Crônicas 7

Meu contacto com Adélia Prado.


 O que vou narrar aqui, se passou no final dos anos 80. Começa comigo e vai até Adélia Prado. Depois volta para você.


Acompanhe: Eu, que sempre elegi a prosa como meu veículo de expressão,  por esse tempo, quis dizer as coisas que digo de uma forma mais solta, mais leve, mais pura. Isso mesmo: resolvi escrever poesias!


 Tinha lido Adélia Prado e aquilo me pareceu tão simples na sua complexidade, ( veja se você me entende!), que decidi incursionar pelo mundo dos versos. Ai que delícia pegar palavras soltas, aparentemente desconexas, e dar a elas um sentido que só eu sabia. Porque se palavras tem vocação, apostei que cada um  que  me lesse, poderia dar-lhes a vocação que desejasse. Pensei que fazer verso fosse uma forma democrática de dizer, por exemplo:  Hoje o dia está triste. Triste está o dia. Só isso. E então o leitor poderia dar à tristeza do dia o rumo que bem entendesse.  Apenas isso.


Eu  havia comprado um único livro de Adélia Prado, que estava despontando na época, festejadíssima pela crítica, pela imprensa, pela classe artística. E, confesso para você,  entendi pouca coisa do que foi escrito ali.  Mas eu me esforçava, lia de novo, não desistia.


Quase como se tivesse uma Bíblia na mão, ficava contrita, o livro apertado contra o peito, pedindo  uma súbita  iluminação que me viesse do alto, para compreender melhor aquele ser  que usava as palavras como quem usa um punhal. Um punhal que não cortava a minha carne, não deixava nenhum sinal visível dentro de mim, algo que eu pudesse enfim tocar e dizer: eis aqui!  A  minha carne dura de camponesa,  acostumada à brutalidade da pedra, queria um texto  que me indicasse um início, um meio e um fim. Mas eu não encontrava  a porta de entrada e, consequentemente,  nem a de saida.


Com o livro nas mãos,  parecia-me  ter algo de santo, e não sabia a quem recorrer para obter a sua santitude máxima, aquela mesma que me escapava muito antes de ser percorrida pelos meus neurônios. Adélia Prado era para mim uma avenida fechada.


Estou lhe narrando não apenas a maneira como contactei Adélia Prado ( sim, eu consegui), mas, principalmente,  o caminho que me levou a descobrir que há uma senha secreta nesse mundo mágico e fechado da poesia. Uma única senha para todos. Se alguém lhe der a senha, você entra. Caso contrário, esqueça, e vá ser camponesa proseando na vida.


Um dia, decidi me vingar:
já que eu não entendia
o  que Adélia Prado escrevia,
 faria o caminho inverso
escrevendo os meus próprios versos.


Não, não acredite que eu tenha escrito isso. Quis fazer humor porque o meu próximo contato será o Chico Anísio.


Fui, então, escrever poesias. Juntei num calhamaço de papel a minha criação literária. Nem precisei caprichar. Escrevi, como me disse Marília Paixão, num jorro, como se as palavras fossem águas saindo de uma mangueira grossa ( viu Marília, aprenda essa lição,  nunca diga em secreto o que pode ser usado em público.  Não coloquei aspas porque guardei apenas o sentido).


Poesias prontas, batidas a máquina, na minha velha Remington já bem batucada, aqui e ali uns borrões de errorex, enfeitando as páginas como pontinhos de nuvens brancas, e lá se foram as minhas páginas poéticas do sul para o sudeste do Brasil. Decidi mandar assim mesmo para que Adélia visse a minha autenticidade tão autêntica no universo da poesia.


O endereço? Foi barbada. Eu sabia que ela morava em Divinópolis e sabia que o marido dela chamava Zé e era funcionário do Banco do Brasil. Claro que não liguei para o Banco do Brasil e falei:
- Quero falar com o Zé.
- Que Zé?
- O Zé da Adélia Prado.


Não, não fiz isso. Mas confesso, pensei.


 Fiz a coisa acertada nessa festa doida. ( me inspirei em Dona Doida pra dizer essa festa doida).  Telefonei para o departamento de cultura da Prefeitura Municipal e disse que precisava do endereço de Adélia Prado para enviar-lhe um convite cultural.


Você está pensando que menti? Claro que não. Era um convite cultural para que Adélia conhecesse, em primeira mão, aquela que poderia sucedê-la um dia, no universo artístico. A próxima peça encenada por Fernanda Montenegro poderia ser baseada em minhas obras, como a última estava sendo baseada em obras dela.


Difícil foi falar de um estado para o outro numa época em que a telefonia pública no Brasil estava na idade jurássica. Mas eu sou persistente. Gastei um dia, e consegui. Aos gritos, a atendente da secretaria da cultura me passou o endereço dela. E aos gritos, não sei porque, eu repetia e anotava, tomada de uma euforia máxima.


Mandei pelo correio. O atendente me perguntou: porte simples ou registrado? ( não havia sedex). Claro que optei pelo registrado, porque se ela não me respondesse, eu saberia que não respondera porque não quisera me responder. Eu precisava saber isso. Secretamente, estava me preparando para receber o silêncio dos dinossauros. Estávamos na era jurássica, lembra?


 Eu que via Adélia Prado assumindo a sua ancianidade precoce, com aqueles cabelos brancos, e achava tudo que vinha dela tão lindo, estava me preparando para odiá-la mortalmente caso me ignorasse.


Mas ela não me ignorou. Bondosamente  me respondeu cerca de 30 dias depois com a sua letra bem desenhada. E o que ela escreveu, nunca mais vou esquecer.


Escreveu assim: Ana Maria, você escreve cartas admiráveis. Só me lembro textualmente disso. Porque foi o único elogio que recebi. O resto dizia sem dó nem piedade que a minha poesia não se resolvia, que ela ficava em torno de. Assim mesmo: a sua poesia não se resolve, ela fica em torno de.


Fiquei com a carta na mão e o calhamaço de poesias (sim, para minha tristeza, ela devolveu). Fiquei assim mesmo, como você está imaginando, sem ódio mas meio abestalhada com a crueza de uma  Adélia que, se não me cortou a carne em verso, fez picadinho do meu coração em prosa.


  Entendi que eu jamais seria poetisa porque não sabia concluir as idéias, as mesmas idéias que eu achava que ela também não concluia. Estávamos empatadas.


Os dias se passaram, e eu decidi secretamente enterrar meus talentos literários.


A casa ficou mais silenciosa sem o batuque da máquina e as crianças ficaram mais felizes porque ganharam de volta a mãe. Enfiei a cara na maternidade, porque se tenho que ser compulsiva com alguma coisa, então, naquele momento crítico, escolhi essa compulsão mais nobre para me redimir.


Viu sua boba, no que deu? Burra, sua poesia não se resolve, ela fica em torno de. Como você. Você também é mal resolvida.


Foi um período bom. Paguei meus pecados.


Passado um tempo, voltei a me lembrar da frase: Você escreve cartas admiráveis. Todos os dias, eu tomava essa frase como unguento  e a aplicava  ao meu coração, procurando o que fazer com ela.  Passada a mágoa inicial, essa colocação  me pareceu um presente caro mas totalmente inadequado.


Onde já se viu, em algum lugar do mundo, uma escritora que ficasse conhecida por escrever cartas, ainda que elas fossem admiráveis?


Contudo não me saia da cabeça o valor do presente:  Adélia Prado disse que eu escrevo cartas admiráveis e ainda me disse - agora lembro- que ela não sabe escrever cartas assim!


Esse era o valor que, coincidentemente,  eu também reconhecia.  Muitas vezes gostava tanto de uma carta que copiava num caderno só para não perdê-la, quando fosse para o seu destinatário.  Tão lindas as minhas cartas! Passei a escrevê-las para mim, enquanto escrevia para os outros.


Um dia, a ficha caiu: carta é um texto pessoal que você escreve para alguém que lhe é próximo. Ou não. Há cartas que poderiam ser endereçadas a toda a humanidade. Há cartas que são exclusivas para mães. Outras, mais seletas ainda, para mães enlutadas. Outras, para jovens, para velhos, para crianças. Cartas para a humanidade. Porque muda o endereço, mas a universalidade dos sentimentos nos aproxima uns dos outros, de uma forma mágica.


Meu Deus, eu poderia sim, escrever cartas!


Não perdi mais tempo. Saí pelo mundo escrevendo cartas. Como essa que escrevo agora para você. Como aquelas que escrevo todos os dias em forma de crônicas.


Na verdade, Adélia não se enganou.  Ela fez de mim um vaticínio: sou uma carta ambulante e o meu desejo é que ela seja lida por todos os homens.  Pelos intectuais e pelos camponeses. Pelos poetas e pelos brutos. Pelos que amam e pelos que odeiam. Pelos que riem e pelo que choram.


Com intensa comoção.


Ana Ribas


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Dois Minutos.


Agora que você já entrou, fique pelo menos dois minutos.


Porque tenho acompanhado o tempo da sua permanência na porta desta casa que é a minha escrivaninha.


As estatísticas me provam que você fica aqui menos de dois minutos. Fiquei tão decepcionada.


Convenhamos que, menos de dois minutos, não é tempo suficiente para você me tocar, me cheirar e me sentir.


Até um cão farejador demoraria mais tempo. Um cão que só cheira, não faz mais nada.


 Mas você, não. De você eu espero elucubrações mentais mais aprimoradas.


Olha, se aqui fosse um shoping center literário, teria um texto específico para cada gosto.


Mas eu sei, existem dias em que a gente não tem vontade nem de se ler, quanto mais de ler os outros.


 Existem dias em que a gente se resume a existir da forma mais primária possível. Como uma ameba.


Uma ameba é mais resumida do que um cão farejador. Mas ser  ameba só acontece esporadicamente,  a cada segunda feira do segundo mês lunar, quando a conjunção entre Marte e Netuno estão bem próximas. Esse é um raciocínio de ameba e se estiver errado, os astrólogos que discutam com a ameba. A ameba que acabei de ser, só para que você se identificasse comigo, caso esteja em seu dia de ameba. Não se esqueça de usar um absorvente.


 Não posso acreditar que todos aqueles que me visitaram no mês de julho estejam numa fase amebiana.


 Então, tenho que procurar outras identificações possíveis, do cão para cima.


 Se você estiver em dia  de cão farejador,  pode sentir um pouco de perfume? Tudo bem, eu confesso, não é meu, tomei emprestado.


 Mas, porém, todavia, contudo,  se você estiver num daqueles dias em que seus  outros sentidos estão mais apurados, não saia sem antes identificar e catalogar os vários departamentos, para o caso de uma necessidade posterior.  Aqui você vai encontrar filosofia,  humor, evangelismo, dicas de saúde, protesto e acessos secretos a outras dimensões nunca dantes alcançadas. Isso é só para os iniciados. Caso você não seja, terá que procurar a chave que abra a porta. Não é mais problema meu.


 Normalmente os protestos não são o meu forte.


 Mas hoje quero protestar contra a sua pressa. É essa sua pressa que lhe impede de me fazer companhia por uns míseros dois minutos.


 Você começa a ler um texto e ainda que ele lhe pareça bom, nunca lhe parece tão bom o suficiente para retardar o retorno a si mesmo.


Você tem sido para mim como aquela visita que toca a campainha da minha casa e quando vou abrir a porta, antes mesmo que eu lhe diga: Bom dia!  vira as costas e vai embora. Francamente!


Se você entrasse e permanecesse pelo menos dois minutos, nos daríamos tão bem. Seríamos tão fantásticos um para o outro que nossas mãos juntas, apertadas,  derrubariam o Muro de Berlim. Se ele ainda existisse.


Como ele não existe mais, podemos derrubar alguma coisa mais abstrata. Como essa pressa que te impede de ficar comigo. Eu que sou uma escritora que escolhe palavras para falar com você, como quem escolhe rosas. Prefiro as que ainda são botão, as que não desabrocharam completamente, para você levar para casa a sua palavra escolhida e ficar esperando o momento mais belo que ainda está por vir.


Mas hoje, não. Hoje estou magoada com você e a mágoa me faz escolher palavras como quem escolhe um pedaço de frango.


Agora, pode ir. Já se passaram os dois minutos e você nem percebeu. Volte com mais tempo!


Ana Ribas


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Fim de Semana.


Fim de semana chegou, ou fui eu quem cheguei até ele. Meu final de semana começa propriamente, ao meio dia de sábado. É então que o sábado  abre para mim a sua boca escancarada. Como a entrada de um túnel escuro e sombrio, que leva do nada para lugar algum. Entro no túnel porque tenho que entrar, porque uma força gravitacional me suga, porque não posso continuar existindo sem passar pelo túnel do tempo. Enquanto houver vida, haverão os sábados. Esqueci de falar do vácuo. Vácuo é um buraco que parece não ter fim. De vez em quando, caio num desses, mas pela graça de Deus,  levanto e prossigo.  No meio do túnel, uma luzinha bruxuleante parece sinalizar a primeira parada: o jantar no restaurante chinês.


Há 30 anos jantamos todos os sábados no mesmo restaurante, e comemos sempre a mesma comida: macarrão com carne e legumes ao molho de shoyo. O mesmo prato que meu marido teima em chamar de Yakissoba, enquanto olha para a cara boa e gorda do nosso velho amigo chinês. Há 30 anos  digo a ele que Yakissoba é japonês, que China e Japão não se dão bem, desde que o Japão invadiu a China. Ele ri gostoso, e parece não acreditar, parece não compreender que, para um chinês ortodoxo,  ter o seu macarrão chamado de Yakissoba pode ser uma oportunidade terrível de vingança contra qualquer  invasor territorial. No caso nós dois. Nós dois, um restaurante vazio, e uma panela vazia, para ele realizar ali a alquimia que bem entender.  Ou  que o invasor merecer.   Porque jantamos às 19 horas, para voltar logo para casa. Já saimos de casa sabendo que o mais gostoso da noite do sábado, depois do macarrão chinês, é a volta para casa.  Também porque já sabemos aonde levam todos os caminhos dos nossos sábados. Então nos apressamos para percorrer logo o mesmo caminho.


Bem, eu havia parado no  yakissoba, lembra? Pois é.  No sábado seguinte, lá está o nosso amigo chinês perguntando com a sua cara boa e gorda: O de sempre? E ele respondendo: isso, um yakissoba bem frito. Desisto! Deve ser efeito da globalização. Ultimamente quem nos atende é Hermínia, a esposa do nosso amigo chinês que, você já deve ter desconfiado, nunca perguntamos o nome. Comemos do seu macarrão há 30 anos e não sabemos o seu nome. Sabemos de detalhes da sua vida, como os da recente viagem que fez para  EUA, China e... Japão!  Mas não sabemos o seu nome.  Como posso saber o nome desse homem que nos saúda com um riso largo esfregando as mãos? Perguntando assim, sem mais nem menos,  depois de 30 anos: como é o seu nome? Eu não tenho coragem. Fazer essa pergunta seria admitir a nossa ingratidão para com aquele que há 30 anos prepara-nos o prato de cada sábado. Então, vamos disfarçando na intimidade, a negligência. Sorrindo bondosamente uns para com os outros. Já Hermínia, não. Faço questão de saudar Hermínia em voz alta, pronunciando bem as letras do seu nome, na entrada e na saida, desde agora e para sempre.


E então, voltamos para casa, e juntos assistimos todos os noticiários que ficaram sendo gravados, um em cada televisão. Depois, se  ele dorme, eu penso. Que pensar é matéria de que gosto muito. Antes de dormir, ainda cabe o lanchinho da madrugada, que às vezes é na madrugada, mas às vezes, é às 23 horas mesmo. Se passo distraida pelo quarto do Paulo, me perco e entro. Eu que fujo dessas distrações, porque 14 anos depois, elas ainda doem. Então não me distraio.


Chega o domingo. Domingo é melhor, porque do meio do túnel se avista a luz no seu final. Uma luz grande e boa. Eu me visto de dona de casa, logo que amanhece o dia. Esse é o dia que o Senhor me deu para ser dona de casa. Dia em que sou alforriada da presença da Nalva e ela, da minha presença. Embora eu desconfie que já estamos há tanto tempo juntas, que passamos a sentir falta uma da outra. Mas, eu não quero me desviar do percurso. Que é assim: Ivo sai cedo para o Senadinho. Eu vou cedo para a cozinha. Cozinha você sabe o que é: lugar onde se cozinha.  Lugar também onde entram todas as cachorrras para me fazer festa, porque nesse dia a cozinha é nossa.


Senadinho: senadinho é um lugar de muita agitação política. Era para ser. Mas, mesmo sabendo que alguns frequentadores do Senadinho vão me ler, vou contar a verdade: Senadinho é um lugar onde os amigos se reunem para fofocar. Um lugar de uma fofoca boa e pura. Um lugar de celebração.  Um lugar para compartilhar as histórias que agitaram a cidade durante a semana. Se não se tem, se inventa. Senadinho é um café da manhã na casa de Dona Helena Camargo, ela  a presidenta de honra do Senado. A mais velha, a mais amada, a mãe cercada dos filhos que não lhe nasceram, mas, sabe-se lá porquê,  adotou. Os filhos, esses buscam na memória a criança que  um dia foram e para lá vão, como vão felizes os meninos, a um parque infantil.  Os outros cargos: Secretária - Tereza; demais membros: Ivo, Bira, e Abreu. Essas são cadeiras cativas. Ocasionalmente abre-se espaço para Angela e para outros convidados. Mas, normalmente, os convidados não passam no teste de admissão e assim, não podem voltar mais. O teste de admissão é entrar no espírito daquela coisa, que, diga-se de passagem,  tem uma certa ordem filosófica no meio da baderna organizada. Os membros precisam ter humor, filosofar, inventar e obviamente... fofocar. As fofocas mais esperadas são aquelas que eles mesmos inventam sobre si e as esposas. Do tipo: Ivo, eu pedi pra ela escolher entre eu e o Mi, e ela disse que preferia o Mi. Mi é o cachorro.


Na cozinha, eu reencontro as minhas panelas. Todo domingo eu me prometo que, na segunda feira, vou assumir a minha função de dona de casa,  vou escolher o que  comer, escolher o que deve acontecer no circuito  da minha cozinha. Mas na segunda feira, Nalva assume o seu posto, coloca na panela o que ela bem entende,  e eu fico quieta e a vontade passa.  Até o próximo domingo.


Por volta das 11 horas ele chega, com uma sacola de compras na mão, trazendo do mercado tudo o que eu pedi. Ele vem para mim  feliz, como um aluno que traz para a professora o dever de casa. Eu vou para ele, feliz, como uma mulher que sabe que o marido precisa de amigos bons que lhe revelem, como num espelho, a sua própria mesma bondade. Cada um na sua mesmice existencial tão mesma. Porque a vida é tecida dessas amenidades e alguém aqui em casa tem que ter um vício ameno.


 A noite chega e com ela a possibilidade de participar de um culto em qualquer lugar da cidade. Se eu prego, prego para mim e para os outros. Se eu não prego, posso escolher em qual casa outros pregarão para mim,  porque todos são  irmãos e na casa de meu Pai existem muitas moradas.  Posso escolher, portanto,  qualquer uma delas. De qualquer jeito, estou em casa.


 Com a hora mais escura, chega também o fim do túnel e do dia. Vou dormir, eu que já me escrevi para você me ler. Parece que encontrei um grupo de gente que, em me lendo, gostam de se ler.  Pois que me leiam então.


Ana Ribas


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Tenho que me Vestir.


Eu não tenho que escrever nada, mas escrevo.  Escrevo porque gosto, desde os séculos dos séculos. E quando me faltam palavras, invento. Tenho o meu próprio Aurélio que saco de um lugar secreto.  Escrevo o que falo e também o que não falo. Mas ultimamente, estou um pouco preocupada com essa mania de escrever. Porque escrever se tornou perigoso. Desde que botei esse blog para funcionar, comecei a ficar nua diante do computador. Nua de alma.  Escrever sobre miudezas é muito pornográfico. Revela o direito e o avesso  e isso é muito constrangedor.


Às vezes acordo, a noite, ligeiramente  incomodada. E o incômodo me vem no rastro de um pensamento que vasculha lá da cama o que escrevi aqui no blog. Como um cão  faminto derruba uma lata de lixo em busca de comida, e vai revirando tudo,  eu  vou revirando o que escrevi, para descobrir que a condição de blogueira fez de mim um ser completamente desamparado. Desamparado mas sem fome. Aqui mato a minha fome. E as pessoas não desconfiam, elas têm certeza. Elas  têm essa certeza desconcertante de  que estou aqui, batendo devagar um bolo, para matar a minha fome, a minha única fome, essa mesmo  que nunca foi unicamente saciada.


Porque escrevi um livro que contava a vida de Abraão, o Pai da Fé. Fui  tão bem sucedida nesse projeto que ninguém desconfiou que Abraão era eu e que eu vira o patriarca nu bem antes de Sara.  Quem poderia desconfiar que eu saira de Ur dos Caldeus em busca da Terra Prometida? Quem poderia conceber que fui ao Egito em busca das riquezas de Faraó? Quem diria que o Isaque de Abrãao era o meu? Eu me tornei inocente e fiz Abraão culpado. Culpado pela minha perplexidade, culpado pelo meu sentimento de abandono, culpado pela dor e pela mágoa que foi muito funda e que, por ser tão funda, varou a terra, e do oriente, veio parar no ocidente, bem no meio do meu coração, como uma faca encravada.  Mas essa perplexidade, essa dor e essa mágoa pôde ser perdoada  pelos religiosos, porque ela era de Abraão, não era minha. Abraão pode.


Depois escrevi um livro que falava sobre as misérias humanas. Um livro que provava biblicamente que é mesmo maldito o homem que confia no homem. Mas o que ninguém sabia, é que eu estava falando de mim. De mim mesma. De mim, que sou fiel a um amigo até a morte, mas mato o amigo, sem dó nem piedade,  se ele não for fiel a mim. E só o ressuscito depois que Deus desce e me ameaça com uma faca na mão. Ou perdoa, ou morre. Para não morrer, perdôo. Perdôo matando uma parte de mim, aquela mesma parte  que  precisa morrer e ficar mortinha, roxinha, durinha, e ser comida pelos vermes para que eu possa, enfim, encontrar a paz.


Então. Então é isso. Por ora é só isso. Tenho que me vestir.


Ana Ribas


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MEU OUTONO EM ROMA.


Era outono em Roma, mesmo que não houvesse nenhuma importância nesse detalhe. Roma é feita de monumentos, de pedras, de ruínas e de história, muito mais do que de folhas amareladas ao vento.


 Antecipadamente, eu sabia, que, nesta narrativa, não poderia utilizar o  recurso das relações entre o homem e o tempo, tão comuns quando se trata de descrever antigas civilizações. Por isso, apresso-me a esclarecer,  não há movimento nessa história, não há ação, não há enredo; há  apenas o subjetivismo mesclado com poesia, a sutileza da afetividade e da ternura,  a geografia de sentimentos. Nesse sentido, Outono em Roma,  foi uma das narrativas mais significativas que já escrevi. E que já vivi.


Portanto,  saiba querido leitor, o  que aconteceu comigo em Roma, na histórica Praça de São Pedro,  não ganhou projeção em minha mente histórica,  mas ainda assim ficará dentro de mim, em algum lugar muito íntimo, onde só o essencial acontece e permanece, intocável, para sempre.


Eu estava em Roma, mas poderia estar em qualquer outro lugar do mundo antigo, porque o que contava para mim  eram os vestígios,  os tesouros guardados a sete chaves em cada monumento devastado pelo tempo e recriado em minha imaginação, essa completamente filosófica. Não me interessava a Roma histórica, mas a Roma dos romanos. Ou melhor dizendo, os romanos de Roma. Para onde teria ido toda aquela gente? Qualquer pessoa, desprovida de introspecção e sensibilidade,  poderia responder: para o cemitério. Óbvio. Mas, as pepitas de ouro não são encontradas na superfície. Portanto, eu cavava fundo dentro de mim mesma, olhando ao redor, sem ver a paisagem.


  Sempre fui fascinada pelas civilizações passadas, muito menos por motivos geográficos, e muito mais por motivos  existenciais, por temperamento, por melancolia, por saudosismo, sei lá porquê.    Por causa disso, pisar em solo romano representava  um instante redondo e mágico, onde eu me perdia nos labirintos do tempo, completamente alheia  aos sons, aos cheiros, às cores, às velas que crepitavam, ao tumulto das gentes, ao agitar de lenços brancos que  se moviam em cadência,  no outono de Roma, no Domingo de sol,  na Praça  de São Pedro, ao meio dia.


 Esse é o horário em que o Papa aparece, saúda a multidão e, quando tudo acaba, você respira tão cansado,  mas pode finalmente contar para a posteridade: “fui a Roma e vi o Papa.”


Era outono em Roma,  mas a  estação do ano, a magnitude do cenário  e a elegância da temporada, perderam encanto para o fato subjetivamente  completo e acabado que se havia  instalado dentro de mim, de maneira que, se de  travertino era o conjunto arquitetônico, se de pedras milenares se cobria  o chão,  e se  outros outonos envelheciam monumentos eruginosos, nem me dei conta dessa  plenitude  de antigüidades. Nem me dei conta de   que, afinal, pela primeira vez,  eu estava em Roma, terra de velhos sonhos e antigas saudades, cujas avenidas sempre desembocam no berço comum da humanidade.


O berço era meu e nele eu me embalava, quando um fato aconteceu. Um fato que me fez ficar entusiasmada, sorridente e enternecida. Um fato que abriu as brumas do  passado para fazer surgir o aqui e o agora do  presente.


Afinal foi isso o que aconteceu em Roma que vale a pena relatar para você: Preste atenção, mas faça isso com o coração. Só com o coração você conseguirá entender. Caso não consiga, dê-me o benefício da excentricidade.


Sensibilidade é o que lhe peço. Com sensibilidade,  talvez você possa entender porque fiquei repentinamente entusiasmada, porque o cansaço desapareceu, porque os meus olhos perscrutaram horizontes vencendo a barreira da massa humana aglomerada em devoção piedosa, porque meu sorriso se abriu, porque  esqueci que estava em Roma, e também esqueci que fazia outono, e era  domingo sem economia,  na Praça de São Pedro, ao meio dia.


Apresso-me a esclarecer que embora tenha sido nesse horário, que o balcão- janela se abriu e a multidão estremeceu em frenesi,  num segundo que se eternizou no “oh” coletivo das milhares de  vozes peregrinas, não foi esse acontecimento que me seduziu.


Na verdade, o que me seduziu, levou-me para o lado oposto da religião, da história, da geografia, da política,  do existencialismo e da filosofia.


Quero deixar claro: o que me levou para o lado oposto da religiosidade  não foi o cansaço de uma longa viagem, a profissão de outra crença, a proteção da Palavra de Deus que até ali me guardara de alguns equívocos coletivos.


Aliás, aproveito a oportunidade para confessar que eu alimentara, furtivamente, o desejo de ver o homem, e não o mito. Porque o  homem era merecedor – reconheço- de minha  admiração, sustentada pela longevidade produtiva, pela capacidade persuasiva,  pela memória lingüística, pela exercício da política conciliatória, pelo discurso socialmente correto, pela leveza do gesto largo que causava impacto quando beijava o chão.  Na verdade, eu queria vê-lo. E se possível fôra, queria cruzar meus olhos com os olhos daquele polonês azul,  que, penso eu, outros horizontes alcançaria para além do ouro, do brilho e da púrpura.




Quero que você saiba que fosse o que fosse, aquilo que me absorveu completamente, e desviou  minha atenção, tão de repente, bem no momento em que a música sacra soou, assinalando o meio dia,  pedindo o empenho da devoção e a marca da contrição,  teria que ser grande e envolvente, teria que ser dadivoso o suficiente para roubar o precioso átimo de segundo que coroaria a espera de defuntas gerações.


Porque naquele lugar, naquela situação,  eu não era, simplesmente eu.  De repente, minha individualidade se perdera e, ali, milagrosamente,  eu me tornara uma pessoa coletiva, representando a galeria ancestral, a herança atávica de uma família espanhola, prisioneira, durante séculos, nos porões de idolatria, cercada de cruzes por todos os lados, de imagens dolorosas, de chagas renitentes,  de mantilhas negras,  de terços, de  promessas, de recompensas e  penitências, de velas e ramos, de ladainhas sussurradas pelos séculos dos séculos...


Além dessa constatação metafísica, aquele instante - eu sabia - fornecer-me-ia argumentos para muitas  observações críticas e impiedosas, matéria profana  para a defesa de íntimas convicções, conquistadas após muitos anos de erronia religiosa.  Dali eu sairia armada para incertas e imprevisíveis batalhas teológicas e ganharia  munição que  faria explodir  trincheiras, em muitos quintais devotados a Baais.


Pois foi quando eu assim me encontrava, investida dessa responsabilidade espiã, foi quando  a filmadora  recebeu a última regulagem para a distância que me era imperativa pela pompa e circunstância da situação, foi nesse exato momento, que  esqueci da circunstância, perdi a pompa e  me surpreendi completamente à mercê daquele ser tão interessante, tão doce, tão dócil,  resgatador de sentimentos   que me subjugaram completamente, fazendo-me esquecer  Roma, o outono, o Domingo, o Papa, a Praça de São Pedro, o meio dia, o império Romano em sua forma mais piedosa.


Eu o vi, pela primeira vez, através da câmera. Tomei um susto mas foi um susto bom. Dei-lhe um “close” que  me foi fatal e, no instante seguinte, já me movia, irremediavelmente, no centro da massa  estéril, alheia ao rito cerimonial que, com, ou sem, a minha participação, acontecia. No meio da massa humana, eu era toda líquida em amor e candura. Mas  ele  era branco e caramelo.


Enquanto a multidão olhava para cima, e explodia em flashs e exclamações extasiadas, eu olhava para baixo e  me movia silenciosamente, registrando cada um de seus  movimentos  macios e ondulados.


 Estava cada vez mais perto. E quanto mais eu me aproximava, geograficamente,  do objeto de minha atenção,  mais fascinada me sentia pelo seu jeito displicente e abandonado, pela sua ternura feita de pêlo e rabo.


Era camponês, como  sua dona. Algo no seu latido me fazia ver que também não tinha erudição. Melhor, pensei;  facilitaria nosso entendimento. Facilitaria lhe dizer que em terras verde e amarela,  ele tivera um sósia que,  se logo na chegada, capturara  meu coração, na partida, arrebentara a minha alma:  Há pouco, havia morrido meu cão.


O biótipo do cão romano era o mesmo: Vindos de Pequim, ambos cruzaram fronteiras, conservando, na cara grave e chata, no olhar esbugalhado,  a estereotipia  herdada de seus ancestrais.


Mesmo saudosa, eu pensava, equivocadamente, que nosso papo seria curto, feito de afagos e  complacências, de amores e condolências. Porque afinal, “toda criação geme e chora, aguardando o dia da redenção....” Portanto, gemeríamos juntos, e juntos latiríamos toda a nossa indignação por esse mundo decaído que rouba afetos (caninos) sem prometer garantias ou recompensas póstumas.


Pensei que seria apenas isso: Na rápida sessão de fotos nos festejaríamos mutuamente, derrubando as barreiras entre o homem e o cão, entre o Brasil de muitas raças e a Itália de muitas tradições. E nesse retrato completo e acabado revelaríamos mais que a ternura entre a mulher brasileira e o cão de Pequim, revelaríamos a universalidade da criação e da criatura, a fragilidade da existência em suas formas mais e menos aprimoradas.


Eu não contava com o que viria depois. Depois, a sua dona, num italiano musicalmente cadenciado, que me trazia Rita Pavone fresquinha à memória,  perguntou-me, candidamente, se eu iria adentrar ao recinto da Basílica De Roma,  para assistir ao santo ofício e eu, inocente,  respondi que não. E justamente quando  eu pensava que amar é ver um cão abanar o rabo  e partir, perdi-me no equívoco: Os guardas de Roma não permitiriam que o animal sacrificasse nos seus inúmeros altares e  assim:  quem cuidaria de Vossa Fidelidade,  o cão? Quem...?


Não sei se me confundi no labirinto fonético de um idioma desconhecido ou se enveredei por um sistema de subserviência político geográfica agravada pelo meu estado de invasão territorial. O que sei é que concordei, e durante exatos 60 minutos fui  guardiã de um depósito sagrado de afetos: Nino, o pequinês  de pêlo macio e rabo ondulado, esteve  gravemente entregue aos meus cuidados, enquanto “Rita Pavone” dentro da Basílica, celebrava o seu ritual sagrado.


Confesso que pensei em sequestrá-lo. Até imaginei a ação. Em câmera lenta,  vi-me percorrendo as avenidas, desembocando no túnel do avião com toda  ansiedade de delinqüente primária; na bagagem, o cão;  no coração,  a euforia de ressuscitar dos mortos aquele que latira.


Mas entre a fantasia e a realidade,  minha primeira providência prática foi escolher uma cantina que recebesse  o homem e o animal,  sem nenhuma perplexidade, sem reprovação. Descobri que, em Roma, cão é companhia para todos os solitários, ninguém estranha o envolvimento sentimental. Pedi uma massa e um filé. Comi a massa e reparti o filé. Na verdade, repartimos mais que isso... repartimos a fragilidade existencial. E enquanto nossos olhares se cruzavam,  eu poderia jurar que ele me distinguia com a  terna severidade de quem compreende  dores mais densas.


Quando os prelados de Roma entoaram o último amém ao santo ofício e a turba começou a encher novamente a praça, antes  silenciosa, era chegada a hora do adeus.


Quase fiquei triste. Nino, o cãozinho, e todos os sentimentos inusitados que produzira em mim,  permaneceriam  gravados, para sempre, na dimensão poética da minha memória.  Mas a última imagem, no entanto,  tornou-me ainda mais pensativa:  como um menino espia o mundo, pêlos ao vento, sol na cara, olhos rotundos, um cão, na janela de um velho Fiat azul, no meio da fila dupla que se movia lentamente,  esbanjava a segurança muda e feliz de estar em casa... seu território,  sua casa,  sua gente, seu carro, sua bandeira, sua Pátria. Na verdade, a Itália, o Vaticano, o Papa, a Fontana di Trevi, a Piazza de São Pedro, o Coliseu, tudo era seu.


 Foi então que compreendi, como nunca em minha vida, a dimensão épica da existência mais comum: em Roma, como no resto do mundo, os cães  e  os homens retornam para casa,  abençoados pela placidez do outono, pelo sol de cada dia, pela paixão de existir sem grandes elucubrações filosóficas,  sem entender que, das paredes de pedras seculares, dos subterrâneos do tempo, das catacumbas milenares,  os que foram homens, um dia, saúdam seus pares e lhes dão passagem.


  Naquele exato momento, enquanto meus olhos percorriam a trajetória de um  velho Fiat azul, mais que o carro eu alcancei, de relance,  a substância da vida feita de retalhos do imponderável.


No último segundo antes da esquina,  descobri, iluminada,  que  se o prosaico, se constrói com a rotina, não há exigência para o cenário:  o  palco  é o mundo  lá fora, e as luzes  são as que Deus criou para iluminar o espetáculo.


Em Roma, eu vi um cachorro pequinês, que latia como um labrador inglês, que roía  osso feito um fila brasileiro. Vi também o homem, esse ser universal tão óbvio em todos os idiomas, vivendo com a resignação dos mansos e  movendo-se com a fidelidade do cão, entre todos os afetos.


 Sem matéria profana, a Piazza de São Pedro tornara-se, subitamente, tão doméstica quanto o meu quintal. E foi olhando em volta, familiarizada, que  eu me lembrei, no tardio da hora, que era perfeitamente possível vir a Roma, ver Deus,  o homem, o animal, a natureza, o mundo ... e não  ver o Papa!


Roma, ano 1995 -


Ana Ribas


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Prenderam o Homem.


Quem assiste aos noticiários de televisão, ou lê jonais, com certeza, deve ter acompanhado, nos últimos tempos,  a imagem de algum  homem público, sendo levado preso, em camburão, para a sede da Polícia Federal. Por uma dessas ações contundentes em que a sociedade exige uma satisfação imediata, e os poderes constituídos resolvem expressar a exigência  de uma conduta irrepreensível, prende-se o homem. Assistida por todo o Brasil, acompanhada por todos os rincões, a cena é recriada inúmeras vezes em câmara lenta, acompanhada por falas agressivas, por comentários desfavoráveis,  cuja tônica prima pela objetividade pouco sutil dos cidadãos de mãos calejadas, que não se negam a construir o país, mas querem-no mais justo.


           Está na moda essa súbita insurreição contra a corrupção neste país. Isso é bom? Claro que sim, isso é ótimo. É ótimo que prendam  o homem, desde que, de alguma maneira, os atos desse homem tenham afrontado a dignidade, a moral e as leis deste país. Enfim, não é sobre essa espécie de punição que quero ponderar. Quero comentar, tão somente, o que acontece, subjetivamente, fora do foco jornalístico, quando botam algemas no homem.


          Prendem o homem e o expõem à execração pública e aí  acontece... alguma coisa acontece dentro desse homem que as câmeras de televisão não conseguem detectar: um homem solapado, abatido, esmagado pelo peso da opinião popular, deixa a sede de seu império ruído, abrindo caminho entre a turba raivosa como um boi tangido  segue para o matadouro.


E é de matadouros  mesmo que  quero falar. Embora, antes, tenha que falar um pouco mais do homem. Não do homem que conhece a fama social, o sucesso político, ou o poderio econômico, seja ele amealhado pelo bem ou pelo mal.  Mas do cidadão anônimo que, ao deixar a sede da sua empresa, ou os umbrais da sua casa,  sob os impropérios da multidão, ninguém mais dignifica ou reconhece.


           Ouso dizer uma coisa: Talvez, nem ele mesmo se conheça. Talvez, o homem que desce as escadas de seu  império de vidro, ( e aqui me vem à lembrança um deles, tendo nas mãos um exemplar da Bíblia Sagrada),  talvez esse homem possa representar, desse momento em diante, uma incógnita para ele mesmo, um outro “ego” desconhecido, solitário,  nascido da transfiguração da glória em sórdida miséria. Com o perdão do trocadilho, emergindo da luz dos holofotes, a fama faz o seu batismo na lama. E o homem enlameado, muito provavelmente não se reconhecerá mais.  Habitando o seu coração um outro ser anônimo, assustado, carente, necessitado, sem viço, sem gordura, sem seiva. Caminhando a passos rápidos, o homem despenca tangido para o matadouro da glória.


          Porque no momento em que a justiça decretou o fim da  impunidade- impunidade que a sociedade desconhecia mas já existia -  nesse momento, morreu a glória do homem. Não mais, a cara na Revista Caras.  Não mais, os convites sociais. Não mais, as homenagens nas seções solenes de alguma instituição pública. Não mais, os títulos de cidadania honorária. Não mais, a tanta coisa supérflua, fútil e vazia. O desvario é tão grande que tudo que era demais, agora passa a ser de menos.  Tudo o que envolvia a esfera do homem e  era público, agora se torna impublicável. Não há interesse da mídia em dar voz aos acontecimentos subjetivos. Quem haverá de ouvir o grito de uma alma? Quem irá se propor a acompanhar os elementos subjetivos que farão a recriação do seu desvalido mundo interior?


            No entanto, eles estarão ali. Anonimamente,  sumarizando o conflito do poder mal exercido, vai ressurgir no matadouro  da glória do homem, alguma riqueza perdida, algum ensinamento circunstancial que a infância ou a adolescência proporcionou, alguma lembrança  de um só momento compartilhado com Deus. Quem sabe aquele momento  em que um passarinho caiu do ninho e encontrou, pela mão de um menino,  a  bondade de Deus. E essa bondade súbita que lhe veio, sem saber de onde, ficou profundamente impressionada  em sua alma, que não soube o que fazer com tamanha doçura momentânea.  Quem sabe.... ?


            No matadouro da glória do homem,  só o homem  e Deus poderão se conhecer ou se reconhecer.


           Aqui do meu anonimato de cidadã, mais do céu que deste mundo,  faço votos de que isso aconteça em cada mão algemada.  Eu faço votos de que a  Bíblia e a algema, nas mãos daquele homem,  estejam simbolizando  o homem nas mãos de Deus.  E se, para que esse processo possa acontecer, tenha sido necessário  todo o vitupério e toda a injúria que há no mundo, - seja ela bem ou mal merecida -, ainda assim, eu diria: Valeu a pena.
      
             Porque a glória do homem é breve como o vento, venha ele em forma de brisa ou de  vendaval.   Mas a glória de Deus é o conhecimento de seu Filho Jesus Cristo e essa rende dividendos para a vida eterna!


                          


Ana Ribas


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FAUSTO, RAFAEL, PARIS... E EU!


De Paris,  escreve-me o amigo Fausto, no livro de visitas do meu site:


“BOM DIA! INTERESSANTE,ONTEM ESTÁVAMOS FALANDO DE VC,EU E RAFAEL CORATO AQUI EM PARIS. DA SUA CAPACIDADE E FACILIDADE COM AS PALAVRAS. VC É UMA POTÊNCIA QUE AGORA TEREMOS O PRIVILÉGIO DE APRENDERMOS E CRESCERMOS LENDO, E DE UMA CERTA FORMA, VIVERMOS TBEM TUDO QUE VEM DO SENHOR EM FORMAS DE LETRAS E QUE VC DE UMA FORMA SUTIL E INTELIGENTE, QUE LHE É PECULIAR, PASSA PARA TODOS AQUELES QUE PASSAM POR AQUI (SITE). BEIJO GRANDE,QUE DEUS CONTINUE SEMPRE TE USANDO E TE DANDO MAIS OUSADIA PARA  AS COISAS DELE,COM AMOR,FAUSTO.”


Fausto, perdoe-me  por começar esta crônica dizendo: “De Paris”. Como se Paris fosse mais importante que você.  Mas, explico:   não é sempre que se tem um leitor em Paris.  Como também:  não é sempre que se tem um amigo em Paris. Dois amigos então, é raridade suprema. E quando dois amigos se juntam em Paris, para falar dessa humilde “escrevente” é um acontecido tão grande que enche de júbilo o meu coração. Fausto, Rafael e Paris: três grandes motivos para eu me alegrar juntamente.


Rafael, perdoe-me por mencionar primeiro o Fausto, mas foi ele quem escreveu no  livro de visitas. Você ficou “na moita”. “Ficar na moita”, Rafael, para você que mora há tanto tempo em Paris, exige uma explicação: é ficar escondido, sem se revelar. Então você entra no meu site  e sai de fininho, sem deixar nenhuma pista? Tudo bem, eu perdôo.


Eu o perdôo porque tendo tantas coisas para se ver e ouvir em Paris, você e Fausto gastaram tempo visitando meu site e ouvindo o meu coração. Poderiam ver e ouvir o Moulin Rouge. Ah, mas isso também não é coisa para se ver, sendo cristão. Então, tá.  Poderiam passear na beira do Rio Sena, um passeio de barco, já pensou? Quantas coisas vocês poderiam ter feito e certamente fizeram. Mas ainda assim acharam tempo para ler e lembrar de mim.  Meu coração ficou em festa: dois dias já dura essa festa!


Até aqui falei com vocês, mas agora, licença. Preciso explicar quem é Fausto e quem é Rafael, para os demais meus leitores. Meus leitores são preciosos demais para ficarem “boiando”.  Rafael é Rafael Corato, grande pregador do Evangelho, pequeno só perto do Senhor Jesus. Há muitos anos ele deixou Recife para evangelizar a cidade Luz que, com tanta luz na cidade,  esqueceu-se  de acender a Verdadeira. Por causa disso, Rafael está lá há cerca de 10 anos, apagando as luzes do mundo e acendendo a luz de Deus. E tem feito isso tão bem, que já foi convidado para estar em outros países, levando a luz do Evangelho. Rafael Corato é figura pública. Posso mencionar  nome, sobrenome, endereço. Mas fico só no nome e sobrenome mesmo, que mais que isso, sem pedir, seria invasão de privacidade.


Fausto, não. Fausto é um dos mais bem sucedidos empresários brasileiros. Não posso mencionar nome e sobrenome porque a importância da sua função talvez não seja condizente com o seu interesse pelas coisas do coração. O sistema econômico não o perdoaria.  Fausto é uma pessoa de rara sensibilidade,  que exercita o amor de Deus e uma profunda misericórdia em tudo quanto faz. Fausto é o rei Ciro do livro de Isaias. “Deus vai adiante dele, abrindo caminhos. “ E aqui vai um mistério que por ser mistério, não posso revelar. O mistério só se pode tocar até certo ponto.  Como disse, um dia, Andréia: “há segredos que são segredos de Rei.”


O caso é que a visita ao site foi ontem, e ainda hoje, enquanto tomava meu café acostumado ao pão com margarina, sentia o sabor de croissant e o cheiro bom dos cafés de Paris, e o brilho da Torre Eiffel em plena luz do sol, e vozes humanas e familiares vindas de um passado não tão longínguo assim...  e no vácuo de tanto sentir, veio a saudade de vocês, meninos... meninos  que cresceram, apareceram e continuam tão pequenos para mim.


Je t’aime Rafael, je t’aime Fausto!  É assim que se escreve? Que importa...! O que importa é o sentimento  correto dentro dos  nossos corações.  Eu vos saúdo com a inenarrável Paz do Senhor!


Ana Ribas


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Acabei de configurar o Windows para o horário de verão. Embora o dia esteja com cara de outono ou de inverno, jamais de primavera. Depois fui para o msn... ninguém! E mesmo que houvesse alguém, não me veria,  estou em off.


Já faz algum tempo que vivo em off, sem nenhum peso no coração. Porque boa parte da minha vida estive em "on" e nada me aconteceu. Não aconteceu nada que alterasse a minha tristeza crônica, ou que aumentasse a minha anêmica alegria. Sempre percebi que a minha minguada alegria é uma alegria da manhã. Pela manhã, sou tomada por uma espécie de felicidade que me faz mortal. Sinto-me viva, e como tudo o que está vivo morre, a alegria da manhã me lembra que estou viva, mas em breve, estarei morta.


Eu não sabia porque, mas o motivo da indagação sempre aparecia. Por que essa felicidade feita de instantes vazios? Por que esse êxtase de pequena satisfação a cada nascer do sol? E por que eu não conseguia reter comigo essa nesga de alegria, essa mesma nesga que se vê, quando o sol reaparece por entre as nuvens e se esconde de novo, e mesmo se escondendo ainda existe porque acabou de se revelar? Eu sabia que a alegria existia, porque a tinha todas as manhãs, mas à tarde e à noite, até a idéia de tê-la se perdia. Se eu fôra feliz, nem me lembrava mais.


Então, eu soube...


Tenho uma amiga que faz as minhas unhas e já falei dela aqui. Mas hoje quero falar da moça que modela as minhas sobrancelhas... ela se chama Célia... e do nada, dessas conversas que surgem só porque uma coisa vai puxando a outra, até virar uma linguiça comprida, ela disse: " a minha médica lá em Salto disse que eu e ela ( ela e a médica) somos  pessoas do dia porque sofremos de pressão baixa."


Disse só isso, e mais não explicou. Também não perguntei, porque sabia que ela não teria  a resposta.  Mas a pergunta, bastou: descobri o princípio da roda!


 Bastou-me saber que, em algum lugar, uma médica descobriu que a pressão baixa afeta o comportamento. Intimamente agradeci a informação.


Então fui perguntar ao meu marido que é médico, (como a médica de Salto), mas não sofre de pressão baixa e é perfeitamente calibrado, fui perguntar a ele, calibrado como  só ele sabe ser, ativo como um militante, convicto da grande ventura de viver, fui perguntar a esse homem tão feliz, de que forma a pressão baixa poderia afetar os humores noturnos.


Ele me respondeu, em parte. Disse-me assim: "Ana, nós somos uma química. Quando falta alguma coisa, no cérebro, o corpo todo sofre as consequências. A pressão sobe ou baixa, a depressão aparece, tudo é química, Ana, tudo é química..." Então tá.


 Falou, mas não explicou. Intimamente, também, agradeci a informação. Já tinha algumas peças do quebra-cabeças.


Ainda sem saber tudo que  queria saber, fui pensar. E eu, para pensar, penso muito bem. Penso tanto que sou capaz de ficar um dia inteiro, só pensando. Penso com a minha mente e procuro também pensar com a mente de Deus. Às vezes, dá certo. Ouço dentro  de mim o que  a mente de Deus me fala. Isso é possível? Claro que é possível! Paulo disse em 1 Coríntios 2:16: "Mas nós temos a mente de Cristo." O único problema é que para ouvir a mente de Cristo, precisamos calar a nossa própria. Calar: os sons externos e os internos. Aí então Deus fala, se Ele quiser falar, entenda-se bem. Deus é tão soberano que só fala quando quer. Nós, não: nós temos que falar até quando não queremos.


Então eu, eu que  começava a saber  a resposta à questão que me fora apresentada, pensei que já tinha uma certeza:  Sofro de pressão baixa. Olha que coisa pobre: "sofro de..." . Mas de que outra maneira eu poderia relatar essa coisa que me faz sofrer a não ser dizendo: "sofro de...?"


Tá bom... vamos tentar melhorar essa frase suburbana, de fila do SUS.


Na linguagem médica, é hipotensão. Mais chic, né? E além de hipotensão contínua, permanente,  também tenho a outra que se chama hipotensão postural: quando levanto, subitamente, o mundo roda e fico literalmente sem chão. É só  um vôozinho rasante e logo estou de volta.  É uma delícia, mas passa. Outro sintoma da hipotensão são mãos e pés gelados. Tenho os pés, as mãos e às vezes, a alma gelada. É uma friagem  só.


Ainda pensando, fiz as contas: se me calibraram para viver a 8x4 ou, na melhor das hipóteses a 9x6, como eu poderia ter pique para viver a 13x8 durante 12 horas seguidas?


Não dá... a 8x4 ou a 9x6 já faço muito, mas faço pela manhã.  Pela manhã, cuido de tudo o que precisa ser cuidado, ando tudo o que precisa ser andado, falo tudo o que precisa ser falado, compro tudo o que precisa ser comprado, trabalho tudo o que precisa ser trabalhado, sou mãe, dona de casa, empresária do lar, padeira, cozinheira, atleta, enfim, cuido de ser o que os outros precisam que eu seja .


Mas a tarde, cuido de ser eu mesma: não faço quase nada. O "quase" já me é extremamente cansativo. A noite, então, sou ótima para ler, pensar e  escrever... e  bem mais tarde, dormir.


Finalmente uma pista: a hipotensão causa um cansaço crônico que vai se acumulando durante o dia, até me fazer desabar a noite.  Uma desnecessária consequência: à noite todos os seres desabam mesmo. Alguns, com a consciência de um dia bem vivido, outros, com o consolo da manhã bem vivida.


Finalmente, uma  alegria mansa me sobreveio pela tarde: a alegria de saber que, se não sou boa para as tardes,  e para as noites, pelo menos, o sou para as manhãs. Mas a culpa não é minha: é da pressão baixa. Isento-me então do meu próprio julgamento.


As férias deveriam ser feitas pelas manhãs, o expediente de trabalho pelas manhãs, o sol deveria brilhar só de manhã, ser avó, mãe e esposa, poderiam ser atribuições só das manhãs. E de tarde, a imobilidade da pedra. A pedra nem agradece, a pedra só existe. Existe para ela e para Deus. O travesseiro de Jacó foi de pedra. E ele sonhou e viu uma escada que unia a terra e o céu. Era Jesus! Mas essa é outra história.


Minha querida Célia, se a sua pressão baixa faz de você e da sua médica uma pessoa do dia, a minha, faz de mim uma pessoa da manhã. De manhã, os passarinhos cantam para a minha pressão baixa.  E me encantam.  A tarde, eles lamentam.  E enchem o meu saco. E a noite, a coruja pia.  E eu durmo...


Ana Ribas


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OS GATOS E O PASSARINHO.






Mas que chateação...  agora mesmo, tão cedo,   tive que assistir uma luta de vida e de morte... um passarinho desavisado entrou aqui dentro de casa e veio, voadoramente,  alojar-se  no escritório...


Meus dois gatos, que parecem a minha sombra, estavam esparramados  no aposento, ressonando,  quando viram o intruso voando, baixinho, sobre as nossas cabeças.


Foi um auê... ou melhor... um miauê.... eu gritava, eles miavam  e o passarinho acossado contra paredes e vidros, batia freneticamente as asas, sem sair do lugar. Até que descontrolou-se e veio ao chão. Exatamente ao lugar onde  jamais poderia ter ido.


E começou uma brincadeira de gato e rato... o rato era o passarinho... o meu gato preto, sempre tão manso, tomou a dianteira... virou leão. Com a pata, ele procurava trazer para perto de si aquele ser(zinho) que se debatia indefeso. O outro gato, acompanhava bem de perto. Se a primeira fera falhasse em seus intuitos homicidas, ele seria a segunda fera. O negócio assassino, tinha uma certa ordem hierárquica, eu percebi. Do alto grau do meu desespero, saquei tudo. A dupla era altamente perigosa e estava imbuida das piores intenções possíveis.


 Não fosse a minha gritaria e agilidade, o pequeno passarinho, ainda filhote, ainda indeciso,  teria servido de sobremesa para os gatos. Sim, sobremesa, porque a refeição principal eles já tinham recebido.


Consegui salvar o que foi destinado à salvação.  Nem sei como. Acho que o desespero me tomou e fez de mim uma leoa: a rainha da selva!


 Em minhas mãos, o coraçãozinho assustado, batendo descontrolado, um passarinho. Tão frágil quanto eu. Tão assustado quanto o meu susto eterno. Tão perplexo quanto a minha perplexidade.  Tão ansioso pela liberdade, quanto eu pela minha. Tão passarinheiro quanto eu passarinho.


 Esperei que se acalmasse e o devolvi para o azul do infinito. O infinito é sempre azul. Se olhamos da terra para o céu, o infinito é azul. Se olhamos da lua para a terra, o infinito da terra também é azul. Foi para esse azul eterno que eu devolvi o passarinho, depois do susto vermelho.


Felizmente, ele sabia voar.


 Mas eu ainda não sei. Ainda estou presa a cães, gatos e seres humanos cuja lógica, às vezes, me lembra gatos comendo passarinhos pelo simples deleite de matar. Não pela fome, mas pelo instinto. Não pela necessidade, mas pela crueldade. Decifra-me ou  te devoro.


Eu, eu que amo tanto, olhei para os meus gatos sem censura, mas com  muda decepção. Para onde fora a doçura do ronronado suave, quando se enroscam em minhas pernas? Para onde fora o olhar tão manso, e a imobilidade tranquila que faz deles os meus companheiros fiéis de toda manhã?


Por quê matar se tudo o que vive quer viver, e se tudo o que morre, na hora h  não deseja morrer?


Eu que amo tanto, hoje não vou amar com tanta intensidade. Hoje vou amá-los com desilusão. Só preciso saber como é que se  ama com desilusão, eu que só sei amar de um jeito.


Ana Ribas


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O QUE EU QUERIA SABER...




Eu, que nem gosto de televisão, vivo cercada por um continente delas. Há televisão na cozinha, na copa, em cada quarto, até no banheiro. E obviamente, nas salas.


Minha família é uma família “televisiva”, só eu não gosto de televisão. Aqueles monstros negros, de boca aberta, quase sempre me levam para onde não quero ir: para a tragédia dos outros, eu que já tenho a minha própria tragédia.


Então, fico me esgueirando, de um cômodo para outro. Desconfiada, com grandes olhos de espanto, estou sempre alerta para fugir do recinto, quando o drama começa. Mesmo assim os fragmentos me atingem: são estilhaços de vidros quebrados da tragédia de Santa Catarina, pedaços do barco que afundou no Pará, mugidos de vaquinhas morrendo de sede no Pantanal. Até um restinho da coisa mal cheirosa que o ventilador do Senado espalhou pelo Brasil, respinga em mim.


Não gosto de televisão. Mas sou uma telespectadora de instantes. Algo de magnético me faz compactuar com pequenas frações da notícia – sempre em pé – enquanto passeio de cômodo em cômodo, para me livrar da sensação de incômodo. Às vezes, o que ouço, involuntariamente, me torna petrificada. Então digo de mim para mim: “Bem feito! Quem mandou você assistir?”


Então eu, eu que já tenho fartura de emoções incontidas, procuro me convencer de que sou, apenas, um pé de alface: não vou me desgastar, não vou chorar, não vou me indignar. Mas é tarde. Já chorei, já me desgastei, já me indignei: deixei de ser alface para ser eu mesma,eu que lhe odeio tanto, óh televisão,  e acabo por lhe ouvir todos os dias, como se atraída por um canto da sereia.


Willian Bonner e Fátima Bernardes, até que são simpáticos e empáticos: sempre que a nota é triste, eles choram. Eu percebo que eles choram, você nunca viu? Pois eu já vi...! Mas isso não basta. Como editor chefe, ele deveria anunciar também que, em algum lugar inóspito do país, uma flor exótica e rara floresceu. E a notícia dessa flor, amenizaria a carência do patrimônio sagrado que a televisão nos rouba, um pouco, todos os dias.


Quase não vejo televisão, mas ouço. Ouço porque foi-me dado um ouvido para ouvir, e enquanto me movo por entre a casa, ouço sem nenhum deleite, como quem suporta.


Ler é a minha praia. Leio tudo, até bula de remédio. Leio revistas e elas também vendem tragédias. Mas a tragédia na revista, não provoca o mesmo eco. A tragédia enquadrada na revista tem a prerrogativa de fazer as coisas parecerem passado. Não posso mudar o passado. O passado já passou, já foi fotografado, já viajou até a gráfica, já virou letrinhas negras no papel branco, já passou pela mão do jornaleiro, já viajou léguas até me alcançar. A notícia na revista é triste, mas chega em minha casa velhinha e enrugada, apresentando um determinismo fatalista de algo que não posso mudar.


A televisão, não: a notícia chega tão quente que vem com cheiro de carne queimada, de ferros retorcidos, de gente pedindo para entrar no céu, no susto da morte, e isso me faz desejar entrar na linha do tempo, e puxar para fora todas as pessoas e todas as coisas que acabaram de se perder. A tragédia na televisão tem cheiro, como o cheiro de um pão que acabou de sair do forno. Só que é um cheiro de morte.


Eu não gosto de televisão, mas tenho que absorvê-la em doses homeopáticas como um remédio que, em vez de curar, me mata. Eu a tomo, um pouquinho, todos os dias, meio que involuntariamente, por que algum dia se convencionou que é preciso estar informada. Bem informada. Estar informada no dicionário significa estar avisada: preciso estar avisada da miséria, da morte, da imprudência, da corrupção, da agonia do planeta terra. Preciso estar bem informada, ainda que estar bem informada signifique estar mais infeliz, mais quase morta.


Então, depois da televisão de cada dia, o sono, o sonho, o pesadelo. Placidamente, a casa dorme e eu também devo dormir. Devo deitar-me, esparramar o corpo e a alma entre alvos lençóis brancos, flutuar na vibração do ar, suspirar, e finalmente, dormir. Dormir o sono dos justos. Mas o que eu queria saber, o que eu precisaria entender, o que me apeteceria muitíssimo aprender, é como se dorme com um barulho desses?


Ana Ribas


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EU VIVO COM PRESSA.


Não  vou dizer que  não tinha percebido. Mas ontem, tive que cair na real.


Realmente, eu ando com uma certa urgência urgentíssima, no meu fazer. Uma urgência que se esparrama  pelo meu ser, pela expressão facial, pela mímica contraída, pela impaciência, que nasce no íntimo, mas se revela  no corre-corre. O corre- corre é a ponta do iceberg gelado, o interior é a chaleira de água fervente.


Essa urgência é feita de pressa, e a pressa é inimiga da perfeição, já dizia minha avó.
 É feita de uma tensão exagerada nas mãos, até quando escovo os dentes: a gengiva sangra.
É feita de um coração atleta, que a cada dia dispara mais, sem nenhum motivo aparente: um simples toque de telefone e ele foge, assustado, com medo.
 É feita de  mão incerta, trêmula, desordenada: quando vou separar a clara da gema do ôvo, a gema cai no chão e o ambiente fede.
 É feita de várias panelas ao fogo;uma delas  acaba por queimar.
 É feita de um telefone preso no ombro,  de pernas que sobem e descem escadas, de olhos que lêem, enquanto falo.
 É feita de multas por excesso de velocidade.
 É feita de querer  responder todos os e-mails, todos os recados do orkut, todos os telefonemas, ao mesmo tempo.
É feita de  um sentir-se  responsável por todos os sentimentos que cativei naqueles que me acham  uma pessoa tão legal!
É feita de esquecimentos involuntários: o corpo não acompanha a mente que  move e se adianta na velocidade do som.
É feita de querer conversar e ler ao mesmo tempo: enquanto o outro fala, eu respondo, mas também leio. Consigo ler sem ser lida.
É feita de tantas coisas...


Estou sempre querendo chegar lá. Mas quando chego lá, o lá se torna aqui. Certa vez li essa expressão em algum lugar, que, agora, se encaixa feito luva em mim.


Há um vulcão em erupção e as larvas estão descendo, atravessando e percorrendo o  território, com hora marcada para chegar. E nunca chegam.


Sei que existe terapia para isso, mas não quero fazer terapia. Sei que o terapeuta vai me dizer para exercitar o aqui e o agora. Mas eu quero ser a minha terapeuta. Quero aprender, ouvindo a voz da sabedoria que habita em mim e que já me pediu para des-acelerar.


Porque a voz de Deus fala. Ontem, a voz de Deus, falou pela boca da Nalva. Nalva é a Marinalva, aquela que virou crônica aqui no Recanto.  Foi ela quem me disse: Ana, porque você  tem tanta pressa? Porque essa afobação toda? O dia está inteiro, mulher! Já faz tempo que te vejo se consumindo nessa fazeção. Se economize...! Foi aí que cai na real. Até Nalva viu, e só Carolina não viu?


Preciso me economizar. Preciso buscar a suavidade nos gestos, nas palavras, nas atitudes, aonde ela puder ser encontrada. Mas esses encontros devem acontecer dentro de mim. Não podem ser externos. Se marco um encontro com a tranquilidade, na paisagem de um rio, na calma de um campo, no deserto lunar, quando eu os deixar, e quando eles me deixarem, nos esqueceremos mutuamente. Por isso, tenho que buscar a calma no porão do  navio, naquele lugar dentro de mim, onde, algum dia, a serenidade ficou e eu fui.


Viver com pressa é como habitar um planeta vazio onde tudo precisa ser criado. Onde tudo depende de nós. É como se os 7 dias da criação estivessem esperando a nossa ordem para trazerem todas as coisas à existência.


Viver com pressa é como querer entrar na possessão imediata de cada um dos nossos dias. É feita de muitas personagens mal resolvidas: quando estou fazendo alguma coisa, aqui,  já estou fazendo a outra coisa lá.  O resultado é que nada sai perfeito.


Viver com pressa é concluir logo esse texto porque outras pessoas,  outras vozes, outros mundos,  reclamam a minha presença  e eu preciso estar aqui e  estar lá, naquela terra do nunca,  naquele continente que se levanta com resplendor selvagem e me chama pelo  nome, sem que nunca, jamais, eu saiba como alcançá-lo,  sem que ele, algum dia,  desista de querer me tomar.


Ana Ribas


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SEGUNDA FEIRA: UMA RELAÇÃO DE AMOR E ÓDIO!


Odeio,  na  segunda feira,  a  vadiagem que ainda persiste dentro de mim. Como se o domingo ainda não tivesse acabado. Como se o dia de ontem tivesse sido tão extraordinariamente bom, quanto a minha vontade de  retê-lo. Não foi bom. Mas também não foi ruim. Foi um dia de nada. Tanto nada que nem escrevi nada aqui no site.


Amo, na segunda feira, a conformidade que se  entrelaça com a rotina, dentro de mim. A casa que acorda com um certo vigor. O barulho do portão que se abre para a minha funcionária entrar. A  ordem judicial que decretamos contra a bagunça: Bagunça, você tem só até o meio dia para deixar este recinto. Amo as roupas lavadas no varal com cheirinho de amaciante. E o arroz com feijão - muitas vezes sem carne- acompanhado de um ovo frito, bem frito, com aquela casquinha crocante. A simplicidade gastronômica que o nosso estômago pede,  para se recuperar da comilança desenfreada do domingo. Isso eu amo.


Odeio, na segunda feira, a falta do sonho. Não consigo misturar a vida com a poesia. Não consigo viver dois tempos, embora saiba que sou feita de muitos tempos, muitos sonhos e muitas vidas. Odeio na segunda feira, a angústia da conformidade. Porque a minha conformidade vem acompanhada de uma certa angústia. Não a angústia existencial, mas a “angústia material”. Aquela angústia que é palpável, que tem nome, R.G. e CPF. Angústia pelas coisas que não consigo resolver, pelas coisas que não quero me envolver, pelas atribuições que não desejo me atribuir e que, no fundo,  sei que são minhas. Isso eu odeio.


 A segunda feira me lembra que existem situações à minha espera, há séculos. E que talvez, elas se petrifiquem, sem que eu as toque com  a minha  mão mágica. Talvez, elas me acompanhem como fantasmas que se esgueiram da luz.


Amo, na segunda feira, a universalidade de todos os povos, de todas as gentes, de todas as terras, as latitudes horizontalizadas pelo destino indigente de toda a humanidade.  Os ricos e os pobres, os latifundiários e os proletários, até os indigentes e os andarilhos sabem que segunda feira é dia de produzir mais: mais dinheiro, mais trabalho, mais milhas, mais paz e mais guerras. A marca da segunda feira é a produção, seja no capitalismo, no socialismo, em qualquer “ismo.”


Ninguém escapa da síndrome da segunda feira; a segunda feira é o dia em que não conseguimos nos enganar , nem mesmo com uma linguagem  de poesia romântica ou de prosa comovente.


Segunda feira é dia de varrer as ruas e juntar o lixo nas esquinas.
É dia de abater os bois nos matadouros.
 É dia de levantar paredes nas casas.
É dia de curar feridas nos consultórios.
É dia de verificar o extrato no banco.
 É dia de levar nos lombos  uma pesada carga: a carga da maldição do Éden: “ com o suor do teu rosto comerás o teu pão.”


Até que Deus foi generoso na sentença: bastava  tomar um pedaço de terra – porque a terra era de todos – semear, moer o trigo, fazer o pão e comer. Simples assim. Eu comeria o meu pão e você comeria o seu. O pão sem margarina, sem presunto, sem queijo. Porque o paladar se acostuma com aquilo que você lhe oferece, e depois, exige aquilo com que você o acostumou.


Certa vez, há muitos anos atrás,  recebemos a visita de um amigo de meu pai, dos tempos de antigamente. Ele veio com o neto. À hora da refeição serviu-se o homem de um bom pedaço de carne e não serviu o menino. Quando minha mãe foi  fazê-lo, ele  disse que o menino não comia carne. Olhando para o menino, via-se que a carne lhe entrava pelos olhos, pelo nariz e pela boca. Ele todo pedia a carne. Então, por causa da nossa insistência, o homem explicou com a lógica dos brutos: “ amanhã, eu não vou ter dinheiro para colocar carne na mesa e ele vai ficar pedindo. É melhor que ele não saiba o que é carne.”


Parece folclore, mas aconteceu. Eu juro que aconteceu.  E essa argumentação, embora cruel, vem carregada de verdade: o corpo e alma se acostumam com o que você lhes oferece. Poderíamos viver de trigo, de ervas, de peixes, de caça. Mas o homem de hoje se alimenta  de pão, de ervas, de  peixes, de carne, de carro, de moto, de fazendas, de campos e de possessões. E  nunca se sacia porque essa fome nunca acaba.


Segunda feira é esse dia.


Dia de fazer conta para ver se o dinheiro alcança comprar 3 milhas de mar aberto, só para que ninguém ouse passar por ali com um iate melhor do que o nosso.


Segunda feira é a coroa que pesa toneladas na cabeça do monarca que habita cada um de nós. Cada um de nós somos como os Reis da Inglaterra: monarcas que reinam,  mas não governam.


No bem estar da nossa pequena burguesia,  segunda feira é dia de ameaça.
Dia de golpear as teclas do computador com fúria ancestral.
Dia de calar as vozes dos fantasmas que habitam o nosso inconsciente coletivo.
 Dia de branco e dia de negro.
Dia de trancar na gaveta a carga de sonhos adolescentes que  ainda carregamos dentro de nós.


Da segunda feira com seus haveres, e deveres, nem essa que vos escreve, consegue escapar: Cesso aqui de fazer da realidade,  murmuração: o dever me espera!


Mas o faço na certeza de que as catedrais dos nossos sonhos não serão jamais tombadas, serão apenas adiadas: até o próximo domingo!


E bom trabalho para todos!


Ana Ribas


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CONFESSO QUE NÃO VIVI.


Na noite que passou, o sono me perdeu para Pablo Neruda. Fiquei relendo pela “milésima vez” o seu maravilhoso livro de memórias Confesso que Vivi.


Confesso que, quando leio Pablo Neruda,  fico como quem sonha. O sono não me faz falta, porque sonho acordada. Nas margens desse livro, que adquiri na década de 90 - no século passado, portanto -, junto com a primeira leitura, fui anotando à margem de cada parágrafo: Que lindo, Pablo!


Aqui e  ali, as páginas estão salpicadas  de exclamações, feitas com  letra miuda e desenhada. Mas essa foi a primeira, de muitas vezes.  Sempre que leio  Neruda, eu não agüento sozinha, o peso de tanta emoção, de tanta ternura, de  tantos mundos. Então, preciso dividir com alguém e divido com Pablo. Mesmo sabendo que ele já não está mais entre nós. Mesmo sabendo que Pablo jamais lerá o que escrevi. A cada parágrafo, aperto o livro contra o peito abraçando o poeta que se levanta do túmulo, no meu arrebatamento de leitora apaixonada.


Uma frase entre muitas  me comoveu na releitura de ontem: Assim aprendi que os cisnes não cantam quando morrem. Vejam que lindo!  Pablo aprendeu, e eu aprendo com ele. Não preciso mais assistir à morte trágica de um cisne, para saber que os cisnes não cantam quando morrem. Aprendi com Pablo.


O cisne que Neruda alimentou com pão e peixe durante 20 dias, morreu, há muitos anos,  aconchegado no peito do menino.  Mas a morte de ontem aconteceu nos meus braços. Cada vez que leio, o cisne morre de novo.  Eu o afago, beijo-lhe o longo pescoço negro  e  peço perdão pela selvageria dos homens que o machucaram com paus e com pedras. Eu o entrego para a morte, e enquanto ele morre, eu morro um pouco com ele.


Nunca vi um cisne negro. Mas vi Neruda, tão raro quanto um cisne negro.Vi Neruda com o seu coração encharcado de desespero, recordações, plantações,  flores, bichos, gente, compaixão, amor, saudade, e infinito, tudo numa pasta zipada dentro desse pequeno ser,  que já vagava pelo mundo, ainda que o mundo lhe fosse apenas do tamanho do Chile.


A Palavra é Deus e de Deus deve ter vindo a inspiração que abasteceu a poesia de Neruda, como vinda de um  manancial inesgotável.


Por causa desse livro, o sábado hoje amanheceu mais terno, mais suave, mais silencioso. Por causa desse livro, preciso percorrer um longo caminho para me desprender do universo que habita essas páginas  e alcançar este outro com a sua   rotina, os seus  sons e os seus cheiros .


 Tenho que fazer o meu pão de cada dia, mas ainda não sei se algum dia nascerá em mim a vocação para fazer pão. Sempre tento, mas o pão sai do forno com o aroma da intimidade que me foi roubada por esse fazer. Entre ovos, farinha e fermento,  amasso e dobro  a força magnética da lembrança.  A palavra não mata a minha fome de comida e, por isso,  só por isso, preciso fazer pão.


Neruda  foi um refugiado. Ele se refugiava, muitas vezes voluntariamente, por causa da palavra.  Refugiou-se  na Espanha, em Isla Negra, para escrever o seu outro livro: Canto General. Nunca li Canto General porque não consigo  terminar  de ler “Confesso que Vivi”. Para mim, essa obra é inconclusiva, por causa do meu deslumbramento que nunca se esgota.  Mas, se me fosse dado escrever um “Canto General” seria um canto onde todos os mundos conhecessem a paz. A paz  com Deus no centro. Eu destronaria o humanismo do meu Canto General e implantaria o Cristocentrismo de Jesus Cristo.


Eu nunca estive exilada. Nunca fui  refugiada. Mas de certa forma, os anos me levaram e me trouxeram para outros exílios e outros refúgios, para além da Pátria. Todos deveríamos dilatar latitudes a fim de experimentar um exílio voluntário que nos permitisse escrever  o nosso Canto General.


A Pátria é o o lugar da origem. No momento mais confuso da vida, voltar ao começo,  deveria ter o poder mágico de apagar todas as lembranças tristes, tudo o que  nos fez e ainda nos faça sofrer. Mas não temos aqui “essa Pátria permanente, esse lugar mágico e celeste, onde não haverá pranto, nem dor  e nem saudades.”  Temos a nacionalidade, mas não temos a posse de campos, planícies e mares isentos de guerra. Todas as nossas possessões estão manchadas pela guerra interior, que fere, que sangra, que mutila.


Estive na Espanha, em busca de uma Pátria. Lá nasceram meus pais, avós, bisavós, toda a minha árvore genealógica.  Visitei grandes cidades  e grandes centros culturais e turísticos. Estive em Sevilha, Granada, Madri, Barcelona e Puerto Banuz, uma espécie de paraíso litorâneo. Conheci as obras do grande arquiteto Antonio Gaudi, de inspiração gótica medieval; conheci a Casa Batlló e a Igreja da Sagrada Família, lugares projetados para chocar e depois acolher.


Conheci a modernidade e a antiguidade, o velho e o novo, o presente e o passado, tão comum nos países da Europa onde se convive lado a lado com esses dois referenciais.  Mas também conheci  todos os becos, e  todos  os “pueblos” por onde o meu povo passou, sítios que parecem ter parado no tempo. Meu pai nasceu em Hueneja, próximo de Granada. Percorri cada metro daquele pequeno povoado e pisei naquele chão pensando que o chão era meu e que os passos eram do meu saudoso pai.


 Conhecendo Hueneja, conheci o lado medieval da Espanha: lugares onde a única padaria  toca um pesado sino de ferro para avisar que acabou de sair uma fornada de pão quente; onde o padre da paróquia detém todos os registros civis dos cidadãos sob o seu cajado espiritual; onde o chefe do correio é uma das autoridades máximas;  onde ainda se usa conservar alimentos dentro de um buraco fundo, numa parede de pedra, uma espécie de forno gelado; onde as casas têm pátios internos circulares para abrigar os seus rebanhos; onde os velhos se assentam nas calçadas vestidos de negro, com grandes olhos de espanto para os estrangeiros do lugar.


  Conheci casas de pedra e gente de carne e osso. E em alguns lugares, as casas pareciam ser de carne, como as casas de Gaudi e o povo de pedra, como as inúmeras imagens de altar.


Estive em lugares tão exóticos quanto os seus nomes: Virgem Maria Del Trabuco. Alguém já conseguiu imaginar a virgem com um trabuco na mão? Pois o espanhol consegue. O espanhol  tem o sagrado tão arraigado dentro da alma, que consegue divinizar um trabuco. O espanhol consegue pensar que a tourada é o símbolo da luta entre o bem e o mal. Obviamente, o bem é representado pelo toureiro, que fere, machuca, desrespeita o animal e corta-lhe a orelha  sem  anestesia.  Mas o touro é o símbolo do mal.


Essa é a minha origem. Um povo que se flagela nas procissões em nome de Deus e que é profundamente religioso, mesmo não conhecendo que a essência de Deus é a bondade, o amor, a misericórdia, e que essas características  do amor de Deus se estendem  a todos os seres vivos, sejam homens ou  animais.


Voltei do meu exílio desolada. Percebi que a minha genética está viva nas preferências gastronômicas, que à mesa, sou mais espanhola do que brasileira; que há em mim  um certo jeito de andar, de falar, de sorrir que lembra as mulheres daquela terra; que nas  expressões faciais, nas mímicas, na superfície do povo, alguma coisa veio se instalar  no meu DNA. . Mas, as semelhanças acabaram aí.  Não encontrei o que buscava para matar a sede, nenhuma nova Pátria surgiu da mais secreta das minhas dores.  O abismo se fez ainda maior, feito de perplexidade e desalento.


Voltei da Espanha ainda mais órfão de pai,  de mãe, de filho,  de afetos, de pátria, de terra e de céu.


Como Abraão, como Isaque, e como Jacó, ainda estou em busca da terra prometida e confesso que ainda não avistei essa terra. Mas um dia,  chegarei lá.  Quando eu chegar lá, quero celebrar a vida... a vida sem a morte de cisnes negros maltratados pelos homens, a  vida num mundo tão perfeito que a prosa poética de Neruda não me fará nenhuma falta.


Ana Ribas


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DEUS E O CHIP DO MEU CELULAR.


Mas é claro que sempre é possível fechar o dia na palma da mão. Abrir devagarzinho, só para fechar de novo.  Levantar os olhos para cima e pensar: o que vou fazer com este dia? e não fazer nada...


Ou olhar em volta e deixar o dito cujo escapar, só pela preguiça de ter que, com ele, se ocupar. O dia depende de nós em tudo. O que fazemos com ele é problema nosso. E  o que ele faz conosco também depende de nós.


Hoje, eu tinha um dia inteiro só para mim. Mas as vezes, é tão difícil ter um dia só para mim, porque não sei nem o que fazer comigo, quanto mais com o dia.


  A manhã já batia por volta das 10,30 quando tirei o pijama. Antes, estava aqui, escrevendo o meu artigo que conta um pouco das minhas experiências com Deus. Dei a ele o nome de Um Deus na Contra Mão. Mas já percebi que o nome de Deus não chama muita atenção aqui no Recanto. Talvez, porque Deus seja o Deus de todos, e cada um já tem a sua opinião formada sobre o Deus que tem.  De quaquer forma, eu quis registrar a minha.


Uma das minhas.


Deus é tão vasto que não cabe em nenhuma opinião.


Depois disso, percebi, que estava deixando o dia escapar pelo vão dos dedos. Viscosamente, o dia estava escorrendo pela palma da minha mão.


Então, como o médico que corre para socorrer o paciente,  dei-me pressa. Precisava salvar o dia, antes que ele morresse.


 Fui para Umuarama. Para quem não sabe, Umuarama é uma cidade vizinha à que moro. É a maior cidade da região,  num raio de 120 km. Tem um bom comércio, bons restaurantes, boas opções para gastar o dia...  e o dinheiro.


Como o dinheiro anda curto, fui determinada  a comprar apenas um celular bem baratinho, com as funções mínimas necessárias. É desses que eu gosto. Celular é para falar e para ouvir e ponto. O resto é acessório.


Eu já tinha um celular, mas antes de ser meu, ele foi da Silvia. Silvia,  é minha filha caçula.  Troca de celular como troca de roupa. Agora usa um tal de Dolce Gabanna, lindo e sensual: quando desliga, uma voz rouquíssima e sedutora, de homem, evidentemente, sussurra: Dolce Gabanna. Chega a dar arrepios. O preço também foi de dar arrepios e ela está pagando em 12 vezes no meu cartão de crédito. Faço questão de cobrar!


Mas como eu dizia, esse celular antigo, que foi da Silvia, servia-me muito bem. Mas, involuntariamente,  dei-lhe uma queda e a fibra óptica se rompeu. Então, comprei esse que está  comigo agora, bem diante de mim . Comprei e fiz a troca do chip, na loja mesmo. Peguei o chip do celular antigo e coloquei no novo. Simples assim. Fiquei com o mesmo número, a mesma agenda, e o mesmo valor em créditos, que ainda tinha, e que estava escondido dentro do aparelho anterior. Olhando para ele,  que agora era só uma casca, experimentei um pouquinho de ternura e de saudade. De agora em diante, a gaveta seria o seu destino.


Foi só isso. Mas, tchan, tchan, tchan, tchan.... estava voltando para casa,  já na rodovia, quando me veio o insigth: o chip! A partir do chip, veio a luz.


Por causa do chip, eu pensei que nós, quando morremos, jogamos fora a casca.  E vem Deus e recolhe o chip. O chip contém tudo: nossa história, nossos dados, nossas vivências, nosso ser. O chip é reaproveitado, e não perde nenhuma das suas características.  Deus então guarda o chip com ele. Não é fantástico?


Então, neste dia que está quase acabando,  essa escrevente que vos escreve, quer apenas vos dizer:  Deus vai cuidar do vosso chip! E para a casca, a gaveta!


Ana Ribas


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O RETRATO NA PAREDE.


Eu estava acomodando o retrato na parede, quando ela entrou.


Filhos adolescentes chegam sempre como um tufão, são rápidos, agitados e lacônicos. Parecem estar sempre atrasados para algum compromisso inadiável. Filha adolescente é como essa que está diante dos meus olhos, dizendo o que quer, o que pensa, embaçando a monotonia, deixando no ambiente uma certa agitação, até mesmo depois que já se foi. Uma lufada de vento forte em ambiente fechado.


Diante de tanta urgência, o confronto é inevitável: percebemos como a vida vai nos tornando vagarosos, sem a pressa de quem quer logo chegar.


Estava dimensionando o retrato na parede, mais exatamente um retrato familiar, daqueles pesados, com moldura antiga, contornada de madrepérola. Lá dentro, um casal de meia idade me  observava, com extrema seriedade, enquanto eu retribuía com  carinho, limpando, enquadrando,  penetrando na estaticidade tranqüila,  só para adivinhar o que  gostariam de dizer à mim, terceira geração da família.


Mesmo sem falar, eles me contavam. Toda manhã, enquanto limpava, também aprendia. Meu avô foi um homem singular pela fortaleza de caráter e de espírito. Teve objetivos bem definidos e lutou por eles com tenacidade e coragem. Conheceu, e  casou-se, com minha avó, na Espanha de Franco. Imigrando para a Argentina,  trabalhou em minas de carvão, até que a jovem mulher, que ficara na Espanha, contraísse a gripe espanhola. Vencida a ameaça de morte,  decidiram, de comum acordo, que não mais se separariam em vida .


Vieram para o Brasil. Anos de trabalho, de luta, de sub-escravidão nas lavouras da terra .  Depois do campo, a cidade. A vida ainda mais dura, impunha uma rotina pesada de trabalho: guarda-noturno de noite, lavrador  de dia. Morava numa chácara e assim que chegava do trabalho  da noite, às 5 horas da manhã, plantava e colhia até o meio dia. A tarde, dormia. As poucas horas de sono não o abatiam, dizia que o corpo é comandado pela disciplina da mente.


Um dia adoeceu, e só parou de trabalhar na semana em que morreu. Foi  numa segunda feira.  A morte viria tranqüila, pela manhã, e o encontraria com um sorriso nos lábios, já nos momentos finais. Ou seriam momentos iniciais?


  Uma semana depois, a companheira fez a sua despedida. Foram 7 dias em estado de circunspecção, sem reclamar, sem lamentar, sem desespero. Num processo volitivo, deixou-se morrer.  A cada dia, um pouco, até que não faltasse mais nada. Como uma vela que vai derretendo a última chamazinha bruxuleante.  Contrariando a máxima cerimonial “até que a morte os separe”,  criaram sua própria fórmula conjugal: “ nem a morte nos separe.”


Esse relato de vida, essa história de trabalho, de determinação, de coragem e de amor, sempre me impressionou, ainda que não os tivesse conhecido.


  O retrato sempre teve sobre mim essa força quase psicanalítica. Se sentisse preguiça, o retrato na parede dava-me energia. Se tivesse cansaço, alguma coisa da genética transcendia o retrato dando-me alento.  Se ficasse deprimida, bastava me lembrar e apenas a  lembrança servia para me levantar.  O meu coração liberou o toque que a minha mão não alcançou. A minha alma absorveu o que o meu cérebro não experienciou. De alguma forma, eu vi, compreendi, e aprendi com o casal do retrato.


Esse era o momento mágico que eu revivia, naquela manhã, quando entrou na sala a voraz representante da quarta geração do casal. Num cantinho da parede, timidamente,  o retrato. Na sala, ocupando todos os espaços,  foi logo dizendo: “Poxa, que quadro mais antigo... isso aí não está meio fora de moda, não?” E antes que eu respondesse já tinha ido. A pressa, sempre a pressa.


Olho para o casal e tento explicar, com protecionismo de mãe, que juventude é assim mesmo, não preserva valores, não tem historicidade, ainda não sabe nada de ternuras ancestrais. Só mais tarde, muito mais tarde,  estará preparada  para compreender que um galho existe porque faz parte de uma árvore, que foi alimentado por uma raiz, de cuja seiva vingou a vida. Só mais tarde, meu galhozinho verdejante, que hoje se agita arrojado, ganhará mansidão para reconhecer que a senhora de meia idade, que posa com dignidade e elegância no alto da parede, tem os olhos amendoados e a maçã do rosto saliente, a tez morena e uma cascata de cabelos negros, exatamente como ela mesma. E que o senhor de largos bigodes, de olhar sereno e firme, tem uma história de vida recheada de exemplos nobres, que permanecerão para sempre.


Enquanto houver alguém com sensibilidade, para manter pendurado na parede um velho retrato, enquanto houver o cultivo da lembrança, haverá também um modelo. Conversar com o retrato por alguns segundos, não romperá a barreira da morte, mas vencerá o obstáculo do tempo, da indiferença e do esquecimento. Por ora, é preciso compreender o meu galhinho verdejante, dando a ele a boa seiva do crédito, o vaticínio de que a fruta não cairá longe do pé. Afinal, coube-me  o papel de mediadora entre a garota e o retrato, entre o antigo e o novo. Estou a meio caminho, entre lá e cá. Sou um ser com duas referências e  entre duas dimensões.


Enquanto ela se afasta, explodindo em vida, sorrio saudosa para o meu passado e enquadro, com resignação, o meu futuro, em forma de retrato na parede.


18/12/1987


Ana Ribas


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OS CONTORNOS DA SANTA HIPOCRISIA


De que contornos é feita a “santa” hipocrisia? Se “hipocrisia” segundo o dicionário é a afetação de uma virtude, de um sentimento louvável que não se tem, de que maneira essa falsa devoção tem invadido os domínios da igreja, tem se sentado nos púlpitos, tem ocupado os bancos de nossas denominações, tem inspirado relacionamentos afetando a propriedade do sal e o brilho da luz em nossas congregações?


Se de sal e de luz deveria ser o consórcio evangélico, é necessário certo grau de ingenuidade para crer que a hipocrisia possa ser barrada na porta das igrejas com a simplicidade pragmática de uma disposição estatutária. É necessário certa coragem para admitir que “coando mosquitos e engolindo camelos” impedimos a aparência do “mais profano” e não conseguimos excluir a impostura e o fingimento escondido. É preciso certo distanciamento para reconhecer que entre muitas tribulações fraternais e entre muitos relacionamentos “tribulacionais” nos importa ganhar o reino dos céus.


Mas de que contornos se faz mesmo essa “santa “hipocrisia? De que maneira ela se disfarça e se impõe nos abraços e nas saudações distribuídas diplomaticamente entre a irmandade, no curto espaço de tempo compartilhado pela via do discurso, da fraternidade e da comunhão? Da mesma maneira como o homem se relaciona com o mundo através dos cinco sentidos, vendo, falando, tocando, cheirando, saboreando, a hipocrisia encontra, entre nós, o mesmo caminho sensitivo para se manifestar.


Muitas vezes, a hipocrisia se justifica e se reveste de interesse fraternal quando se fala, sem nenhum pudor, da miséria mais escondida através de pedidos públicos de oração em favor daquele que caiu da graça. Muitas vezes, a hipocrisia se manifesta na metamorfose do zelo, quando se examina o pecado do outro com o rigor de nossas convenções estatutárias e se toca na vida do irmão sem a interpretação subjetiva dos motivos de sua queda. Muitas vezes, a hipocrisia se enche de exortação quando discursa dos púlpitos e aponta o dedo para pecadores e pecadoras enquanto justifica o erro oculto do pregador. E, outras vezes mais, ela é o cardápio promocional da semana, servido com uma pitada de astúcia e outra de compaixão, variando a quantidade desses ingredientes segundo a simpatia ou a antipatia do interlocutor mais próximo. Ela pode ser ainda, o prato principal de um banquete, cujo cheiro e sabor foi produzido no caldeirão do inferno para ser servido com o molho santo da piedade fraterna. E, de tal maneira, encontra caminho nas fileiras da consagração religiosa, que só julga o procedimento do irmão pela via de mão única do juízo implacável, enquanto busca para si a misericórdia infinita de Deus.


Ah, de que contornos é feita a “santa” hipocrisia....! Se tivéssemos humildade e coerência para admitir que com as armas da dedicação e do altruísmo religioso muita maldade já se produziu no seio da igreja, seria bem mais fácil identificar os contornos ondulantes da “santa” hipocrisia. Reconhecer o momento em que ela serpenteia nos bancos e púlpitos denominacionais depende apenas de uma análise  de nossa atuação mediante uma única política de sistemática operacional: a quem estamos servindo no exato momento em que levantamos questões de ordem e enterramos princípios espirituais? Com quem estamos nos aliando quando julgamos o procedimento alheio pela via do legalismo religioso que mata, esfola, arranca a pele do cordeiro e o entrega como alimento para o lobo?


Contabilizar o mais sutil só é possível aos olhos daquele que conhece o coração do homem. Acresce que todo homem é um manipulador de resultados que favoreçam a integridade de seu coração. Some-se a isso a neutralidade implacável com que ele julga o mais miserável e teremos tocado os contornos da “santa” hipocrisia.
E quando obtivermos a consistência de sua fórmula diabólica no meio evangélico, lembremo-nos de que Jesus foi muito mais condescendente com o pecado declarado de prostitutas e publicanos do que com o pecado da hipocrisia oculta no coração dos religiosos. A esses Jesus chamou de “sepulcros caiados”.


Ana Ribas


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NEM ISSO DEUS IGNORA


Há dias em que me conscientizo de, que, verdadeiramente, Deus pode todas as coisas, até mesmo aquelas que eu não ousaria determinar. Há horas em que me refugio na plena convicção de que Deus tem todo o poder. Trata-se de um pensamento absolutamente óbvio, mas que só me ocorre em situações especiais. Nesses momentos, invade-me a devoção, a contrição, e na seqüência dessa lembrança, prostro-me diante da sua soberania, pequenina e indecisa como formiguinha, na superfície de uma parede: não me movo com a lógica dos que conhecem a direção, mas com a fidelidade cega daqueles que, perdidos nas múltiplas possibilidades do caminho, experimentam uma estranha espécie de gravitação.


Essa força gravitacional Newton não explicou. Newton explicou que “a matéria atrai a matéria na razão direta de suas massas e na inversa do quadrado de suas distâncias.” Conclusão deveras importante para os físicos, para os matemáticos, para aqueles que se dedicam ao estudo dos astros, do Sol, dos Planetas, mas absolutamente sem relevância para mim, em circunstâncias nas quais só posso depender da mão divina. Na brecha dessa proposição, encontro ocasião para contemplar o gravímetro de Deus, pesando cada acontecimento de minha vida “na razão direta de seus planos e na inversa do quadrado de minhas decisões...” Parodiando Newton, vejo Deus exercendo sobre mim a gravidade de seus desígnios soberanos.


Um olhar atento sobre a história pessoal de cada personagem bíblico, confirma uma lógica orbicular encadeada, cumprindo propósitos bem maiores do que a mera satisfação dos desejos humanos. Em cada pequena ou grande citação bíblica, acerca dos personagens mais famosos ou mais obscuros, nota-se a obra de um Criador Inteligente, dispondo circunstâncias pessoais da maneira como convinha ao seu Plano Eterno. De maneira que, a nós, seus servos, só resta a disciplina da vontade nas mútuas reações de aglutinação entre o que ousamos sonhar, de longe, para a nossa existência, e o que ele determinou, de perto, para protagonizarmos.


Nesta ocasião, não desejo realizar aqui uma apologia à predestinação. Outros teólogos talvez se dediquem a isso com muito mais propriedade do que eu poderia fazê-lo. Mas quero contemplar o determinismo conseqüente da história, como elementos inevitáveis, soprados por ventos fortes e sustentados por mãos poderosas.


 Quero me permitir essa visão porque ela me (des)acelera, me tranqüiliza, acalma as batidas do meu coração, baixa o meu metabolismo, traz repouso para minha alma cansada de tantas guerras.
E entre o mistério e a contemplação, ainda encontro ocasião para render a Ele toda honra e toda glória.


Quero glorificar o Deus “da plenitude dos tempos.” Há uma plenitude dos tempos em todos os atos permitidos por Deus, cuja execução não pode anteceder ou preceder o momento que Ele escolheu, desde antes da fundação do mundo.


Se esse momento é ou não ideal para você, se esse acontecimento é ou não agradável à sua alma, não importa tanto quanto o impacto da revelação de que tudo quanto está acontecendo, tem acontecido, ou vai acontecer à sua vida, foi permitido e cronometrado com a infalibilidade do Deus da plenitude dos tempos.


Se você está sorrindo, este é o tempo de sorrir. Se você está prosperando, este é o tempo de prosperar. Se você está descansando, este é o tempo de descansar. Mas se você está chorando, este é o tempo de chorar. Se você está experimentando todo tipo de tribulações, este é o tempo de suportar a disciplina de Deus, em nome de Jesus.


No calendário de Deus há uma programação que não atrasa e nem adianta, e ainda se cumpre, religiosamente, segundo objetivos eternos. Não há espaço para o acaso, a sorte, a coincidência, ou qualquer “carta de  baralho do destino”, porque “sabemos que todas as coisas contribuem conjuntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto.”( Romanos 8:28).


Pascal, em um de seus momentos de angústia existencial, desabafou, dizendo: “Quantos reinos nos ignoram!” Mas o Salmo 139 fala de um reino cujo Rei conhece o mais profundo do nosso ser. Fala de um imenso, contínuo e ininterrupto desvendar-se aos olhos atentos de um Rei que tudo vê:
“Senhor, tu me sondas e me conheces.
Tu conheces o meu assentar e o meu levantar: de longe entendes o meu pensamento.
 Cercas o meu andar e o meu deitar e conheces todos os meus caminhos.
Sem que haja uma palavra na minha língua, eis que, ó Senhor, tudo conheces.
Tu me cercaste em volta e puseste sobre mim a tua mão. Tal ciência é para mim maravilhosíssima: tão alta que não a posso atingir.
 Para onde me irei do teu Espírito, ou para onde fugirei da tua face? Se subir ao céu, tu aí estás; se fizer no Seol a minha cama, eis que tu ali estás também.
Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, até ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá.
Se disser: decerto que as trevas me encobrirão, então a noite será luz à roda de mim.
Nem ainda as trevas me escondem de ti, mas a noite resplandece como o dia; as trevas e a luz são para ti a mesma coisa....”


Em meio às dores, às dificuldades, às provações, podemos experimentar a espécie de paz que excede todo o entendimento e a certeza interior de que “Deus não nos ignora.”


Em situações de extrema fragilidade emocional, corremos o risco de dramatizar o cenário e supervalorizar o drama pessoal, a ponto de nos privarmos, eventual e momentaneamente, da visão de êxtase da glória de Deus.


 Nessas circunstâncias, é possível que avaliemos a eternidade pela ótica desfavorável do momento, desviando a visão do céu, enquanto prosseguimos caminhando para lá. Tudo isso é mera fraqueza humana. Mas perder de vista a onisciência, a onipresença e a onipotência de Deus é banalizar o Divino. Do alto de seus atributos inevitáveis, nem isso Deus ignora...


Ana Ribas


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MODELOS DO CORAÇÃO.


O coração está em festa. Isso é raro. Meu coração é sempre melancólico muito antes de ter um grande motivo para a melancolia. A Sandra vai chegar! E com ela Victor, Paulinha, e Wanderley.


Comecei os preparativos hoje, fazendo uma boa faxina na casa. Paulinha é alérgica ao pó e ao mofo. E eu gosto de janelas fechadas, sou do signo de escorpião. Escorpião gosta de ambientes na penumbra.


Não acredito em signos para previsão de acontecimentos do tipo hoje vai acontecer algo de muito bom mas acredito que, de alguma forma, somos influenciados em nosso temperamento, emoções e vontades, pela confluência dos signos, na hora do nascimento. Deus me perdoe, mas acredito nisso. Peço perdão porque não tenho nenhuma base bíblica para afirmar isso, apenas o faço baseada em observações. Sou curiosa, vocês sabem disso.


 Mas hoje não vou falar de signos. Até porque, quem tem o Senhor Jesus tem o signo do céu.


Hoje vou falar da expectativa de uma visita que só acontece raramente. Receber filhos, genros e netos, é uma celebração e uma responsabilidade. É uma celebração porque essa visita traz luz a cada cômodo da casa... e bagunça também. Não fica pedra sobre pedra, no final da história. Mas isso é vida. A vida traz em si uma tendência atávica para a desordem.


Os físicos dizem que, tecnicamente, seria possível fazer voltar o tempo, já que ele é apenas uma medida, mas por causa desssa tendência à desordem, é que o tempo não volta atrás.


Mas hoje também não vou falar de física. Que, aliás, é um assunto que não conheço.


Vou continuar meu reciocínio original: a visita da Sandra, minha filha primogênita. Já falei da celebração dessa visita e agora vou falar da responsabilidade.


 Mãe inspira um estilo. Mãe tem um peso muito forte nas pequenas e nas grandes escolhas da vida dos filhos. Se ela chega, e me encontra triste, abatida, desanimada, descabelada, vai se influenciar. De alguma maneira, um dia, ela vai copiar o modelo, quase instintivamente.


Então, preciso fazer as unhas, pintar o cabelo, e melhorar o layout. Começa por aí. O espírito precisa estar vibrante, sem nota de tristeza. Tenho que buscar a alegria aonde ela puder ser encontrada.


Depois, tenho que administrar a casa e a vida da casa. E depois, ainda o cardápio que vai à mesa. A comida precisa ser boa e gostosa. Sem gordura trans. Sem aditivos químicos. Sem colesterol. Alimentos naturais, kefir, noni, pão integral, arroz integral. Mesmo que tenha arroz branco e pão branco. Sei que ela vai olhar o que estou colocando no prato para comer, inclusive a quantidade.


Mais tarde, ela vai até o meu banheiro observar com grandes olhos de admiração, os cremes que estou usando no rosto, no cabelo, no corpo. E a lingerie que fica bem em mim e que me traz alguma beleza e muito conforto. O estilo de vida inclui um jeito de ser e de existir.


E o clima? O clima precisa estar gostoso. Dentro da casa, o frio não pode entrar. Nem o calor. Tem que ser tudo sob medida. Só não o amor... esse pode ser desmedido.


Tenho esse lance de responsabilidade existencial para com as minhas filhas. Sei que sou triplamente observada: pelas duas  filhas, e  agora, pela neta. Essa me segue com olhar de admiração, sempre que estou produzida. De chinelo, não vale.


Mas uma delas não apenas me observa, mas me ouve com muita atenção:  É a Sandra, que já alcançou a idade em que um filho dá ao pai e à mãe, o devido valor. Ela me suga enquanto me abraça. Suga a boa seiva.


Um dia, não muito distante, ela irá receber a Paulinha e o Victor, com seus respectivos filhos, marido e esposa. E irá se lembrar. Em em se lembrando, vai xerocar. Espero que a xerox seja boa e que ela supere o modelo. E que o modelo esteja guardado, com muita saudade, em seu coração.


Ana Ribas


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O QUE SOBROU DE MIM.


Ao telefone, ela me disse que não tinha importância, que entendia que eu era uma pessoa ocupada e por causa disso, não tinha tempo para recebê-la. Sua prontidão de espírito, deixou-me desolada. Eu não esperava essa reação e de repente, vi-me como nenhum ser humano gosta de se ver. Por causa desse sentimento, dei adeus à liberdade daquela tarde de terça feira. Abri a porta da minha casa, mesmo sem abrir o coração.


Ela viera de outra cidade, sem aviso. O que me incomodava não era a surpresa, era a lembrança. O saldo negativo de outras épocas. Eu a conhecia da sua infância. Crescera nesta rua, ao lado dos meus filhos. Já casada, começara a surtar. Tinha crises de ausência e de repente, embarcava numa viagem imaginária, sem data certa para voltar. Olhar fixo no infinito. Não comia, não tomava banho, não reagia. A família nos chamava para ajudar, mas sempre que chegávamos, como na crônica de Clarice Lispector, o trem já havia partido. A medicina parecia não poder fazer muita coisa. O marido, quando voltava do trabalho, dava banho nas crianças, fazia comida, cuidava da casa e do cachorro. Era um homem de poucas palavras, e olhava para tudo sem esboçar reação. Mas não me enganava.  Eu sabia que ele não agüentaria muito tempo.


Quando o marido não agüenta, os pais agüentam. Pai e mãe agüentam tudo. E, um dia, como eu previra, a casa caiu, a paciência esgotou, o amor acabou, e ela foi “devolvida” à guarda dos pais, em outra cidade, e, rapidamente substituída.


Um dos filhos foi morar com a avó paterna, o outro a acompanhou.


Era dessa época, que não nos víamos mais. O que não me impedia de ver a outra, usufruindo tudo o que fora dela. Por isso, o sentimento dominante era de tristeza e frustração.


Enquanto eu refletia rapidamente no passado, sem saber ao certo como recebê-la no presente,  ela entrou em meu escritório. Eu estava aqui, escrevendo um texto. Fazendo o que gosto, fazendo a crônica da minha vida.  Renunciei ao meu fazer para recebê-la.


A figura era quase surreal: vestido preto transparente, em pleno calor tropical, pele muito queimada pelo sol. Dias e dias sob o sol, cortando cana, fizeram dela uma anciã precoce, a pele do rosto desidratada, a expressão vincada. Só os olhos ainda eram verdes. Verdes!  Caminho fechado para o homem, mas aberto para Deus.


Percebi, em poucos minutos, que a psicose estava controlada, mas não debelada.
Que a vida fizera dela uma sobrevivente.
 Que o poço era mais fundo.
Que a qualquer hora, ela viajaria de novo, para bem longe de todos nós.


Conversamos sobre coisas concretas: sua condição não podia ser esmiuçada e minha impotência precisava ficar camuflada.
Soube que a sua casa era tão precária que não tinha porta.
Que a porta estava caída, esperando para ser colocada no lugar.
 Que o novo marido não tinha interesse em consertar a porta.
Que o filho mais novo estava envolvido com drogas.
Que a irmã entregara o filho mais novo para o pai e a internara num sanatório, diversas vezes.
Que o menino sempre voltava, como voltam os cachorros sem dono. Que a mãe continuava tendo crises epilépticas.
Que a última delas lhe custara uma queimadura no rosto.
 Que Deus era o seu refúgio na terra dos homens.
Que eu não deveria mencionar  a palavra “azar”, porque dava azar.


Entre uma lição e outra, - que eu assimilava, juro que assimilava, porque Deus usa os fracos para ensinar os fortes-   perguntei-lhe  porque estava casada com o atual marido, que me pareceu assim meio ruim de serviço.  Ela me respondeu bem humorada: “nem todo mundo tem a sorte que você teve para conseguir um bom marido”. Como se um bom marido fosse uma mercadoria preciosa. Será que não é?


 Foi a única comparação entre a sua e a minha vida. Mais não disse, e nem foi preciso. Escorreguei por entre os labirintos dessa mente, que ora passeava no claro, ora no escuro, evitando confrontações dolorosas.


 Depois dessa derrapada,  tudo foi lindo: aprumamos a conversa em direção à vertical do céu. Falamos de Deus e esse falar nos fez acreditar que um dia, tudo seria diferente.


Depois, mais tarde, servi o café. Caprichei na mesa, como merecem as visitas. Era muito,  muito pouco.  Revirei minha bolsa e lhe dei uns trocados. Por azar não tinha quase nada, nem trocado e nem sem trocar. Continuava sendo pouco. Em desespero de última hora, fiquei pensando no que poderia lhe entregar: ela me dera tudo por nada. Então,  procurei umas peças de roupa das minhas filhas, coloquei numa sacola plástica, entreguei para ela, e nos despedimos. A sensação de muito pouco, ainda estava, incômoda,  latejando, dentro de mim.


O ônibus não podia esperar.


Na porta, ela me abraçou e disse a frase que eu temia:  “muito obrigada por tudo o que você fez por mim.” Não sei se esse tudo referia-se ao passado ou ao presente. De qualquer forma, dolorosamente eu soube que esse tudo fora nada.


Abraçamo-nos de novo, sem pressa, e dessa vez foi como se nos despedíssemos pela última vez na vida. Então, ela bateu o portão e se foi. Eu fiquei. Fiquei sem saber o que fazer, com o que sobrou de mim.


Ana Ribas


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TRANS-SUBSTANCIAÇÃO.


Estou no meio da caminhada matinal, quando vejo naquele banco, debaixo de uma árvore, na lateral daquela via circular de atletismo, uma velha senhora de saia pregueada, meia soquete no pé, sombrinha vermelha em uma das mãos, num arremedo de colegial que, enquanto sonha com outro destino, olha fixamente para o céu.


Olhar para o céu com certa fixidez é uma atitude extremamente contagiosa, e como se não bastasse o contágio da curiosidade pura e simples, a mulher balbuciava alguma coisa que lhe emprestava uma certa veneração ao olhar iluminado. De modo que, conferindo bem, ainda que as pernas balançassem a um ritmo quase infantil, o compasso da devoção estampada no rosto impressionava muito mais do que a sua figura patética, frágil e inusitada.


A cada vez, que passava por ali, não podia deixar de perscrutar, simultaneamente, a mulher e o céu, esperando, a qualquer momento, alcançar o que ela via, numa dimensão desconhecida para os comuns mortais.


Não sei se para me eximir da dura rotina de desportista, não sei se pelo calor do sol que me causticava a cada volta, o certo é que desejei abandonar, ao meio, a prática penosa de cada dia e assentar-me ao seu lado, num exercício de transferência que me permitisse usufruir da sombra da árvore e da isenção de julgamentos que a idade lhe conferia: àquela altura da vida, a mulher podia balançar as pernas, olhar para o céu e até erguer os braços ao infinito, sem olhar para a periferia,  sem sentir-se ridícula, excêntrica ou folclórica.  Quando eu envelhecer vou usar púrpura era o que a personagem e  a situação me faziam lembrar, a cada volta.


Quando, quase uma hora depois, completei o circuito de cada dia, espantei-me com a sintonia dos nossos cronômetros. No momento em que arrematei os 8 km de caminhada, a anciã também concluiu o seu estranho devocional e, por uma dessas coincidências que só Deus explica, nos deparamos frente a frente, exatamente no vértice da pista que conduzia para fora do parque. Eu: vermelha, molhada, embebida em serotonina, cansada da caminhada... a anciã: branca, serena, tranqüila, rejuvenescida, em sua roupa de colegial. E o rosto...?! O rosto tinha um brilho que me fez lembrar, vagamente, Moisés descendo o monte, depois de estar dias a fio na presença de Deus.


De repente, a sombrinha vermelha, que lhe servia de apoio para a perna claudicante, transforma-se num cajado tosco e rude e lá vinha Moisés, de saia pregueada, meia soquete e andar hesitante; na mão, o cajado da autoridade delegada; no rosto, um brilho púrpura de mensageiro do céu.


Quando dois santos se encontram não importa muito quantas gerações os separam... não importa muito quantos usos e costumes estejam (des)usados em relação um ao outro. O reconhecimento é instantâneo: no momento em que nos olhamos, nos saudamos com a paz do Senhor! Então, quando, finalmente, indaguei que mistério havia no mais alto céu, respondeu-me que estivera pedindo ao Senhor uma porção sacudida de força que lhe permitisse completar a caminhada: faltavam-lhe exatos 4 km para alcançar a porta de sua casa.


Solenemente, abri a porta do meu carro para ela, mas quem entrou foi Moisés. E quando Moisés se assentou, perplexo, no banco da frente, compreendi que, de tal maneira, era recíproca a celebração, que eu me trans-substanciara num anjo capaz de fazê-la alcançar, com carro de fogo, em segundos, a Terra Prometida. Ela sorria, eu me sentia abraçada. Ela louvava, e a consciência da presença de Deus nos invadia reciprocamente. Com profunda reverência, sem nenhuma liturgia combinada,   partilhamos a alegria íntima de saber que Deus lá no céu, nos via aqui na terra, o olhar brilhante, o coração apaixonado, a consciência do divino tão próxima, nos fazendo conhecer uma espécie de júbilo interior que nenhum outro ser poderia compartilhar. Quis entender e não pude: quem ali era objeto do amor de Deus?


Quando a porta do carro se fechou, e o portão da casa se abriu, depositei as asas no banco de trás, mas ainda conservei comigo a vida distante, um olhar comprido para o infinito, uma ternura, um sorriso, um jeito de olhar em volta e ver o invisível.


Ana Maria Bernardelli é autora dos livros
“Não há Jerusalém sem Gólgota”
e “O Vaso, o Tesouro e a Fera”.


Ana Ribas


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