que elas se proliferem no meu ninho? E quando os ratos souberem que no meu território existe asilo para todos os roedores da mesma espécie? Também terei que deixar? E se um daqueles roedores estiver infestado com o vírus da leptospirose? São questões a considerar. Que eu considero sabendo que nessa luta só há perdedores.
Na semana passada uma andorinha invadiu a minha varanda e pousou delicadamente no peitoral da sacada. Era uma tarde fria de domingo e a natureza estava triste. A andorinha parecia doente. Esboçou apenas uma leve reação quando a tomei nas mãos. Suas penas estavam se desprendendo do corpo com muita facilidade. Não tinha marcas visíveis de agressão. Sua doença era interna. Seus olhos miúdos se fechavam quando eu a aconchegava contra o peito. Ela toda pedia compaixão e não me neguei a exercê-la. Tremia muito pela temperatura baixa do ambiente e do próprio corpo. Eu a envolvi num pano e a coloquei dentro de uma caixa de sapatos. Mais tarde, depois que os meus gatos estavam presos, a levei para dentro de casa, a fim de evitar que o frio da madrugada a fizesse entrar em hipotermia. Fiz tudo o que pude mas não podia fazer muito. De manhã cedo, ela estava morta. Morreu sem dar um pio. Simplesmente encolheu o corpinho frágil e esperou silenciosamente a chegada da morte, com a coragem passiva dos seres que são mortais. Pensei que quando morrer, quero morrer como aquela andorinha: sem oferecer resistência. A morte é um processo natural na vida. Precisamos aprender a morrer. Eu só não sei quando vou aprender a matar aceitando que está tudo bem. Não está tudo bem. Eu mato, mas sei que tudo o que vive quer viver.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Coisas que perderam o valor mas não a utilidade

Existem coisas que perdem o valor mas não a utilidade. São resquícios de um mundo em constante mutação. Nem percebemos que o mundo muda, e que, certas mudanças afrontam a nossa inteligência: como éramos tão resumidos? e tão crédulos? e tão conformados? e tão provincianos? e tão primitivos? e tão desprovidos de exigências? e tão passivos? e tão telúricos? Essa última palavra nem cabe na resumição mas ficou linda, você não acha? Pode usar nos seus próximos textos. É minha desde a juventude, mas eu empresto para você. De preferência cite a fonte.Éramos resumidos, crédulos, primitivos, provincianos, passivos, desprovidos de exigências, conformados e telúricos mas não vou voltar tão lá no passado, na era das cavernas, a ponto de cair na armadilha da teoria da evolução das espécies. Nada que passe pelo binômio homem x macaco. Deus me livre da teoria da evolução das espécies - totalmente equivocada! Se o homem tivesse vindo diretamente do macaco, por que ainda existem macacos que não vieram? Por que preferiram ficar lá? Ah, sei lá, viu... Ivo me explica que não é assim que funciona. Mas para mim é. Ponto final! Eu acho que com ela matei Darwin. Os macacos que não evoluiram, que preferiram continuar macaqueando, perderam o valor, mas não a utilidade. O que seria do passeio de nossas crianças ao zoológico, se não houvessem os macacos? Macacos são úteis embora tenham perdido o valor e o respeito dos humanos, daqueles que um dia foram. Tudo o que fica para trás perde o valor, mas não necessariamente a utilidade. Não vou conseguir prosseguir o raciocínio, enquanto não disser uma coisa que nem cabe aqui, mas o meu sentimento de proteção aos animais manda dizer: O macaco é bonzinho, ele merece respeito. Tenho horror a que judiem do macaco. Já basta aquela gaiolada toda e aquele olhares curiosos. Por mim, todos os macacos seriam livres, cidadãos brasileiros com RG, CPF e direito a votar no PT. Tudo bem, vamos ao que interessa: Coisas que perderam o valor, mas não a utilidade! O telefone. Sim, o telefone. Daqueles enormes, pretão, que mais parecia um urubu de cócoras. Tão chic ter um urubu de cócoras, na sala principal da casa. O urubu chegou aqui, nestes rincões do Paraná, quase no final da década de 70. Um urubu que falava. De vez em quando, e só no local. Interurbano esparodicamente. Eu cheguei do trabalho, uma certa manhã inesquecível, e lá estava a surpresa: um urubu no canto esquerdo da sala, ao lado do sofá da Laffer. É! Era da Laffer e fui eu quem comprei. Porque o Ivo tinha comprado um sofá meia boca quando nos casamos, e eu me livrei daquilo no segundo mês, pagando o da Laffer a prestações. Tão caro me era para o meu salário minguado de professora! Mas Ivo não abriu mão: disse que já tínhamos um sofá, e que se eu não quisesse aquele, que pagasse pelo outro. Paguei! Mas, voltemos ao telefone! Às coisas que perderam o valor e não perderam utilidade. A tecnologia da comunicação estava chegando. Finalmente, eu poderia ligar para a vizinha e dizer : oi vizinha! Sem que eu precisasse gritar: Ôooo vizinha! Ivo estava me esperando no portão, e tinha a gravidade do homem que acaba de casar e desempenha o seu papel. Um homem provedor. Sempre pioneiro no contemplar a família com coisas que perderiam o valor mas não a utilidade. Um bom homem, cioso dos seus deveres. Para que a vizinha não viesse dizer à sua mulher: - "lá em casa já chegou"; e para que a mulher não lhe voltasse a pergunta, ligeiramente modificada - "aqui não vai chegar não?" Porque isso significaria dizer: "você não é um bom marido. Um bom marido coloca um telefone em casa." E Ivo sempre foi um bom... não... um ótimo marido. Por isso, o telefone em casa chegou primeiro do que na casa da vizinha.Pois chegou e custou caro. Ele dizia: "o que é caro é a linha, não o aparelho." Eu não entendia como uma linha podia ser cara. Talvez fosse uma linha diferente das linhas que eu usava para fazer tricô. Mas se ele dizia que era caro, eu acreditava. Porque era mesmo. A tal ponto de termos que nos programar: primeiro, adquirimos um telefone e depois trocamos o carro. A troca do carro podia esperar. Tão bom ter um telefone em casa, pela primeira vez. Tão bom poder ouvir o primeiro trimmmm estridente e dizer suavemente: alô! Tanta era a emoção que me dominaria no momento do primeiro alô. E depois me sentar ao sofá, cruzar as pernas e gozar enfim, aquele instante redondo e acabado: eu tinha um marido, e ele tinha uma esposa e tínhamos um carro, uma casa, um sofá e um telefone. E um bebê: a Sandra! Toda emocionada eu esperava que a emoção passasse e que o telefone tocasse. E nada do telefone tocar! Eu disse a ele, meio envergonhada: "vá lá no hospital e liga aqui em casa?" E ele foi! E depois ele voltou, e nos sentamos na sala. Nos entreolhamos suavemente, e aquele olhar dizia tudo: somos uma família, temos o nosso primeiro telefone, e você cumpre tão bem o seu dever de me dar o direito de dizer: "alô, quem fala?" e eu cumpro tão bem o meu direito de te olhar com tanto amor e admiração. Eu que era pobre de marré de si. Eu tinha, enfim, um telefone. Coisas que perderam o valor mas não a utilidade: Ações da Pasquim. Todas as famílias da época investiam em ações. E também da Crush. E também da GBOEX. Perderam o valor, mas e a utilidade? A utilidade é nos fazer lembrar a nossa burrice, comprando papéis que levaram o nosso dinheiro e nos deram nada. É uma ótima utilidade. Nunca mais fizemos investimentos de risco. Mais coisas que perderam o valor mas não a utilidade: o Fiat 147 -1979 que ele deu de presente para uma tia. Não que ele desse carros, assim, a qualquer tia. Essa era especial. Foi a tia que o criou e o adotou como filho, ele que era o primeiro numa lista de 14. Salvou-se da primogenitura e ganhou a tia para o resto da vida. E a tia ganhou o carro. Que voltou para ele, quando ela morreu. Que ele não vende, não doa, não empresta e gasta os tubos incrementando, polindo, cerzindo, enfrescurando. A última frescura é um ar condicionado que ele quer colocar. E que eu deixo porque sou boazinha. Felizmente, o instalador o convenceu de que o motor não iria aguentar e assim eu posso ser boazinha.Porque mulher não entende esse negócio de gastar -mais ainda! - com coisas que não tem valor, só tem utilidade. Uma utilidade duvidosa, porque só ele usa o carro. Outro dia, eu disse à Silvia: "Silvia, filha, vá ao mercado buscar alface para mim?" Ela respondeu: - "vou!" E não foi! Só havia o Fiat 147 na garagem. - Nem morta - foi a última palavra dela. Mas num dia de chuva, sendo a última das últimas soluções, fez uso do nobre veículo, embora sentada no banco do passageiro, com os vidros bem fechados. E braba! Jovem tem dessas coisas: não distingue relíquia de velharia. O nosso Fiat é uma relíquia. Que não tem lá grande valor, mas tem utilidade. Não adianta querer comprar que ele não vende. Ele diz assim mesmo: "não tem preço!"Coisas que perderam o valor mas não perderam a utilidade: Um aparelho de som estereofônico da Philips. Nossa, como custou caro. E a utilidade? Ouvir os discos de bolacha vinil do Moacir Franco. Acredita que o Ivo me faz ter essa paraphernália dentro de casa? Bem escondida, diga-se de passagem. Abre-se a sala de cobertura- um chapéu redondo- no último andar, bem no centro da casa ( que eu acho de muito mal gosto, mas na época,foi escolha minha), abre-se essa sala, depois abre-se a porta de um armário e lá está a salvo dos ladrões e da minha vista, o aparelho de som estereofônico. Essa palavra estereofônico sempre me lembra a doença da estereofonia. É grave! E a enciclopédia Barsa? A coisa era tão chic, mas tão chic, que o vendedor não era assim um vendedorzinho qualquer. Ele passava marcando hora nas casas, para ser recebido posteriormente, porque não tinha tempo a perder. E depois ele vinha, e nem insistia. Comprasse quem quisesse, quem tivesse cultura para valorizar o investimento na educação dos filhos. A Barsa perdeu o valor mas, pelo menos aqui em casa, não perdeu a utilidade. Qual a utilidade? O salário de diarista da minha faxineira que vem toda terça feira limpar os livros do escritório e coisas tais, sem as quais a função de faxineira já seria parte das coisas que não perderam o valor mas perderiam a utilidade. Tantas coisas perderam o valor e não a utilidade. Outras tantas perderam o valor e a utilidade. Mas o que não se perdeu, e jamais se perderá são os sentimentos que fizeram a história dessas coisas, o entretecido no oculto, as lembranças que ajudaram a compor um quadro de uma normalidade tão abençoada. Que saudades! Que saudades do telefone preto, das ações da Paskim que guardávamos como documento, do aparelho de som que nos trazia o Altemar Dutra, na sala de nossa casa. Que saudades do tempo que passou. Desse tempo que passou sem perder o valor e a utilidade de nos fazer lembrar que, um dia: Fomos! Um dia "fomos" com tudo o que essa palavra possa significar para nós dois e nossos filhos. E agora que já escrevi sobre isso, corro o sério risco de que você, fazendo bem as contas, se aproxime perigosamente da descoberta da minha idade. Essa que eu guardo tão bem, porque afinal, que utilidade haveria para o mundo descobrir a minha idade? Mas sabe de uma coisa: eu tenho a idade que aparento ter e não a que a certidão registra. Obrigada Dra. Vânia Diniz! Obrigada Dr. Fábio Rebucci, chiquérrimo dermatologista da Juliana Paes e MEU. Mais meu do que dela, porque ele é meu desde que era criança e morava na esquina da minha casa. Sabe também de outra coisa? Eu não perdi o valor e nem a utilidade. E esse sentimento irá comigo para além da vida porque é lá que todos iremos alcançar em plenitude o nosso valor e a nossa utilidade.

A nossa esperança está em Deus

Todos os livros de auto-ajuda, apenas defendem a idéia contida num único versículo que foi registrado na Bíblia, muito antes que a neurolinguística e a filosofia descobrissem o poder do pensamento positivo. Esse versículo está em Lamentações 3: 21: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança.” Todo o capítulo 3 do livro, cuja autoria é atribuída ao profeta Jeremias, é uma alternância de sentimentos e pensamentos que oscilam entre o desânimo e a confiança. Esse capítulo é uma miniatura do que acontece na vida de todos os homens. Há, para cada um de nós, um tempo de amargura e um tempo de bonança, um tempo de guerra e um tempo de paz, não necessariamente nessa ordem. Tudo quanto acontece neste mundo é uma alternância entre esses dois tempos. Quando folheamos uma revista antiga de celebridades e nos deparamos com figuras carimbadas do mundo fashion, podemos verificar que o intervalo entre esses dois tempos são recorrentes e que nem mesmo, o mais privilegiado dos homens escapa dessa periodicidade que hesita entre as amenidades e as agruras da vida, de maneira cíclica e sazonal. Como sempre, a mídia ajuda a compor os extremos que circundam os mitos: aquele que é celebrado hoje, amanhã estará sendo execrado com a mesma intensidade com que foi festejado. Essa é a glória do mundo: falsa, inventiva e mitológica. Um intervalo de tempo e temos o mito da celebridade jogado no limbo.
Mas isso não acontece apenas com o mundo fashion. Isso acontece todos os dias com pessoas anônimas e até com cada um de nós. De repente, a auto-estrada da vida nos leva a uma derrapagem, a situação escapa ao nosso controle, e quando pisamos no freio, descobrimos, com desalento, que é um pouco tarde: caímos na contra mão. A contra mão é um lugar extremamente perigoso e solitário. Nessa hora não há muitas pessoas para nos resgatar. Nessa hora só podemos contar com aqueles que nos amam e com Deus.
Foi sob esse contexto que Jeremias escreveu o capítulo 3 do Livro de Lamentações. O profeta desfia o seu rosário de lamentos ( e por isso o livro se chama “Lamentações”) num crescendo do versículo 1 ao versículo 20. Mas no versículo 21 algo acontece internamente: Jeremias descobre que é melhor trazer à memória o que lhe pode dar esperança do que ficar contendendo e murmurando contra Deus. Jeremias pára subitamente de reclamar e recorre, então, às lembranças que guardara acerca dos feitos de Deus e do seu caráter. Três são os atributos de Deus que Jeremias quer recordar para conservar a esperança: a Sua bondade, a Sua fidelidade, e a Sua misericórdia.
No dia mau podemos escolher o que queremos trazer à memória. A mente funciona como uma esponja absorvendo as idéias que nos fazem bem, e que nos trazem esperança, e as idéias que nos fazem mal, e nos trazem desesperança. Tal qual o profeta Jeremias, podemos nos lamentar por um tempo diante de Deus, mas a bênção só virá quando trouxermos à memória o que nos pode trazer esperança: a bondade, a fidelidade e a misericórdia de Deus. Haja o que houver em nossa vida, tenhamos em mente que Deus não muda. Ele sempre será: bom, fiel e misericordioso.

domingo, 17 de maio de 2009

Agendando a vida

Eu não sei se você dá conta de tudo, mas eu não dou. Alguma coisa fica sempre por fazer. Alguma, não. Muitas coisas. Houve um tempo em que, de teimosa, eu carregava uma agenda diária onde na noite anterior marcava religiosamente cada compromisso que deveria cumprir no dia seguinte. Compromissos nada importantes, mas ainda assim essenciais. Do tipo: escrever uma carta para x pessoa. Logo em seguida, vinha: "colocar a carta no correio." Normalmente assim que terminava de escrever a carta, riscava a frase com gosto. Mas em seguida, vinha o compromisso seguinte: colocar a carta no correio. Essa função exigia que eu me movesse para fora dos meus domínios e demorava um pouco mais. Por isso, eu tinha uma regra: tudo o que eu não cumprira no dia anterior, era repetido no outro dia. Por vezes, durante meses, uma frase era repetida diariamente, até que, um dia, pressionada pela minha própria cobrança, acordava decidida a terminar logo com aquilo. E aí, era uma delícia voltar as páginas e riscar todos os avisos repetidos anteriormente.
Não tenho mais agenda. A cobrança agora é interna, mas, às vezes, falha porque esqueço de me cobrar.
O que mais eu desejo além de viver em paz? A resposta é: viver em paz. Mas nem sempre consigo. Minha pequena paz é perturbada por muitas coisas. Uma dessas coisas é o excessivo contingente de papéis que me chegam via correio, ameaçando a paz. Pelo correio recebo tantas coisas que não preciso, que não pedi, que não quero saber, que não me faz falta. Tenho no banco autorização de débito em conta de algumas faturas. Se quero saber quanto gastei de água, de luz, de telefone, de cartão de crédito, é só conferir o meu extrato. Mas todo mês recebo a cópia das tais faturas que vão se acumulando na gaveta, até eu tomar coragem para me sentar, olhar e rasgar. Todo mês meu salário cai na minha conta, sem um centavo de aumento. Mas todo mês o Governo do Estado me manda o contra-cheque para que eu confira o que já sei: que não houve um centavo de aumento. Todo mês o carteiro entrega correspondências que me convidam para aderir a isso, para participar daquilo, para assinar aquilo outro, e sou obrigada a abrir o envelope e perder um tempo precioso. Algumas vezes, depois de ler, preciso pensar. E enquanto penso, a minha ajudante esconde numa gaveta o objeto da minha reflexão, os meses se passam e só volto a me lembrar no dia em que, pressionada por tantos papéis que vão se acumulando eu me sento com uma gaveta abarrotada e um cesto de lixo vazio. Uma ou duas horas depois, o processo se inverte: a gaveta fica vazia e o lixo abarrotado. Eu fico em paz. Sou tomada por uma breve paz quando consigo eliminar uma tonelada de papéis que se adicionaram à minha vida, durante hum ou dois meses. Sem que eu pedisse. Sem que o meu endereço fosse divulgado nas páginas amarelas. Sem nenhuma publicidade sobre a minha vã existência.
Mas a invasão domiciliar não para por aí. Porque agora existe o correio eletrônico. Pelo correio eletrônico recebo um bombardeio ainda maior. A única diferença é que a correspondência não ocupa um espaço tangível. Meus olhos não vêem. E o que os olhos não vêem, já dizia o ditado, o coração não sente. Meu e-mail contém na caixa de entrada, mais de 2.000 correspondências que me foram enviadas. Muitas delas sem abrir. Jamais as abrirei. Algumas delas contém a seguinte recomendação: “ não deixe de abrir”. Sinto muito, mas eu deixo. Deixo pelo mesmo motivo que deixei de assistir filmes tristes, quando percebi que a vida real já é uma tristeza. Deixo pelo mesmo motivo que me retiro da sala quando os telejornais me inflingem a visão das tragédias nacionais e internacionais. Deixo porque as amenidades não compensam as barbaridades que correm pela web: crianças doentes, cachorros abandonados, gatos que viram comida de pitbuls, tragédias às quais não posso evitar e, já que não as posso evitar, prefiro não saber e não pensar.
Quem pensa que isso é omissão, engana-se. Cada um de nós tem as suas próprias tristezas e as suas bem camufladas tragédias. Eu tenho as minhas. Você tem as suas. E quem não tem, ainda as terá. Tragédia não é só um drama que atinge a humanidade no momento do infortúnio, embora essas tragédias sejam amplamente divulgadas. Tragédia é coexistir com uma perda dolorosa, dia após dia, ano após ano. Essa é a tragédia mais difícil de conviver porque é uma dor solitária. O mundo esquece rapidamente essa espécie de tragédia. Mas quem a experimentou, jamais a esquecerá.
E por último, na lista das tarefas que não consigo cumprir, estão os livros, as revistas e os artigos que separo para ler e que jamais darei conta, sequer de folhear. Tenho uma vasta coleção de livros que vão se acumulando ano após ano. Ainda que eu seja uma leitora contumaz, sou uma compradora ainda mais contumaz. Não consigo passar na porta de uma livraria sem comprar livros. Aos livros, acrescente-se as revistas que assino semanal e mensalmente. E às revistas, o material que pesquiso na web e vou separando para ler mais tarde. Sinto uma espécie de aflição quando examino a minha vida e percebo que não terei tempo hábil para ler e para viver.
Tenho que escolher entre a leitura e a vida. Quase sempre escolho a leitura.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O Fantástico Mundo Virtual

As histórias de crianças, e de contos de fadas, começam sempre com “era uma vez." Fico revirando em minhas mãos a expressão “era uma vez.” Noto que o verbo “ser” está no passado, para não causar falsas expectativas. A expressão “uma vez” também modifica a palavra “era” o que por si só já quer dizer: “era” mas não é mais, foi só aquela vez.

Com isso estamos passando a seguinte mensagem: não me pergunte onde está a Branca de Neve. Branca de Neve “já era” e “já era” só “uma vez.” Não haverá duas vezes. Não haverá reprise. Por isso, os personagens das grandes histórias infantis são imortais, só existiram uma vez: pelo fantástico que acompanha o seu caráter de excepcionalidade.

Mas nós existimos muitas vezes. O ser humano comum encontra-se em todos os lugares, em todas as eras, no presente, no passado e no futuro. O mundo está repleto de Joãozinho e Maria, não aqueles da fábula infantil, mas aqueles da construção civil, da lanchonete, da panificadora, do cabeleireiro, da fábrica de calçados. Cada Maria e cada João são únicos para uma pequena parcela da humanidade: para os pais, para os avôs, para os irmãos, para os amigos, para aqueles que fazem parte do seu pequeno universo, para aqueles que os conhecem como uma entidade personificada. Para esses não há outro igual àquele, mas para o mundo, são anônimos.

E hoje quero falar de anonimato e do bem que ele nos faz. O anonimato nos permite um mínimo de individualidade necessária para que um homem possa usar um palito de dentes sem ser fotografado, para que uma mulher possa sair com a meia desfiada de um restaurante, sem ser notícia nos jornais. O anonimato nos permite um mínimo de individualidade necessária para que um ser seja ele mesmo.

Mas o anonimato que nos preserva a individualidade, traz consigo o distanciamento. As pessoas vivem um paradoxo: querem conservar a individualidade, mas também anseiam por uma construção coletiva que as faça um personagem como aqueles das histórias infantis. De preferência os bons personagens, aqueles que inspirem bons sentimentos. Por um lado, queremos que o mundo contorne a nossa forma, por outro lado, não queremos expor o nosso recheio. Por um lado, queremos ser anônimos, por outro lado, queremos ser conhecidos. Por um lado, queremos ser únicos, por outro lado, queremos pertencer. Por um lado, queremos a realidade interna, por outro lado, precisamos da vida mais ampla que comporta o mundo.

E aí, no meio desse conflito existencial permanente entre ser e pertencer, aparece a WEB, a era virtual com todas as suas potencialidades mágicas que permite ao homem conservar a sua individualidade e criar novas extensões dentro de um fantástico mundo de faz de conta. A internet parece ter sido pensada sob medida para atender ao ser e ao pertencer. Porque o mundo de fantasia que ela proporciona é uma via de mão dupla que não invalida o anonimato. Durante o dia, Joãozinho é aquele trabalhador da construção civil que sobe a massa no andaime e vê o mundo das alturas. Naquele momento, Joãozinho é. Naquele momento, Joãozinho existe em toda a sua individualidade que sonha, sem poder estar em seus sonhos. Mas à noite, na casa modesta, diante da rede internacional de computadores, Joãozinho está. Por algumas horas, ele deixa de ser para estar. A simples visão do mundo, durante o dia, proporcionou-lhe o “insigth” para o personagem da noite. Joãozinho interage com a entidade do outro lado da tela, como um piloto de Boing e a única diferença entre ele e o comandante é que não há na mão o manche do avião, mas o mouse do computador que lhe permite a viagem.

A internet está repleta de pessoas solitárias e mal resolvidas, porque em certa medida, mal resolvidos todos somos. A internet com suas salas de bate-papo e clubes de relacionamento tornou-se o mundo imaginário que atende todos os tipos de fantasias. Homens gordos, carecas e barrigudos, batendo na casa do meio século, transformam-se como num passe de mágica, em jovens galãs de cinema, à procura da sua cara metade. Do outro lado da telinha, a cara metade encalhada e sem glamour torna-se uma disputada donzela. Se na juventude o cidadão teve simpatia por algum movimento socialista, sem nunca ter tido coragem para enfrentar a ditadura militar, na internet ele “vira” rapidamente um ativista em prol dos direitos humanos. Se na vida real falta dinheiro para o lanche, na internet sobra dinheiro para o banquete. Se no dia a dia ele vai para o trabalho usando o transporte coletivo, na internet ele se vinga sendo o dono do transporte coletivo. Se na vida diária ele conserta carros, na internet ele é o dono de uma frota de carros.

O curioso é que não falta fé para esses personagens. Assim como não faltam adeptos para um guru, ou clientela para um charlatão, também não falta gente disposta a acreditar nos personagens imaginários que existem no mundo virtual. Verdade seja dita: aquele que engana é feito sob medida para o enganado. As relações virtuais são um serviço de utilidade pública não institucionalizada, onde cada louco encontra o seu “ terapeuta” sem enfrentar a fila do SUS ou o divã do analista.

Há histórias e mais histórias que mesclam o mundo real ao virtual e acabam bem. Algumas nos divertem muitíssimo. Vou contar uma delas: Lia, minha amiga, estava se relacionando há um bom tempo, pela internet com um cidadão de Portugal. Numa dessas noites intermináveis diante do pc, estava presente uma amiga mais esperta, mais centrada, mais lúcida, com aquele olhar de quem enxerga por fora. Essa amiga observando o cidadão pela cam, advertiu: “ Lia esse cara é gay!” Mas imagine se uma mulher apaixonada ia querer escutar que o seu príncipe encantado das "europas" era gay. A proposta foi imediatamente rechaçada sob forte protesto. Passaram-se os dias. Uma noite, tempos depois, essa mesma amiga estava presente e Lia precisou ir ao banheiro. Uma vontade imperiosa de ir ao banheiro a fez pedir para a amiga: “tecla aqui no meu lugar.” A amiga foi logo escrevendo: “tu é gay que eu sei.” E do lado de lá, o cidadão português retrucou: “faz tempo que queria contar-te mas não tinha coragem.” Pode rir, a piada é boa e é real. Aconteceu mesmo.

Final da história: Lia hoje é camareira em Portugal, e trabalha para um casal de gays portugueses dos quais um deles é o cidadão em questão. Lia perdeu o amor e ganhou um amigo e um patrão. Ganha muito bem e namora um português muito macho. Nunca mais voltou para o Brasil. E se voltar será muito bem acompanhada. Mas aonde Lia encontrou o seu amor? Na vida real.

Nem sempre as histórias virtuais têm esse final feliz. Até porque, se pensarmos bem, não há como ter final, se na realidade nunca houve um começo: as histórias virtuais, quase sempre, ficam pelo meio, elas não se resolvem, elas giram em torno do imaginário de cada um. A internet é a versão moderna do “era uma vez.” A internet é a novela que a Globo não ofereceu. A internet é a produção independente onde cada pessoa escolhe o papel que quer desempenhar.

No verbalismo puro e simples, sempre existiu e sempre existirá a necessidade de aproximar os seres humanos oferecendo-lhes a nossa versão de vida. No verbalismo sempre existirá a necessidade de colocar forma no caos mesmo que seja através da mentira criativa. No verbalismo sempre haverá a tendência para “enfeitar o pavão”. Nesse sentido a internet é mágica e cumpre à perfeição o seu papel de re-inventariar os sonhos. Apesar de todos os pesadelos.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009


EU FIQUEI.


Alguns dirão que o verão ainda está em curso. Mas eu digo que não, que o verão acaba quando recomeçam as aulas de mais um ano escolar. Carnaval não é propriamente verão, é a saidera. É o pregoeiro anunciando que a coisa agora é pra valer. Que a moleza acabou. Tudo bem que depois vem a chamada Semana Santa que, para falar a verdade, de santa só conferimos a ela o nome e a boa intenção. A intenção de malhar o Judas, de atribuir a ele todos os pecados que cometemos durante o ano, e que no calendário das expiações, faz com que o novo ano seja sempre velho, sempre o mesmo ano comprido. Mas, enfim, o que quero dizer mesmo é que o verão já foi, já era, já se despediu. E que ele vá com Deus e leve consigo o seu calorzão.

Eu fico muito feliz quando termina o verão e vem o outono. Da mesma forma como fico feliz quando termina o inverno e vem a primavera. Fico feliz porque me desobrigo de fazer coisas que pertencem ao verão, e que todo mundo faz, mas eu não tenho a mínima vontade de fazer. Ir à praia, por exemplo. Durante anos da minha vida eu tive que ir, mas hoje, não tenho mais. Hoje, no máximo só tenho que ouvir a clássica pergunta: “vocês não vão descer para a praia, não?” Essa pergunta ainda me incomoda. Ainda conservo o registro de que verão é praia, com ou sem vontade. Então, quando a pergunta vem, meu cérebro se coloca em estado de alerta e só descansa quando, meia hora depois, eu o convenço de que não há mais necessidade de cumprir o protocolo oficial que a Prefeitura Municipal de Balneário Camboriu instituiu para este verão. Finalmente estou alforriada de ter que deitar naquela areia grossa e contrair bicho geográfico, estou livre de ter que pegar um bronze, e de quebra, levar para casa uma melanose solar, estou liberta da necessidade mórbida de apresentar um atestado oficial de veraneio “bronzeplus” ao retornar de mais uma temporada.

Hoje eu contemplo o sol pela janela de casa. E não lhe dou a mínima chance de encostar-se a mim, mais do que alguns minutos por dia. Sempre de passagem. Eu e o sol nunca nos entendemos bem, graças a Deus. Nunca entendi qual o sabor de lagartear sob um calor de mais de 40 graus. Nunca fiz questão de garantir o meu lugar na areia depois das 10 horas da manhã. Ir à praia, eu até que ia: para bater o ponto. Uma hora depois de ter batido o cartão, eu fazia o caminho de regresso. No rosto, estampada, estava a suprema felicidade de ter cumprido a obrigação do dia. E de poder, enfim, curtir a brisa do mar, da sacada. De preferência, com um livro na mão, para descansar a vista daquele marzão comprido. E vice versa. Até o próximo dia. Até o próximo verão. Até que tudo acabasse como, efetivamente, acabou.

Também fico feliz quando termina o inverno e vem a primavera, mas não por idênticos motivos. Eu amo o inverno e amo a sensação de aconchego que ele me proporciona. Inverno é a alforria ao contrário. No inverno pode-se dizer: “prefiro ficar em casa porque está frio.” Todo mundo entende. Inverno é chocolate quente numa mão e livro na outra. Inverno é pipoca, filme, e cobertor. Mas depois do inverno vem a primavera. A primavera, sem sombra de dúvida, é a estação que mais combina com o meu estado de existir. Primavera é renovação. É o período em que a natureza se exibe como um pavão, e eu fico acreditando que tudo nessa vida tem a possibilidade de nascer de novo, de se enfeitar outra vez, de ser melhor do que já foi.

Eu acredito na primavera como acredito em Deus. Eu vejo na primavera a mão de Deus me oferecendo rosas, lírios, bougainvílleas de todas as cores, cravos e begônias. Primavera é a estação do equilíbrio que eu persigo tanto e nunca alcanço. Primavera é o rio que corre no meio do jardim. Primavera é jardim. E eu sou a borboleta que finalmente tem um encontro com as flores. Até o próximo verão.

Feliz outono para todos, para os bronzeados e para os desbotados, para os que foram e para os que não foram, para os que surfaram e para os que ficaram. Eu fiquei.

sábado, 24 de janeiro de 2009

NEM SEMPRE....

“Nem sempre as palavras expressam o desejo do nosso coração. Nem sempre o que dizemos representa o que sentimos. Nem sempre o que pedimos é para ser atendido. Nem sempre o que não pedimos é para ser esquecido. Nem sempre o que vivemos é para ser compreendido. Nem sempre o que não vivemos é para nunca ser vivido. Nem sempre somos tão exatos quanto a matemática. Nem sempre somos tão simples quanto um mais um. Nem sempre somos tão complexos quanto parecemos. Nem sempre somos tão nobres quanto a vida pede. Nem sempre somos tão magnânimos quanto a circunstância exige. Nem sempre somos tão santos quanto Deus nos pede e nem tão devassos quanto o mundo sugere. Nem sempre somos tão invulneraveis quanto requer a demanda. Nem sempre estamos imunes à dor e ao amor. Nem sempre recebemos informações detalhadas do plano “B”. Nem sempre a nossa força nos permite nadar contra a correnteza. Nem sempre sempre aprendemos como naufragar em estilo olímpico. Nem sempre conseguimos sentir dor sem gemer. Nem sempre vestimos Prada quando estamos nús. Nem sempre estamos nús quando vestimos Prada. Nem sempre o riso representa alegria. Nem sempre o choro introduz a tristeza. Nem sempre um discurso encerra uma etapa. Nem sempre a elegância do gesto acompanha o seu efeito. Nem sempre estamos convencidos do que fazemos, quando o fazemos. Nem sempre sempre podemos fazer o que queremos. Nem sempre sabemos como morrer quando a vida acaba. Nem sempre a vida só acaba quando a morte chega. Nem sempre viver é fácil. E quando viver não é fácil fica difícil. Fica difícil renunciar ao que não vivemos. Fica difícil acreditar que hoje é sábado e o sol não brilhará mais."