domingo, 17 de maio de 2009

Agendando a vida

Eu não sei se você dá conta de tudo, mas eu não dou. Alguma coisa fica sempre por fazer. Alguma, não. Muitas coisas. Houve um tempo em que, de teimosa, eu carregava uma agenda diária onde na noite anterior marcava religiosamente cada compromisso que deveria cumprir no dia seguinte. Compromissos nada importantes, mas ainda assim essenciais. Do tipo: escrever uma carta para x pessoa. Logo em seguida, vinha: "colocar a carta no correio." Normalmente assim que terminava de escrever a carta, riscava a frase com gosto. Mas em seguida, vinha o compromisso seguinte: colocar a carta no correio. Essa função exigia que eu me movesse para fora dos meus domínios e demorava um pouco mais. Por isso, eu tinha uma regra: tudo o que eu não cumprira no dia anterior, era repetido no outro dia. Por vezes, durante meses, uma frase era repetida diariamente, até que, um dia, pressionada pela minha própria cobrança, acordava decidida a terminar logo com aquilo. E aí, era uma delícia voltar as páginas e riscar todos os avisos repetidos anteriormente.
Não tenho mais agenda. A cobrança agora é interna, mas, às vezes, falha porque esqueço de me cobrar.
O que mais eu desejo além de viver em paz? A resposta é: viver em paz. Mas nem sempre consigo. Minha pequena paz é perturbada por muitas coisas. Uma dessas coisas é o excessivo contingente de papéis que me chegam via correio, ameaçando a paz. Pelo correio recebo tantas coisas que não preciso, que não pedi, que não quero saber, que não me faz falta. Tenho no banco autorização de débito em conta de algumas faturas. Se quero saber quanto gastei de água, de luz, de telefone, de cartão de crédito, é só conferir o meu extrato. Mas todo mês recebo a cópia das tais faturas que vão se acumulando na gaveta, até eu tomar coragem para me sentar, olhar e rasgar. Todo mês meu salário cai na minha conta, sem um centavo de aumento. Mas todo mês o Governo do Estado me manda o contra-cheque para que eu confira o que já sei: que não houve um centavo de aumento. Todo mês o carteiro entrega correspondências que me convidam para aderir a isso, para participar daquilo, para assinar aquilo outro, e sou obrigada a abrir o envelope e perder um tempo precioso. Algumas vezes, depois de ler, preciso pensar. E enquanto penso, a minha ajudante esconde numa gaveta o objeto da minha reflexão, os meses se passam e só volto a me lembrar no dia em que, pressionada por tantos papéis que vão se acumulando eu me sento com uma gaveta abarrotada e um cesto de lixo vazio. Uma ou duas horas depois, o processo se inverte: a gaveta fica vazia e o lixo abarrotado. Eu fico em paz. Sou tomada por uma breve paz quando consigo eliminar uma tonelada de papéis que se adicionaram à minha vida, durante hum ou dois meses. Sem que eu pedisse. Sem que o meu endereço fosse divulgado nas páginas amarelas. Sem nenhuma publicidade sobre a minha vã existência.
Mas a invasão domiciliar não para por aí. Porque agora existe o correio eletrônico. Pelo correio eletrônico recebo um bombardeio ainda maior. A única diferença é que a correspondência não ocupa um espaço tangível. Meus olhos não vêem. E o que os olhos não vêem, já dizia o ditado, o coração não sente. Meu e-mail contém na caixa de entrada, mais de 2.000 correspondências que me foram enviadas. Muitas delas sem abrir. Jamais as abrirei. Algumas delas contém a seguinte recomendação: “ não deixe de abrir”. Sinto muito, mas eu deixo. Deixo pelo mesmo motivo que deixei de assistir filmes tristes, quando percebi que a vida real já é uma tristeza. Deixo pelo mesmo motivo que me retiro da sala quando os telejornais me inflingem a visão das tragédias nacionais e internacionais. Deixo porque as amenidades não compensam as barbaridades que correm pela web: crianças doentes, cachorros abandonados, gatos que viram comida de pitbuls, tragédias às quais não posso evitar e, já que não as posso evitar, prefiro não saber e não pensar.
Quem pensa que isso é omissão, engana-se. Cada um de nós tem as suas próprias tristezas e as suas bem camufladas tragédias. Eu tenho as minhas. Você tem as suas. E quem não tem, ainda as terá. Tragédia não é só um drama que atinge a humanidade no momento do infortúnio, embora essas tragédias sejam amplamente divulgadas. Tragédia é coexistir com uma perda dolorosa, dia após dia, ano após ano. Essa é a tragédia mais difícil de conviver porque é uma dor solitária. O mundo esquece rapidamente essa espécie de tragédia. Mas quem a experimentou, jamais a esquecerá.
E por último, na lista das tarefas que não consigo cumprir, estão os livros, as revistas e os artigos que separo para ler e que jamais darei conta, sequer de folhear. Tenho uma vasta coleção de livros que vão se acumulando ano após ano. Ainda que eu seja uma leitora contumaz, sou uma compradora ainda mais contumaz. Não consigo passar na porta de uma livraria sem comprar livros. Aos livros, acrescente-se as revistas que assino semanal e mensalmente. E às revistas, o material que pesquiso na web e vou separando para ler mais tarde. Sinto uma espécie de aflição quando examino a minha vida e percebo que não terei tempo hábil para ler e para viver.
Tenho que escolher entre a leitura e a vida. Quase sempre escolho a leitura.

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