Crônicas 6






ANTES QUE VOCÊ SE VÁ, EU ME VOU.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI



Há dois jeitos de contar a vocês que fiz um bolo. O primeiro é assim: estava com vontade de comer um bolo. Mas não daqueles,  comprados em confeitaria, que aparecem na vitrine mascarados, com uma  meleca caramelizada. Eu queria um bolo nu, desses bem defeituosos, cujo cume de tão irregular lembrasse o Aconcágua sem neve; cujas laterais, tivessem as cores do povo brasileiro: claro aqui, moreno ali, negro acolá. Plasticidade, entende? Um bolo tem que ter a plasticidade de uma obra de arte, apresentando os veios.

E tal bolo era para o chá da tarde.

 Então, fui até o armário e vi  - prá variar - vi que  faltavam os ingredientes.  Nada que Nalva, com a sua bicicletinha mágica, não resolvesse. Nalva é tão rápida no manche da sua bicicleta, que quando se pensa que  está indo,  já voltou.

Voltou com a farinha  e o fubá, mas o bolo  ainda tinha que ser feito. A alquimia começava.  Fiz  o bolo e  também uma baita bagunça na pia da cozinha, no chão da cozinha, na janela  da cozinha, na geladeira da cozinha. É que na hora de ligar o liquidificador, e bater a massa, esqueci de colocar a tampa, e voou massa para todo lado.

 Nalva só disse assim: "Eita Ana Maria Ribas, é por isso que Deus te colocou para escrever. Ele sabia que você só daria pra isso mesmo."

Nalva é assim: me chama de Ana e eu gosto; me diz umas verdades: e eu aceito; me dá umas broncas e eu nem ligo.

Outro dia, ela queria  a minha atenção, que de há muito lhe está sendo negada.  Queria contar algumas coisas particulares da vida dela, que acaba sendo um pouco a minha vida, de tanto que gosto dela. Mas eu estava escrevendo, num processo de intensa criação literária, ( que chic, meu Deus!), num processo  daqueles que me trazem a ilusão de que, um dia, com muito suor,  ainda serei escritora. O estilo eu já tenho.

Nesse dia,  Nalva começou a entabular a conversa, e eu nem ouvia, batucante que estava.  Só dizia: "hanhan, sei." E continuava escrevendo, sem registrar o que ela falava. Minha esperança era que desistisse.  Ela desistiu, mas antes me perguntou mal humorada: -"sua bunda não dói de tanto ficar sentada?" Eu respondi, um pouco menos rasa  e mais reflexiva: -"Não, Nalva, o que dói é outra coisa." E ela toda mal intencionada: -"Ah, quer dizer que a dor atravessou e já chegou ali?"

Eu falava da dor da consciência, da dor da alma. Essa, às vezes, me dói um pouco. Olho em volta e há tantas coisas querendo conversar comigo: minhas gavetas, meus armários, meus amigos, minhas vizinhas. Por vezes, Silvia, Ivo. Todos condescendentes e compreensivos comigo.

Esperem-me, até quando, não sei, um dia voltarei.

Então, foi assim: bati o bolo, assei o bolo, comi o bolo, o bolo fez digestão e o milagre da metabolização aconteceu - incorporou-se em minhas células, o povo brasileiro e o Aconcágua sem neve.

 O resto, nórdico demais, Nalva levou para comer na casa dela.

Esse é um dos jeitos de contar a vocês que fiz um bolo.

O outro jeito, fica para outro dia: texto comprido ninguém lê.

 Texto comprido  é lido pelo cursor do lado direito da tela. Escorrega feito tobogã, adeus, tchau, já era, tenho mais o que fazer do que ficar diante desta tela. 

Antes que você se vá,  eu me vou.

Ana Ribas

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O PARTO DA PORCA.

ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.

Estava bem perto do chiqueiro de porcos, quando ouviu o grito. Era um grito de fêmea. Sabia, porque sabia, que era um grito de fêmea. Rápida inventou um pensamento: "a porca grita porque está morrendo." Pensamento que se decompôs quando - ao invés da morte- viu a vida, a vida brotando das entranhas, e se derramando rasteira pelo chão. Seis ou sete, eram muitos porquinhos engomados, que mais pareciam filhotes de ratos porque eram pequenos e repugnantes.

- Eu vi, eu vi, a porca arrebentou, tá saindo um monte de ratinhos lá de dentro.  Eu vi! Gritou para  a mãe, que trabalhava lá dentro na velha máquina de costura.

A mãe, imediatamente,  mandou que fosse logo  para dentro de casa  e ela obedeceu. Saiu correndo, como se ameaçada por algum perigo real.  Mas já era tarde.

A vida. A vida,  libertando-a da teia de aranha secreta para prendê-la com ferros. O coração batendo em cada pensamento, sempre supondo, mas tendo cautela. E agora, sem cautela, o que faria?  Era toda desamparada.

Naquele dia, o primeiro encontro imprescindível com a maternidade biológica: os porquinhos não eram trazidos pela cegonha. No trabalho de parto da fêmea,  defrontara-se  com um dos mistérios do mundo: a necessidade que têm as coisas de serem criadas.

De repente, o olhar bondoso da mãe, comprometido pelo pecado, a santidade violada. - Então foi assim?- Ela pensou. Do meio das pernas e não do bico da cegonha? Ela se perguntava.

Teve medo, curiosidade e vergonha, mas permaneceu calada.

-Não devia ter-se distraido, tanto lugar para brincar: havia o pomar! E havia o depósito com tantos sacos de arrroz, uma montanha para subir e descer quando quisesse. - Por que fora ao chiqueiro, por que? Por que?

 Desprotegida, percebeu que há um longo tempo, tudo já existia, e,  para compensar a descoberta, o jeito agora era distrair-se com qualquer coisa. Mas com qual coisa?

O  mundo se tornara cinzento como aquela massinha que se mexia, saindo da porca.  O que descobrira vinha mesclado de um sofrimento leve e interrupto, como uma dor de barriga que dá e passa, que dá e passa, e assim permanece o dia todo. Não adiantava espremer, a dor de barriga não passava e nem saía.  No intervalo das dores, ela disfarçava. Assobiava uma cantiga, que a assobiar aprendera, justamente no dia anterior. Era um assobio fraco como o gemido da porca. De longe, ouvia.  

E assim passaram as primeiras horas, um martírio a passagem do tempo, querendo libertar e ao mesmo tempo reter a informação que lhe chegara sem que houvesse sequer perguntado.

Agora, agora que já sabia, a descoberta lhe era, ao mesmo tempo,  súbita e permanente, e dessa maneira confundia-se toda, nesse movimento de voltar, enquanto ia. Como se caminhasse de costas.

Fechando os olhos, e balançando a perna direita, cruzada sobre a esquerda, via-se mocinha e a esse pensamento concedia-se tranças longas como Rapunzel. Desejava presentear-se com essa alegria. Mas óh!!! Subitamente entendia que  a paz não dependia de um corpo, mas da compreensão das pessoas que, olhando para ela lhe dissessem com bondade: - "deixe-a, ainda é uma menina."

Então lhe parecia que, para o perigo que a espreitava, só havia uma solução: encher-se de coragem e crescer, abandonar as descobertas confusas e de olhos abertos conhecer a verdade sobre o mundo todo. E finalmente poder dizer: - Eu sei, seu sei! Eu sei como nascem os porquinhos,  os cachorrinhos, os bezerrinhos e os bebezinhos.

Por enquanto era só isso que sabia. Eles já lhes  nasciam prontos. Por enquanto.

Essa idéia clara e límpida, quase lhe cabia na palma da mão. Só o corpo, o corpo lhe pesava em perplexidade, e parecia ter subitamente crescido  desengoçado e indeciso, como bezerro depois do parto.

Mas o que acabara de nascer, naquele dia,  foram doze porquinhos.

Ana Ribas

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DINHEIRO NÃO ACEITA INJÚRIA.

ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.


Sinceramente, não sei se a frase é minha ou se a ouvi por aí. Mas seja como for, o que conta é o espirito da letra: dinheiro não aceita injúria mesmo! Faça pouco caso dele hoje, gaste-o agora de maneira frívola e irreponsável, e um dia, no futuro, receberá a cobrança pela injúria com que o tratou. A conta irá parar na sua casa, e o encontrará aonde você estiver: alguns na metade da vida, outros no fim, outros no pós vida. Quem já não ouviu a famosa frase: "meu avô foi dono de tudo isso?" E se foi o bisavô, cujo envolvimento afetivo não tenha alcançado o bisneto, poderá ser assim complementada " que velho burro, jogou tudo fora."

Claro que não se inclui aqui a minoria de privilegiados que podem sair por aí rasgando dinheiro sem a menor preocupação com o futuro. Mas até mesmos esses, podem ser surpreendidos como exceção, em meio às suas regras nababescas. Uma exceção no meio delas foi Jorginho Guinle. Ele mesmo admitiu que gastou tudo com festas, viagens, mulheres e esqueceu-se de reservar um pouquinho para o final da vida. Que prolongou-se a ponto dele depender de favores dos amigos. Jorginho acabou por nos deixar uma lição, a todos ricos e pobres, bem ou mal nascidos.

Este artigo não foi escrito para esses ricos, foi escrito para nós, classe média e classe baixa. Essa questão de divisão em classes sociais é flagrantemente escandalosa, desde o tempo da Revolução Francesa, mas ela existe. Somos todos compartimentados dentro do sistema financeiro mundial.

Hoje a mobilidade social além de mais frequente é recebida com discrição. O pobre pode ascender e ser recebido no mundo dos novos ricos, sem grandes discriminações. Antigamente, não era assim. Estava escrito na sua cara: você é pobre de marré de si e para adentrar ao mundo dos ricos tinha que exibir a carteira, o dinheiro e a pose.

Lembro-me que éramos recém casados, Ivo e eu, e fomos à Foz do Iguaçu, pela primeira vez. Sem filhos, um dinheirinho bom no banco, escolhemos o hotel mais bonito que encontramos, e nos encaminhamos, despreocupadamente, para o balcão de recepção. À nossa pergunta se havia vagas, a recepcionista respondeu sem a menor cerimônia: tem vaga, mas a diária é X. Ou seja, ela viu na nossa cara, que éramos dois pobretões tentando usufruir de um lugar que, naquele momento, não nos pertencia.

E nós nem nos ofendemos. Entreolhamo-nos supresos, agradecemos, viramos as costas e saimos rindo da humilhação. A diária era cara mesmo! Mas nós tínhamos condição de ficar ali. Por que não ficamos? E por que não nos ofendemos com a moça? Por que brincamos um com o outro dizendo que a culpa era da camisa velha dele ou da minha blusa amarrotada?

Porque havia embutido em nós o sentimento de que, o caro e o barato, depende muito menos de dinheiro e muito mais de bom senso. Não seria sensato torrar aquele dinheiro todo em uma única noite. Como continua não sendo sensato torrar o dinheiro todo em uma única vida. Mesmo que você não deixe herdeiros. Ainda que os beneficiários não sejam de seu sangue, sempre haverá pela humanidade afora uma boa causa em que investir. Investe-se aqui e recebe-se com juros no céu. É assim que penso.

Fomos para um hotel mais barato. De repente, aquela moça, nos despertou para a fogueira da nossa vaidade, recém inaugurada, e nos ajudou a apagar o fogo que já estava aceso. Aprendemos que menos pode ser tão bom quanto o mais, e custa metade do valor.

Aquela viagem acabou, mas o bom senso, felizmente tem-nos acompanhado vida afora. Não fizemos extravagâncias quando podíamos fazê-las e muito menos agora quando não podemos mais.

Eu creio que hoje- mais do que nunca- é um tempo em que os homens deveriam examinar muito bem o que fazem com o seu dinheiro. E as mulheres deveriam ser parceiras na hora de administrar as finanças do casal, mesmo que cada um deles tenha a própria independência.

Minha experiência de vida me autoriza a dizer que cabe a nós mulheres ter compaixão. Apenas isso: ter compaixão. Ter compaixão diz tanto, não é verdade? Pode-se ter compaixão pelo mendigo que passa à frente da nossa rua, mas pode-se ter compaixão também por aquele que recebeu a sentença genérica no Éden e que está ao nosso lado. A sentença prolatada foi pesada, e nós estávamos incluidas nela: " porque deste ouvidos à voz da tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses, maldita é a terra por tua causa: em fadiga obterás dela o sustento durante os dias de tua vida."

De alguns anos para cá a maturidade me trouxe mais despojamento. Aprendi a me virar sozinha em muitas coisas, nas quais dependia de ajuda externa, e consequentemente, hoje, dependo de menos dinheiro para as minhas necessidades básicas. O básico passou a ser apenas isso que é mesmo: básico. Paradoxalmente, não me tornei mais apegada ao dinheiro. Eu não como dinheiro. Mas a consciência de que nos avizinhamos de dias maus me fez minimalista.

Ontem uma manchete no site do UOL me chamou atenção: O secretário do Departamento de Bem Estar Social do Estado de Bihar, na Índia, recomendava aos cidadãos pobres daquele país que poupassem grãos, comendo ratos. Vijay Prakash disse que "depois de muita pesquisa e muito trabalho de campo", chegou-se à conclusão que ratos têm muita proteina e matam a fome.

E eu depois de "muita pesquisa e muito trabalho de campo" cheguei à conclusão de que não se deve gastar com o filé mignon de hoje o rato que talvez, você tenha que comer amanhã. Ou seja, pelo andar da carruagem, pelos sinais apocalípticos que a natureza nos envia, faltarão ratos.

Ana Ribas



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O PRIMEIRO SOUTIEN.
ANA MARIA RIBAS.


A escola era perto, tão perto que se faltasse à aula, de dentro de casa ouviria a voz do professor.

O povoado se confundia com o silêncio, no dia que acabava de nascer.
Ainda deitada na cama,  o pensamento aceso era a sua urgência de vida.  Paralelas, as vidas, a de dentro, e a de fora. Fechava os olhos e num instante ganhava asas,  como se flutuasse no ar, para no instante seguinte, obrigar-se a regressar.
Era hora de acordar!
Que vestido usaria hoje para disfarçar o corpo que estuava debaixo dos botões? Ai como ela queria livrar-se daquele aperto.

Recusara o soutien que a mãe lhe trouxera da cidade, num misto de desejo e vergonha, pois nele vira a infância repentinamente ameaçada. Porque usar um soutien- justificava- usar um soutien só podia ser tão triste quanto deixar de correr pelos campos, recolhendo as flores das paineiras e as abobrinhas que cresciam sozinhas. Como ela crescera.

Usar um soutien só podia ser tão penoso quanto observar Dona Mariana que vinha toda semana à sua casa, trazer para a mãe os figos verdes e maduros.

Era-lhe muito penosa a vinda de Dona Mariana, o peito caido sobre a cesta de figos maduros, um despudor de nem-te-ligo, na hora de  amamentar o filho bezerrão bem diante do seu espanto.

Jamais, jamais! - Ela pensava.
A mãe lhe estendera a peça com humildade, quase com devoção, adivinhando nos seus olhos a vontade:
-Use, minha filha, a mãe comprou para você. Vista, é seu.
- Não quero, mãe.
- Usa bobinha, vai te deixar mais confortável.
- Não quero, mãe, já disse. Não quero- impacientou-se ainda mais porque a palavra “seio” lhe lembrava a vaca com as suas vaquinhas,  a  porca com as suas porquinhas, a  cachorra com as suas cachorrinhas,  Dona Mariana com seu bezerrinho, e o susto que sentia toda tarde, na hora do banho, quando se lembrava de que  estava crescendo como crescem os mamões.

Era sempre muito tarde quando finalmente se vestia. De casa para a escola, tão perto como um pensamento. Se não fosse, poderia jurar que tinha ido.

À frente da escola, o canteiro com margaridas. Dentro da sala, sobre a mesa do professor, um vaso com uma margarida.

O professor dizendo com voz grave: - Pois façam, então. A isso se chama cópia do natural - ele explicava.

 A voz no fundo da sala era dela:
-professor, posso  desenhar um vaso com  uma rosa vermelha, assim bem vermelho carmim,  em vez de um vaso com uma margarida branca e sem graça? Não falava por mal, falava por que acabara de descobrir o pensamento. 

 Ele estava já distraido e nem parecera ouvir, mas ela repetiu a pergunta e ao repetir, toda a sala ficou encantada,  porque se ela pudesse fazer uma rosa em vez de uma margarida, então todos fariam uma rosa em vez de uma margarida.
- Seria isto uma rosa ou uma margarida? – ele exibia a margarida de duro talo, olhando fixo para ela.
E antes que ela respondesse, arrematou secamente:
- limite-se a copiar o que está à sua frente. Isto aqui é cópia do natural, não cópia de alguma coisa da sua cabeça.

Pensou rápido: à minha frente está um professor branco e sem graça como uma margarida desfolhada.
Pensou em desenhá-lo como um vaso, com margaridas brotando-lhe dos olhos, do nariz , da boca e de todos os redondos orifícios.
Mas obediente, copiou, porque a sua rebeldia não era contra as ordens e os decretos. Era contra os soutiens.

Ana Ribas

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NÃO ME MATEM.
Ana Maria Ribas.
A sociedade tem essa prerrogativa de derrubar os  santos que somos. Derruba,  faz picadinho com a nossa santidade, depois vende na feira das vaidades e parte em busca da próxima vítima.

Alcançar a santidade não dá muito trabalho. Não dá mesmo.   Ser santo,  é apenas um estágio que começa a ser atingido depois de  uma compreensão súbita. Que vai evoluindo gradativamente.  Não é um estado a que se chega depois de muito êxtase. 

Derrubar os santos também não é tarefa muito difícil. Uma distração, uma veneração exagerada, um passo em falso, e  o santo já era. Com ou sem andor.

Compreendi isso no ano de 1994, quando matei o meu primeiro  santo.  Com as minhas mãos, com essa que vos escreve agora, eu  matei aquele santo e  Deus teve que fazer de novo  o que já estava em estado bem adiantado de santificação.

Esse homem morava por aqui mesmo, carpinteiro de ofício.  Quando não estava na função, gastava  horas lendo a Bíblia, orando, e buscando intimidade com Deus.

  Essa intimidade crescendo, também fez crescer a fila daqueles que  vinham buscar um pouco das migalhas que caiam da sua mesa. Eu era uma delas. Faminta e migalhenta convicta, vinha sempre buscar a minha ração acostumada.

Foi quando um grupo de pessoas começou a  reunir-se lá em casa para orar e estudar a Bíblia. Todos com fome. Um grupo de pessoas com bom poder aquisitivo, mas com fome,  porque rico também tem fome.

Fui eu quem  apresentei a eles o carpinteiro que chegou  pela primeira vez, tímido, com grandes olhos de espanto, ele que já era, por natureza, um espantado.

Assim  começou:   foram tantas as manifestações do poder de Deus entre nós, foram tantas as curas, os milagres, as revelações, que ninguém fazia mais nada, sem antes ouví-lo. E ele sempre nos remetia à Bíblia, à Palavra de Deus. Não era um guru, era um santo. Um homem de poucas palavras e muita sabedoria.

Mas, um dia, eu tive a idéia fatídica: por que não fazer dele o nosso pastor? Poderíamos tirá-lo daquele casebre em que morava, dar-lhes - a ele e à família-  uma casa digna, vestir sua mulher, seus filhos, oferecer um carro para que ele pudesse orar pelos doentes da cidade toda, enfim, livrar esse santo do trabalho do mundo e  ocupar o seu tempo com o trabalho de Deus.

E foi o que fizemos. Alugamos uma casa, compramos móveis- todos!- roupas para toda família, um carrinho popular à disposição em sua porta, e um salário que simbolizava bem umas cinco vezes o que ele ganhava como carpinteiro.

Assim também começamos a matá-lo. Com uma posição que ele nunca tivera, com situações que ele jamais alcançara, com bens materiais que ele nunca sonhara. Não com tanto. Era muito. Era demais. Era uma enxurrada de coisas como aquelas  que o diabo oferecera a Jesus, se prostrado o adorasse. E o Senhor Jesus recusou.

Mas o nosso santo era feito de barro comum, do pó da terra. E não resistiu. De santo que  era, passou logo a ser cidadão brasileiro. Daqueles, bem deslumbrados. Abriu uma conta bancária e saiu gastando na cidade toda, fazendo dívidas, e  alegando o status de ser o nosso pastor.Que ele era. Ninguém tinha, como ele, o dom de orar e receber revelações do céu.

Um dia, levei até lá uma amiga que estava destrambelhando de vez. Queria separar-se do bom marido que tinha e cair nos braços do outro, um safado. Ela me pediu conselhos, eu dei. Mas sabia que era pouco. Ela precisava ouvir a voz de Deus bradando contra aquela idéia. Dizendo: "Eu sei, Eu vi, ninguém me contou. Sei porque sou o seu Deus. "

Levei-a até o pastor, para que Deus falasse.  E fiquei atenta à  repreensão que viria do alto. Ligeiramente ausente dali, esperava o "tombo" dela, não o meu,  tão boa  a sensação de nada temer e nada  esperar. Raabe era ela, não eu. Eu era Esther, Rute e Débora, mas Raabe era ela.

De repente, interrompendo a oração que fazia,  ele  voltou-se para mim. Chorando muito, o profeta, entregou-me uma sentença terrível: "Ana Maria, você vai passar por uma dor tão grande, mas tão grande, que homem nenhum poderá te ajudar. Só Deus, minha irmã, só Deus."

 Lembro-me do meu grito de desespero. Ainda hoje eu o tenho dentro de mim. Um torpedo vindo do alto acabara de ser disparado contra o meu coração,  e eu sabia - ah, como eu sabia!-  que, um dia, ele chegaria à terra. Era o ano de 1994.

Mas a vida continuava.

O santo orava por nós no lugar santo, mas no lugar profano, as contas cresciam. As inutilidades domésticas começaram a se acumular em sua casa. Aparelho de som. Mais uma televisão. Batedeira. Mais uma geladeira. Cortinas de duas cores: roxa e amarela. Mais uma bicicleta para cada filho.

Alguns meses depois o santo estava morto e nós com uma enorme conta para pagar na praça. O santo depois de morto, sumiu. Foi ser carpinteiro em outras paragens, que da carpintaria jamais deveria ter saido.

Aprendi a lição. A lição de não idolatrar os santos e nem humanizá-los com a vida fácil dos profanos. Que santo precisa ter a fartura  regulada, como o maná que Deus envia do céu a cada dia. Santo precisa orar para que o corvo traga a comida na caverna. Santo precisa de carruagem de fogo como a de  Elias e não de  gol bola.

Perdemos o nosso santo. Que rapidamente,  alugou um caminhão, colocou todas as coisas em cima e foi embora. Uma grande mudança, ele que chegara ali com uns trapinhos.

No início do ano de 1995, o torpedo que viria do alto sobre a  minha vida,  chegou à terra. Não houve nada que pudesse evitar o que já estava determinado, desde antes da fundação do mundo. Enquanto eu chorava, lembrava. Ah, como eu lembrava!

No final de 1995, recebo uma ligação a cobrar do Mato Grosso: era ele. Pensei que estivesse  me ligando porque soubera, porque quisera solidarizar-se conosco. Notícia ruim corre como o vento.

Não sabia. Ficou confuso, gaguejante, perdeu o rumo,  não disse mais nada.  Então lhe fiz lembrar a profecia que ele me entregara no ano de 1994: ele também não se lembrava.

A profecia era minha. Meu também era o processo de santificação que, em mim, apenas começara.

Não me matem eu vos imploro.

Ana Ribas

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COISAS QUE UM CUBO ENSINA.
Ana Maria Ribas.


Há muito tempo, eu sei que nem sempre o que parece ser verdadeiramente é.

E o que é - pode ser sob vários ângulos de verificação e relatividade. Ou seja: nada é absoluto. A verificação e a relatividade é determinada pelo  observador.

O problema é que somos treinados para olhar de um jeito só. E normalmente, com um certo estrabismo preocupante. Olhamos daquele jeito enviesado, e se alguém quer nos corrigir o viés, refutamos  ajuda.

Também somos míopes: só enxergamos de perto. E isso a história nos ajuda a verificar.  A reconstrução da história de um povo é comprometida pelo estrabismo e pela miopia coletiva. Quem conta, conta do seu jeito míope, e esse jeito é constituido pela informação que recebeu, pelo ângulo que escolheu enxergar e pela abertura da lente: quanto mais fechada, mais absoluta; quanto mais aberta, mais relativa. Sem, esquecer que estamos falando de um observador estrábico.

Vou traduzir  de um jeito sem muitas firulas porque já percebi que você gosta de uma leitura ágil,  com certo humor, uma dose de introspecção e outra de objetividade. Exigente você, mas tentarei.

O tema de hoje é:  tudo tem -pelo menos- dois lados. E a humanidade tem o costume de mirar apenas o lado que escolheu. A mirada é curta, unilateral e pouco profunda, além de míope. Miopia é a incapacidade de ver com nitidez as coisas de perto.

  Do ponto de vista histórico,  carregamos essa carga genética: estrabismo, miopia e com o passar do tempo, a doença do alemãozinho se instala, fecha o diagnóstico e babau. Se não houve isenção no passado, de memória recente,  no futuro, a tendência será uma generosidade nebulosa, confusa e equivocada.

E assim nascem os mitos: o mito ganha força quando todos resolvem mirar de um lado só, enxergando mal pra caramba de perto, e com potencial para Alzhaimer, de longe. Triste prognóstico, do qual poucos humanos escapam. Bom para os mitos, ruim para nós.

Agora, vamos aos fatos: ontem recebi um telefonema pedindo para eu escrever sobre uma figura humana  que existiu em nossa cidade há cerca de 12 anos atrás. Chamava-se Irmã Ana e foi uma religiosa da ordem das Filhas da Caridade, que viveu aqui desde os primórdios. Uma polonesa cruzeirodoestana.

Irmã Ana foi realmente uma figura excepcional: dedicou toda a sua vida aos pobres.  Não foi uma religiosa típica de claustro, de convento, de festas para angariar fundos, de envolvimento com a cultura, ou de gastar tempo em naves de igreja.  Foi uma religiosa de favela e de carroças. Usava o hábito tradicional das monjas e em dias de chuva colocava uma galocha, e uma capa preta de plástico, mas não descia da carroça. Que a levava para cima e para baixo, sempre trotando com certa pressa,  a serviço de um de seus pobres.

Acostumados que estávamos a essa figura estranha, uma monja tremulando ao vento em nossas ruas, a bordo do mais velho modelo de carroça,  ela não nos chamava atenção. Apenas dizíamos:  "lá vai a irmã Ana." Esse era o nosso pensamento acostumado.  Nem mesmo a excepcional figura humana recebia uma atenção maior dos poderes constituidos. Naquela época, não havia programas sociais como os que existem hoje.  Irmã Ana era uma madre Tereza sem holofotes. A nossa solitária madre Tereza de Calcutá.

Quando recebi o pedido para escrever, aleguei o tempo exíguo.  Mas eu sabia que, como tudo tem dois lados, eu mostrara apenas o que me convinha. O outro era: "eu não quero escrever." Não porque essa pessoa não merecesse a minha homenagem. Não porque escrever sobre ela me fosse uma tarefa difícil: coisa de cinco minutos me bastariam para dar conta do recado.

Mas recusei  por não compreender: pareceu-me uma afronta para com a memória da irmã Ana, que várias pessoas pudessem dizer assim: "eu tenho aqui um ofício das Congregação das Filhas da Caridade  e elas querem saber porque você escolheu a irmã para dar nome à escola especial" ( escola especial do qual fui diretora durante 20 anos).

Meu pensamento imediato foi: não vou poder publicar o pensamento imediato. Mas a  irritação foi visível: como alguém poderia ousar perguntar por quê Irmã Ana foi escolhida?

Irmã Ana foi escolhida pelo óbvio ululante, porque ela foi diferente de todos os seres humanos e de  todas as demais filhas da caridade que passaram por aqui. Porque ela dedicou-se integralmente à missão que escolheu viver. Ponto final.

Do outro lado minha amiga, educadamente,  tentava me acalmar: -Não, Ana,  sabe o que é: é porque  estão fazendo um levantamento de todas as religiosas que deram nome a ruas, escolas, instituições e precisam de um papel oficial da escola com o histórico.

-han, han.

A  explicação só fazia aumentar minha irritação: enquanto ela vivia,  ninguém veio  verificar o nobre trabalho que  fazia? - eu me perguntava. Porque se soubessem, não precisariam perguntar. - eu me respondia.  Mas agora, morta há mais de dez anos,  querem um papel timbrado narrando o histórico da finada? Para  a posteridade?  Para a galeria dos que foram excessão?

 Uma excessão que na época incomodava, tantos eram os pobres na porta, mas hoje está prestes a entrar para a história como um retrato suave na parede amarelada do tempo.

 Tudo bem, eu sei que é assim que se preserva  a cultura de um povo e consequentemente a sua história: escrevendo. Mas que bom seria se não apenas escrevêssemos a história, mas também ajudássemos a fazer essa história quando ela nos parece digna de figurar numa galeria no futuro.

Que bom!

Por causa da minha amiga, e por causa  da doce lembrança que me ficou de irmã Ana, escrevi. Frases curtas e contundentes, algumas das quais trancrevo aqui:

"Ela não foi escolhida por viver no átrio exterior do templo. Raramente via-se irmã Ana no átrio exterior do templo porque aonde  estivesse, sempre estaria no lugar santo ou quiçá no lugar santíssimo.
Ela não foi escolhida por estar entre nós. Foi escolhida por estar acima e além de nós.
Ela não foi escolhida por isto ou por aquilo. Foi escolhida porque Deus a escolheu. Deus mesmo a separou  entre as mulheres, cheia de graça como Maria, preciosa como Ana, diligente como Rute, profeta como Débora, linda como Esther.
 Ela foi escolhida por ser a serva do Senhor."

O fato objetivo que narro, nesta manhã, foi esse. Mas, lembrem-se os  lados de uma verificação precisam ser relativizados antes da síntese. Teria eu feito a relativização? Ou só a síntese?

No hora do jantar de ontem,  comentei o episódio com o Ivo. Ele me disse: -"Ana, Irma Ana ajudou a muitos. Mas entre esses muitos, alguns se aproveitaram da bondade dela,  outros  se encostaram nela e deixaram de trabalhar."

Ou seja, viraravam vagabundos. Pobres, esfarrapados, maltrapilhos, mas vagabundos. A comida chegava de qualquer jeito, o remédio também, a roupa também. Ela tirava do corpo para dar: consta-se que nem pijama tinha. Os pobres levaram os seus pijamas e os seus cobertores.

A idéia começou a me incomodar. Fui verificar in loco, no rastro de alguma coisa que me pudesse acalmar.  Gosto de sínteses.

Sai  um pouco mais cedo, antes de ir pregar, e passei pela favelinha que irmã Ana construiu. Parei o carro, desci e entrando pelo meio dos bacarros fui perguntando: -"alguém aqui se lembra da Irmã Ana?

Só duas pessoas que estavam ali, naquele momento, lembravam-se. Uma, que havia sido muito próxima,  estava na missa. A outra - um rapaz de nome Armando- se dispôs a me contar o que lembrava. Ele era  criança, na época. Lembrava-se  que em dias de feira livre, irmã Ana passava com a sua carroça e as crianças subiam.  Iam de barraca em barraca, recolhendo as sobras e voltavam para a favela, ela mesma distribuindo tudo com equanimidade.

 Esse era o seu lembrar. Um lembrar de festa: festa do passeio na carroça,  e festa da comida na mesa. Perguntei se estava trabalhando: disse que fazia bicos. Perguntei quantos moradores daqueles  bacarros são os mesmos de antigamente. Poucos. A maioria vendeu.

Há comercialização em favelas e elas acontecem, quase sempre na base do escambo.

Agradeci, e me despedi com uma iluminação súbita: irmã Ana foi a primeira construtora de uma favela em nossa cidade. Ela mesmo comprou tábuas e encerados e nos impôs a sua arquitetura. Fez o que sentiu e esse sentir deve ter alcançado vários resultados. Alguns, felizes, outros, nem tanto. Mas o grande mérito dessa criatura  é que ela viveu com coerência, lutando por um ideal, dispensando adesões e simpatias, as quais  nunca obteve em vida. E agora, ironicamente, lhe sobrevêm na morte. Eita humanidade!

Depois,  várias outras reflexões vieram, por conta dessa mirada repentina, como um cubo que é jogado ao chão, caindo sempre  com faces intercaladas:
- "pobres sempre tereis entre vós," disse Jesus; teria Irmã Ana se preocupado com o espírito desses homens e mulheres?
-  Aproveitadores também, sempre tereis entre vós,  acrescento eu. Mais importante do que cuidar das necessidades do corpo é formar uma mente sem distorção de caráter e isso só o Evangelho faz.
- O que realmente sobrou dessa obra tão difícil, solitária e mal compreendida poderia ser aquilatado aqui? ou só na eternidade?

Os barracos ainda estão ali para lembrar. Bem ao lado do Posto Central de saúde do Município. Irmã Ana deixou os seus pobres muito bem localizados, diga-se de passagem.Tem rico morando bem mais longe.

Antes de sair, uma última lembrança: Irmã ana era professora de piano,  dava aulas para os filhos dos ricos e com o dinheiro obtido, sustentava precariamente os seus pobres. Quanto deve ter sofrido essa criatura, equilibrando-se precariamente entre dois mundos tão opostos. Eu sou uma equilibrista e sei que dá trabalho.

Por conta dessas aulas, os ricos conheceram uma cadeira estilo Luiz XV, que ela deve ter herdado da família polonesa, em um passado distante. Eu vi a cadeira: minha filha era sua aluna. A cadeira era coisa fina, de madeira maciça, toda entalhada! Naqueles tempos não tínhamos aqui acesso a essas preciosidades do mobiliário clássico. Mas irmã Ana tinha.

As madames passavam por ali e também viam a cadeira: ah, como viam! Viam com grandes olhos de espanto: "uma cadeira dessas, nesse lugar, com essa pessoa". Ah, que gula!

E as propostas chegavam todos os dias. Dou tanto: não vendo! Troco por tantas lajotas de tijolo: não quero! Tenho um cavalo novo para a sua carroça: não preciso!
 Irmã Ana tornou-se irredutível muito provavelmente para ensinar a  todas nós que existem coisas que o dinheiro não compra. Eu juro a você que nunca ousei escambar e nem comprar. Mas que  achava a cadeira um primor, isso eu confesso.

Tempos depois, enquanto ela ainda estava entre nós, fui atrás de uma empregada na favela. Repentinamente, dobrando a primeira ruela, quase caio de costas: um homem de cheiro forte e ocre, sentado num trono, feito o rei do beco escuro: o trono era a cadeira da irmã Ana. Que ele levara de graça. Pela graça de existir.

Assim era Irmã Ana. Precisa dizer mais? Que histórico retrataria Irmã Ana com fidelidade? Que encheção de parágrafos delicados lhe faria juz?  Meu Deus, que pobreza esse nosso mundo  das relações institucionais.

Volto ao presente. Dou uma última olhada ao lugar. Uma das casas foi vendida e transformada num boteco, com um puxadinho para fora, à guisa de varanda. Lá, embaixo de uma fraca iluminação, dois homens jogam cartas e um terceiro observa. Todos com um copo na mão. Do lado esquerdo, crianças brincam as suas sujidades: dois deles rolam no chão. Provavelmente dormirão sem banho.  Do lado direito, um bacarro iluminado, e lá de dentro vem um som tão alto que alcança o favelio inteiro: " O fogo arderá continuamente sobre o altar, não se apagará, o fogo arderá continuamente sobre o altar, não se apagará" - diz o refrão.

Lembro de irmã Ana com o fogo da caridade que ardeu e se apagou. Lembro de Irmã Ana sob esse duplo aspecto que nos deixaram múltiplas interpretações. Tudo tem pelo menos dois lados - foi assim que comecei este artigo. Este tem vários.

 Irmã Ana foi uma santa, mas uma santa sem discernimento da maldade humana e das incongruências sociais. Que para santa ela fora feita. Santos não são santos por terem esse tipo de discernimento. São para se gastar até a última gota. E eu prefiro lembrar de irmã Ana como uma santa que foi. Até a última gota.

Queria terminar esta narrativa por aqui, mas ainda não posso. Aguente só mais um pouquinho porque o melhor vem agora.

Enquanto dou partida no carro e vou-me embora, ainda ouço o hino: " o fogo arderá continuamente sobre o altar.."

Ao chegar à igrejinha da periferia, em outro bairro, do outro lado da cidade, a surpresa que fecha este artigo, e que vai fazer o incrédulo pensar que  é apenas isso : um fecho para um artigo. 

Mas não é.

Poderia ter fechado lá em cima. Lá quando escrevi: "Até a última gota."

E  não estaria sendo fiel e verdadeira com o meu Deus. O final da história foi ele quem escreveu.

 Ao chegar à igrejinha da periferia, em outro bairro, do outro lado da cidade, já pensando na mensagem que teria que pregar, ouço ao longe,  os irmão cantando o mesmo hino: "o fogo arderá continuamente sobre o altar, não se apagará..."

 Nem eu acreditei. Deus é um riso! E a sua mensagem é a mesma, para todos, em todas as épocas, em qualquer lugar: "O FOGO ARDERÁ CONTINUAMENTE SOBRE O ALTAR E NÃO SE APAGARÁ."
Ana Ribas

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Coisas que Perderam o Valor mas não a Utilidade.
Ana Maria Ribas.

Existem coisas que perdem o valor mas não a utilidade. São resquícios de um mundo em constante mutação. Nem percebemos que o mundo muda, e que, certas mudanças afrontam a nossa inteligência: como éramos tão resumidos? e tão crédulos? e tão conformados? e tão provincianos? e tão primitivos? e tão desprovidos de exigências? e tão passivos?  e tão telúricos? Essa última palavra nem cabe na resumição mas ficou linda, você não acha? Pode usar nos seus próximos textos. É minha desde a juventude,  mas eu empresto para você. De preferência cite a fonte.

Éramos resumidos, crédulos, primitivos, provincianos, passivos, desprovidos de exigências,  conformados e telúricos  mas não vou voltar tão lá no passado, na era das cavernas, a ponto de cair na  armadilha da teoria da evolução das espécies. Nada que passe pelo binômio homem x macaco. Deus me livre da teoria da evolução das espécies - totalmente equivocada!  Se o homem tivesse vindo diretamente do macaco, por que ainda existem macacos que não vieram? Por que preferiram ficar lá? Ah, sei lá, viu... Ivo me explica que não é assim  que funciona. Mas para mim é. Ponto final! Eu acho que com ela matei Darwin.

Os macacos que não evoluiram, que preferiram continuar macaqueando,  perderam o valor, mas  não a utilidade.  O que seria do passeio de nossas crianças ao zoológico, se não houvessem os macacos? Macacos são úteis embora tenham perdido o valor e o respeito dos humanos, daqueles que um dia foram.

Tudo o que fica para trás perde o valor, mas não necessariamente a utilidade.

Não vou conseguir prosseguir o raciocínio, enquanto não disser uma coisa que nem cabe aqui, mas o meu sentimento de proteção aos animais manda dizer:  O macaco é bonzinho, ele merece  respeito.  Tenho horror a que judiem  do macaco. Já basta aquela gaiolada toda e aquele olhares curiosos. Por mim, todos os macacos seriam livres,  cidadãos brasileiros com RG, CPF e direito a votar no PT.

Tudo bem, vamos ao que interessa: Coisas que perderam o valor,  mas não a utilidade!  O telefone. Sim, o telefone. Daqueles enormes, pretão, que mais parecia um urubu de cócoras. Tão chic ter um urubu de cócoras, na sala principal da casa. O urubu chegou aqui, nestes rincões do Paraná, quase no final da década de 70. Um urubu que falava. De vez em quando,  e só no local. Interurbano esparodicamente.

 Eu  cheguei do trabalho, uma certa manhã inesquecível, e lá estava a surpresa: um urubu no canto esquerdo da sala, ao lado do sofá da Laffer. É! Era da Laffer e fui eu quem comprei. Porque o Ivo tinha comprado um sofá meia boca quando nos casamos, e eu me livrei daquilo no segundo mês, pagando o da Laffer a prestações. Tão caro me era para o meu salário minguado de professora! Mas Ivo não abriu mão: disse que já tínhamos um sofá, e que se eu não quisesse aquele, que pagasse pelo outro. Paguei!

Mas, voltemos ao telefone! Às coisas que perderam o valor e não perderam utilidade. A tecnologia da comunicação estava chegando. Finalmente, eu poderia ligar para a vizinha e dizer : oi vizinha! Sem que eu precisasse gritar: Ôooo vizinha!

 Ivo estava me esperando no portão, e tinha a gravidade do homem que acaba de casar e desempenha o seu papel. Um homem provedor. Sempre  pioneiro no contemplar a família com coisas que perderiam o valor mas não a utilidade. Um bom homem, cioso dos seus deveres.  Para que a vizinha não viesse dizer à sua mulher: - "lá em casa já chegou"; e para que a mulher não lhe voltasse a pergunta, ligeiramente modificada - "aqui não vai chegar não?" Porque isso significaria dizer: "você não é um bom marido. Um bom marido coloca um telefone em casa." E Ivo sempre foi um bom... não... um ótimo marido. Por isso, o telefone em casa chegou primeiro do que na casa da vizinha.

Pois chegou e custou caro. Ele dizia: "o que é caro é a linha, não o aparelho." Eu não entendia como uma linha podia ser cara. Talvez fosse uma linha diferente das linhas que eu usava para fazer tricô. Mas se ele dizia que era caro, eu acreditava. Porque era mesmo. A tal ponto de termos que nos programar: primeiro, adquirimos um telefone e depois trocamos o carro. A troca do carro podia esperar.

 Tão bom ter um telefone em casa, pela primeira vez. Tão bom poder ouvir o primeiro trimmmm estridente e dizer suavemente: alô! Tanta era a emoção que me dominaria no momento do primeiro alô. E depois  me sentar ao sofá, cruzar as pernas e gozar enfim, aquele instante redondo e acabado: eu tinha um  marido, e ele tinha uma esposa e tínhamos um carro,  uma casa, um sofá e um telefone. E um bebê: a Sandra! Toda emocionada eu esperava que a emoção passasse e que o telefone tocasse. E nada do telefone tocar! Eu disse a ele, meio envergonhada: "vá lá no hospital e liga aqui em casa?" E ele foi! E depois ele voltou, e nos sentamos na sala.  Nos entreolhamos suavemente, e aquele olhar dizia tudo: somos uma família, temos o nosso primeiro telefone, e você cumpre  tão bem o seu dever de me dar o direito de dizer: "alô, quem fala?" e eu cumpro tão bem o meu direito de te olhar com tanto amor e admiração. Eu que era pobre de marré de si.  Eu tinha, enfim, um telefone.

Coisas que perderam o valor mas não a utilidade: Ações da Pasquim. Todas as famílias da época investiam em ações. E também da Crush. E também da GBOEX.  Perderam o valor, mas e a utilidade? A utilidade é nos fazer lembrar a nossa burrice, comprando papéis que levaram o nosso dinheiro e nos deram nada. É uma ótima utilidade. Nunca mais fizemos investimentos de risco.

Mais coisas que perderam o valor mas não a utilidade: o Fiat 147 -1979 que ele deu de presente para uma tia. Não que ele desse carros, assim,  a qualquer tia. Essa era especial. Foi a tia que o criou e o adotou como filho, ele que era o primeiro numa lista de 14. Salvou-se da primogenitura e ganhou a tia para o resto da vida.  E a tia ganhou o carro. Que voltou para ele, quando ela morreu. Que ele não vende, não doa, não empresta e gasta os tubos incrementando, polindo, cerzindo, enfrescurando. A última frescura é um ar condicionado que ele quer colocar. E que eu  deixo porque sou boazinha. Felizmente, o instalador o convenceu de que o motor não iria aguentar e assim eu posso ser boazinha.

Porque mulher não entende esse negócio de gastar -mais ainda! - com coisas que não tem valor, só tem utilidade. Uma utilidade duvidosa, porque só ele usa o carro. Outro dia, eu disse à Silvia: "Silvia, filha, vá ao mercado buscar alface para mim?" Ela respondeu: - "vou!" E não foi! Só havia o Fiat  147 na garagem.
- Nem morta - foi a última palavra dela. Mas num dia de chuva, sendo a última das últimas soluções, fez uso do nobre veículo, embora sentada no banco do passageiro, com os vidros bem fechados. E braba!  Jovem tem dessas coisas:  não distingue relíquia de velharia. O nosso Fiat é uma relíquia. Que não tem lá grande valor, mas tem utilidade.

Não adianta querer comprar que ele não vende. Ele diz assim mesmo: "não tem preço!"

Coisas que perderam o valor mas não perderam a utilidade: Um aparelho de som estereofônico da Philips. Nossa, como custou caro. E a utilidade? Ouvir os discos de bolacha vinil do Moacir Franco. Acredita que o Ivo me faz ter  essa paraphernália dentro de casa? Bem escondida, diga-se de passagem. Abre-se a  sala de cobertura- um chapéu redondo- no último andar, bem no centro da casa ( que eu acho de muito mal gosto, mas na época,foi escolha minha), abre-se essa sala, depois abre-se a porta de um armário e lá está a salvo dos ladrões e da minha vista, o aparelho de som estereofônico. Essa palavra estereofônico sempre me lembra a doença da estereofonia. É grave!

E a enciclopédia Barsa? A coisa era tão chic, mas tão chic, que o vendedor não era assim um vendedorzinho qualquer. Ele passava marcando hora nas casas, para ser recebido posteriormente,  porque não tinha tempo a perder. E depois ele vinha, e nem insistia. Comprasse quem quisesse, quem tivesse cultura para valorizar o investimento na educação dos filhos. A Barsa perdeu o valor mas, pelo menos aqui em casa, não perdeu a utilidade. Qual a utilidade? O salário de diarista da minha faxineira que vem toda terça feira limpar os livros do escritório e coisas tais, sem as quais a função de faxineira já seria parte das coisas que não perderam o valor mas perderiam a utilidade. 

Tantas coisas perderam o valor e não a utilidade. Outras tantas perderam o valor e a utilidade. Mas o que não se perdeu, e jamais se perderá são os sentimentos que fizeram a história dessas coisas, o entretecido no oculto,  as lembranças  que ajudaram a compor um quadro de uma normalidade tão abençoada. Que saudades! Que saudades do telefone preto, das ações da Paskim que guardávamos como documento, do aparelho de som que nos trazia o Altemar Dutra, na sala de nossa casa. Que saudades do tempo que passou. Desse tempo que passou sem perder o valor e a utilidade de nos fazer lembrar que, um dia: Fomos! Um dia "fomos" com tudo o que essa palavra possa significar para nós dois e nossos filhos.

E agora que já escrevi sobre isso, corro o sério risco de que  você, fazendo bem as contas, se aproxime perigosamente da descoberta da minha idade. Essa que eu guardo tão bem, porque afinal, que utilidade haveria para o mundo descobrir a minha idade? Mas sabe de uma coisa: eu tenho a idade que aparento ter e não a que a certidão registra.

Obrigada Dra. Vânia  Diniz! Obrigada Dr. Fábio Rebucci, chiquérrimo dermatologista da Juliana Paes e MEU. Mais meu do que dela, porque ele é meu desde que era criança e morava na esquina da minha casa.

  Sabe também de outra coisa?  Eu não perdi o valor e nem a utilidade. E esse sentimento irá comigo para além da vida porque é lá que todos iremos alcançar em plenitude o nosso valor e a nossa utilidade.

Ana Ribas

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VÁ DORMIR TOTÓ.

Ana Maria Ribas

Nada do que escrevo para você é inventado. Tenho muitos anos de caminhada para precisar inventar, sejam histórias, sejam sentimentos. É um sentir um pouco ampliado, e as histórias são universais, porque abrangem o mundo.

O meu sentir é assim como quando o povão vai na lotérica e pergunta:
-Está acumulado?
-Faz tempo, responde a vendedora.

É assim. Uma mega sina acumulada pela sina dos outros, e pela minha própria sina. Uma mega sina que ninguém leva, ninguém ganha, ninguém compra, ninguém aceita doação, e vai ficando para mim.
Antes de morrer, quero me livrar disso: não gostaria que meus filhos herdassem esse sentir trilionário.

Mas, eu dizia: as histórias que escrevo aqui não são inventadas, são reais. O meu sentir e o sentir dos outros há muito tempo se misturaram em reflexões, constatações, ponderações que me vêm de maneira natural, em séculos de infinita doçura e amargura.
Não necessariamente nessa ordem, e com uma certa alternância que, às vezes, se misturam. Há anos de completa amargura, mas também já houve anos de extrema doçura. Enfim...!

Quando digo "enfim" quero dizer que o assunto não se esgotaria, mas preciso dar um fim. Então: Enfim.

E agora que você tem a minha palavra de que estou falando a verdade, vou lhe dizer a que vim, nesta linda manhã de sol.

Vim dizer, e em lhe dizendo, digo a mim mesma, que ontem recebi três recados de Deus. Os recados de Deus são sutis e é por isso que poucos escutam. Deus fala sugerindo. A sugestão é um sussurro tão gentil que só consegue captar quem não tem ouvidos moucos. Questão de empenho, e treino  para a humildade, que a gente aprende a ter a custa de muita porrada ou do silêncio de Deus. Prefiro a porrada. Enfim...!

Recebi os recados e assinei o registro que comprova o recebimento. A assinatura chegou ao céu no exato instante em que compreendi.

Tarde demais para alegar desconhecimento.
Hora do compromisso!

Eu não digo que Deus é um riso? Mas ontem foi um riso de relâmpago: breve e claro, iluminando tudo à minha volta! Depois, o silêncio das tempestades que se vão, sem ter sido: graças a Deus!

Pode ir, Deus, já compreendi.

Uma oração: Deus não deixe eu me dispersar nesse contar. Quero ser breve e clara como o Senhor. Amém!

Primeiro recado:

Recebi ontem a tarde.
Já contei lá no texto "A Galinha dos Ovos de Ouro". Deus me disse através do meu próprio pensamento - que sei que não é meu porque o meu existe e o dele cintila. Deus disse assim: "As Palavras estarão sempre aí, mas você escreve de afogadilho porque pensa que elas são suas, e vão fugir dos seus dedos. Mas elas sou Eu. “No princípio era o Verbo”, lembra-se?”
Tradução: Não precisa escrever com tanta voracidade. Eu sempre estarei em palavras disponíveis para você.
Captei!

Segundo recado:

Esse precisa de preâmbulo.
Em obediência ao primeiro, deixei de escrever e fui ver um filme com o meu marido. O filme se chama "O Resgate do Campeão." É uma história verídica. O Réporter americano Erik Kerman Jr. é o grande protagonista. Ele corre atrás de uma boa reportagem e descobre um mendigo que supostamente havia sido um pugilista famoso. Sem conferir profundamente os fatos, acredita na história do mendigo e libera a reportagem. A história era uma farsa e o nome dele vai para o limbo.

O filme termina com Erik Kerman Jr. fazendo uma retratação. Vou transcrever as suas palavras: "Um escritor como um pugilista, precisa ficar sozinho. Ter as suas palavras publicadas é como entrar em um ringue. Coloca o seu talento em evidência e não há onde se esconder."
Quase cai de costas, pela segunda vez. Fiz o Ivo congelar a imagem e copiei o telegrama.
Captei de novo.

Tradução: Fique sozinha e se abasteça antes de entrar no ringue das palavras publicadas. De que adianta colocar o seu talento em evidência se você não tiver onde se esconder quando descer do ringue? Eu sou o seu esconderijo mas você tem se perdido de mim.

Tenho sempre me escondido em Deus, mas para isso sempre precisei estar sozinha. E ultimamente tenho estado pouco.

Estava registrado o segundo recado e o aviso de recebimento devidamente assinado.

Terceiro recado:

Veio no rastro do segundo, nesta noite que acaba de ser dia.

Foi um sonho: Estava em uma igreja ouvindo uma pregação. Mas havia um cachorrinho no canto esquerdo, bem à minha frente. Um poodle branco. Eu amo bichos, amo cachorros, amo poodles. Meu olhar se desviava, ora para o púlpito, ora para o cão. Dispersiva. De repente, o pastor interrompeu o sermão e disse com voz levemente irritada: "Ana, preste atenção na Palavra, esqueça o cachorro."
O sonho acabou ali.

Deus me deu o dom da interpretação de sonhos. Não todos, mas alguns ele interpreta para mim. Dom é isso: um presente de Deus.

Antes de interpretar, quero dizer que o sonho foi tão nítido que ao acordar o primeiro pensamento foi: "que vexame, meu Deus." E o segundo foi: " mas quando aconteceu isso?" E o terceiro foi: "Ah, Deus!"

A interpretação: O cachorrinho que eu observava é a minha função de escritora. A Palavra é a Palavra de Deus da qual tenho me descuidado ultimamente. E se eu não me consertar, a repreensão será em público. De que maneira? Deus sabe.

Deus já me pegou no contra-pé de tantos jeitos, já me trouxe pela orelha, já puxou o meu cabelo, já me deu muitos beliscões. Não quero apanhar mais. Não de novo.

Até que eu sinta que tenha crédito com ele estarei em débito com vocês: penso em liberar apenas um texto por dia.

Meu cachorrinho está muito metido a besta. Vá dormir Totó.
Eu vou me esconder um pouco no silêncio do colinho de Deus.

Ana Ribas

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Rapidinho eu Aprendi.
Ana Maria Ribas.

Rapidinho eu aprendi. Não aprendi tudo o que preciso, mas o que já aprendi, nesses últimos dias, vou passar para vocês.

Antes! Sou escorpiana e não acredito em signos. Não do tipo "previsão para hoje". Mas de tanto me ver descrita nas características próprias do escorpião, acabei crendo que deva existir alguma coisa que nos influencie do céu, no momento do nascimento. Nada que um novo nascimento não possa curar: Jesus cura!

Mas eu dizia que sou do signo de escorpião e tenho que acrescentar que ainda não fui totalmente curada. Estou em processo de cura. Quando adoeço, choro nos braços do Senhor. Essa sensibilidade exacerbada me judia muito. Desagrada-me profundamente ser magoada e principalmente magoar. E aqui começa o que aprendi no recanto com essas características que descrevi em mim:

- Não seja demasiadamente apaixonada nos contatos recantistas.  O outro é o outro e está do lado de lá, muito longe. Essa falsa proximidade virtual pode nos fazer pensar que existe conhecimento verdadeiro. Não há. Do lado de lá existe uma pessoa com as suas particularidades, e do lado de cá existe outra pessoa com as suas particularidades. Parece óbvio? Quando for óbvio me perdoe: estou escrevendo para mim.

- É absolutamente verdadeiro aquela recomendação que todos vemos aqui, todos os dias: "mais da metade dos e-mails são mal interpretados." E alguns de forma tão severa que exigem de nós uma retratação. Por mais que eu seja cuidadosa, já tive dois reveses desse gênero. No fim tudo se esclareceu e ficou bem. Mas dá uma trabalheira danada provar que focinho de porco não é tomada. De longe dá mais ainda.

- Nada realmente substitui o talento. Mas há talento com vocação para isso e talento com vocação para aquilo. Identifique na escrivaninha que você visita, qual o talento que o escrevinhador tem. Alguns são potenciais filósofos, outros jornalistas, outros evangelizadores, outros um pouco de cada um de nós. Valorizemos  as diversas vocações.

-Não saia do texto sem extrair a mensagem. E evite dar sugestões sobre a construção do texto. Comente o texto, não a sua construção. Mesmo que pareça que a intimidade caiba. Não há intimidade na web, há vontade de ser. Essa lição acabei de aprender  a duras penas e sem necessidade. Mesmo perdoada eu não me perdoei.  (Acho que ela nem se ofendeu, fui eu quem me ofendi comigo, com a minha falta de habilidade). Beijos pro cê, morena.

- O escritor tem a sua marca e ela é sempre inconfundível. Todos nós saberíamos reconhecer num texto sem assinatura qual é de Lia Luft e qual é de Diogo Mainardi. Aqui, mesmo engatinhando, já temos a nossa assinatura. Não adianta esperar de uma Lia Luft o que  só Diogo pode nos entregar.

- Digo isso porque recebi dois comentários indelicados. Verdadeiramente indelicados. Um deles, enquanto eu falava sobre derrubar muros no texto, saiu dizendo: " os muros ainda estão de pé." Se estão de pé, não caberia nem o comentário. Há muros, adeus, tchau, vá caçar passarinho em outro quintal.

- O outro comentário indelicado foi assim, mais ou menos assim: " Você escreve muito bem mas vou te dizer uma coisa: já ouviu aquela música do Chico "Só Carolina não viu?" Esqueça o passado e viva a vida, Ana Maria. Você merece. Siga em frente."

( Sei que você está rindo). E o pior é que era um leitor não autenticado e eu não pude responder. Mas vou narrar a minha reação interna, já que a externa foi nenhuma.

Minha primeira reação foi de defesa: " Esse cara tem a sensibilidade de um elefante. E é burro. Tem uma visão unilateral. Se eu tivesse como responder diria a ele:  "ôooo Só Carolina não viu o que os outros viram, mas em compensação os outros não viram o que Carolina viu. Estamos quites." ( Eu falando comigo).

A segunda reação foi menos defensiva: fui no texto, vi que estava muito carolinizado e descarolinizei um pouco. Ah, antes apaguei rapidinho o comentário porque ele me deixava muito abestalhada aos olhos dos outros.
Só um pouquinho pode.

- E aqui tiramos mais esse aprendizado: que ninguém espere de mim um texto leve, solto, sem nostalgia. Não é a minha praia. E Deus estará sempre em cada linha. O tal sujeito da Carolina podia ter procurado outra escrivaninha e dito apenas para si o que disse para mim.

- Leitores jovens são sinceros. E perspicazes. Ainda não aprenderam a disfarçar. Falam o que sentem. Cuidado com eles. Aquele que falou que os muros continuavam em pé, é um desses. Inteligentíssimo. Dada a juventude e a sinceridade, fui até lá e comentei: "os muros estão em pé para que sejam derrubados. Você quer?" Não me respondeu.

Acho que não quis.

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" Um escritor, como um pugilista precisa ficar sozinho. Ter as suas palavras publicadas é como entrar em um ringue. Coloca seu talento em evidência e não há onde se esconder." Palavras do Repórter americano Erick Kerman Jr. no filme que conta sua história.  - Filme: "O Resgate de um Campeão."
 
Ana Ribas

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A Galinha dos Ovos de Ouro.
Ana Maria Ribas.

São 15 horas, eu estava dormindo, e acordei.

Isso não é o óbvio ululante. Leia até o fim, e compreenderá a mensagem. Vai-lhe render ouro.

Fique tranquilo: não vou fazer nascer um daqueles filhos que me nascem vocacionados para  abstrair. Não esse. Esse é apenas um passarinho que estou liberando da gaiola.
Sem gracinhas, por favor. 

Ontem escrevi para os que sofrem  e fiz chorar.
 Antes de ontem escrevi para os que riem e fiz sorrir.
Antes de ontem ontem - tres antontem- escrevi para os reflexivos e fiz pensar.
Antes de ontem ontem ontem - quatro antontem - escrevi para os perdidos feito cão vadio e não sei o que fiz.
Porque cão vadio não volta nem para revirar de novo a carta do lixo. Mas eu me esforço.

 A plasticidade ensina: tenho sido reflexiva, ponderativa, abusiva, conclusiva, dispersiva, malversativa, e agora não sei como fazer para concluir essa coisa com iva.
Já sei: meu marido chama Ivo.

Ivo viu a uva.
Ele vê quando quer.
Ivo gosta de uva.

Já fui chamada de dispersiva, ainda que de maneira delicada - "seus textos são de uma dispersão deliciosa". Isso é muito perigoso. Porque  o que é delicioso pode se tornar enjooso.  Eu preferia que me dissessem: “seu texto tem sustância" Como a sustância do tutano de boi. Então eu saberia que o texto não foi, que ele ainda é.

 Sou dispersiva quando quero inserir Deus nos meus textos  e não tem jeito de fazê-lo de outra forma. Então dou o meu jeito e o meu jeito é sendo dispersiva. Vou de Gênesis a Apocalipse na dispersão, sem diáspora,  e você nem percebe que sou uma espiã secreta a serviço de Deus.
 Nessas horas eu me comovo com o esforço que faço para ensinar. Sou uma ensinadora. Nas horas de maior dispersão, repare como estou com uma régua na mão.

O caminho é reto como uma régua. Eu sou ligeiramente torta. Mas quanto me esforço para que todos possamos apreender a mínima idéia de Deus.
Essa já me faria feliz:  “Deus é um riso até quando está brabo.” Ele já foi comigo.

Outro dia,  fui ouvir um pregador que estava discorrendo sobre Mateus 1 - a genealogia de Jesus. Ele gritava muito para tirar água das pedras. Eu saí com sede.  E não havia riso. Se ele falasse suavemente sobre as mulheres da genealogia de Jesus, teria tirado o Sangue. Porque com excessão de  Maria todas foram "ferradas".

Qualquer dia  discorrerei sobre o tema aqui. O nome  será: "Rosas de Rubi". Porque se eu escolher: "As mulheres da Genealogia de Jesus" você não entra nem a pau.
 
Agora vou contar o motivo que me trouxe aqui sem fazer mais rodeios. Tenho sido tomada por uma urgência de escrever. Como se tivesse que dizer logo tudo, antes de ser posteridade. As palavras me vêm quando estou acordando. É isso o que significa:
"São 15 horas, eu estava dormindo e acordei.”

Isso quer dizer: “acordei com as palavras jorrando como águas de uma mangueira fina ( minha mangueira é fina e contínua, parece não parar nunca).”
 
Então, pensei: “Meu Deus, vou morrer em breve.”

E Deus me respondeu – Deus me respondeu nesse pensar que se confunde com o meu, mas sei que não é meu, porque é muito puro. Puro como o brilhante: “Não, filha que nada. As Palavras estarão sempre aí, mas você escreve de afogadilho porque pensa que elas são suas, e vão fugir dos seus dedos. Mas elas sou Eu. “No princípio era o Verbo”, lembra-se?”
 
Quase caí de costas, não caí porque já disse: estava deitada.
 
Então é isso: Deus é a Palavra! E todos nós ficamos aqui pensando ter descoberto o ôvo da galinha.
 
Deixem a galinha chocar sem pressa. A palavra não é nossa: ela é de Deus!

Vou voltar a dormir.

Ana Ribas

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A Noiva, o Cawboy e o Cavalo.
Ana Maria Ribas.


Soube por outros que você tem estado cada vez mais introspectiva, mas a introspecção não me foi novidade: a sua infância já prenunciava.

Seu corpo de menina se resumia em grandes olhos cor de mel que espantados, olhavam.  Mas era um espanto feliz. Um espanto feliz é assim como quando a menina, é a noiva do cawboy - mas nem  se lembra de que há outras três - e sai cheirando o mundo sem nariz, tocando o mundo sem mãos, ouvindo tudo sem ouvidos, sentindo tudo  com os olhos. Apenas com os olhos.

Você chegava e não dizia nada. Só sorria e olhava. E apesar de ser a sobrinha do meio, a mediana, entre grandes e pequenos, era quem se abaixava em direção aos menores e aos maiores, ensinando tudo quanto aprendera nessa sua vida de ver. Tão grande era a visão espantada que via tudo, para depois ensinar aos outros que não viram nada, ocupados demais que estavam em ser crianças.

Seus olhos eram a porta de entrada dessa vida já um tanto quanto solitária, embora ainda povoada pelos primos à  volta. Uma vida sem saida porque lhe faltava o entusiasmo pela boca. A boca para nós, -esses espantados da família Ribas- sempre nos foi um grande problema. Sentimos com os olhos, portanto, falamos com os olhos, compreendemos com os olhos. E tudo é tão claro. Como podem as pessoas não entender?

Quando jovem, estudiosa que você sempre foi, enfiou a cara nos livros e se esqueceu de olhar o mundo. Isso salvou a sua juventude. Por alguns anos, você foi tão normal. Teve apenas um namorado e ele também tinha grandes olhos mas não eram espantados. Eram olhos de quem vê com discrição, com economia e ainda  só vê o que é belo, o que é bom, o que importa  ver nessa vida de janela redonda. A mesma paisagem tranquilizadora.

Deus sabia que você precisava desse homem  bom, puro, econômico,  preparado para lhe conduzir pela mão. A noiva do cawboy tornou-se esposa, e ser criança passou, como passou a música do Chico Buarque: " agora eu era herói, e o meu cavalo só falava inglês."

Não sei quando o mundo percebeu que  o  seu cavalo começou a falar inglês, como o desta tia que lhe escreve. Que coisa! a humanidade nunca entendeu muito esse nosso jeito de falar, com olhos grandes de cavalo inglês.   Eu sempre percebi que o meu cavalo era nórdico. Um cavalo nórdico poliglota que nenhum humano entendia. Eu entendia de acumular coisas no pensamento. Essas coisas que eu acumulava eram da humanidade toda, mas de repente se tornavam tão minhas, como se uma mão invisível me jogasse uma petição  bem no meio do peito e eu tivesse que dar a sentença.  

Por caminhos que nem sei, embora todos saibamos, nos perdemos entre montanhas de cifras dos outros, e cifrões que contabilizaram danos de grande monta,  de ordem bem mais dolorosa.

Já faz tempo que não lhe vejo. Só por fotografias do orkut de sua filha. O olhar já não me pareceu tão perplexo, mas levemente resignado. Dessa resignidade que sabe que os vivos nada sabem e que os mortos, mesmo que saibam, nada contarão.

Fiquei tão feliz ao ver que sua filha se salvou da síndrome adquirida de  grandes olhos de espanto. Sua filha tem os olhos do pai. É uma menina feliz, cheia de vivacidade. Daquela vivacidade boa que só vê o bom da vida, e quando enxerga o ruim, logo esquece.

Outro dia, ela deixou um recado para a minha filha (que tem a síndrome sob controle) -  ela escreveu assim para minha filha: "tia, recebemos a receita do pão e já fizemos três vezes. Ficou bom. O problema é que a família dinossauro pensa que é para comer tudo num dia só e estamos engordando."

Tão bom ter uma filha que chama a família de Família Dinossauro. Uma filha que faz piada, que consegue rir de si mesma, dos outros, e das trapalhadas da vida. Uma filha que só vive e cresce. Se lhe perguntassem: - Natália, o que vc faz aqui: Ela responderia: - Eu vivo e cresço.

Mas sobre você eu soube que  tem estado tão calada. E que, quando fala, por vezes, se remete a um passado que nunca passou. A momentos que marcaram com a profundidade do aguilhão  ou com a leveza da borboleta. Não importa, foram marcas que ficaram.

 Temos essa coisa de segurar o passado pelo laço como quem segura um cavalo bravio: sob certo controle, mas sempre temendo que, a qualquer hora ele nos escape. 

Também soube que você se isola para ler muito. Nisso também você vem logo atrás de mim. Só lhe falta escrever. E é para isso que  estou lhe escrevendo: para sugerir que você escreva. Escreva para si mesma, escreva para os outros, escreva para Deus.

Quando eu descobri esse Deus, ele ainda era desconhecido em nossa família.  Eu o apresentei a quase todos e sua mãe disse: "Que bom, muito prazer!" Em seguida, você apresentou-se de maneira espontânea, e quando eu soube, vocês já eram íntimos. E isto, esse ISTO tão grande lhe salva "para sempre".

Mas escrever, poderia salvar agora.  Escreva! Você é advogada de respeito, venceu a timidez natural que lhe fazia ficar vermelha, passou a recitar petições cantilenosas aos juízes da vida, mas  a mudez continua. Escrever lhe daria voz.

Há pessoas que pintam para fixar na mente a paisagem que merece ser eternizada;  outras que correm e viram atletas para fugir de si mesmas, da mesmice, da solidão;  outras que sobem montanhas, porque a planície não as comporta mais; e outras que escrevem para deixar sair o passarinho da vez, na gaiola da prisão.

Somos um pouco dos três: somos o pintor, o atleta e o escritor. Escolha um dos três, ou fique com todos. Isso será também uma grande salvação. A salvação diária nós que já ganhamos a eterna.

Agora que vivemos por fé o equilíbrio fica ainda mais precário: porque nesse viver por fé só cabe o olhar de dentro. Por isso, não temos mais tempo a perder lá fora e nos debruçamos definitivamente sobre a Bíblia, sobre os livros, esses livros que falam conosco de forma mais íntima e eficiente. Danou-se de vez a tão sonhada normalidade.

Você sempre foi loura como a família da sua mãe, alta como a família de sua mãe, magra como a família de sua mãe. Tudo por fora, em você, era a família de sua mãe. Mas por dentro, era a nossa família cuspida e escarrada sem tirar e nem pôr. Seu pai vai a frente de nós duas, na estrada de Santos, e tomara que ele nunca mais derrape nas curvas: tão grande seu pai, tão equivocado, tão desamparado, tão sedento de Deus, e tão solitário. Eu amo seu pai! E amo você!

O que fazemos com isso? O que fazemos com a grandeza, com o equívoco, com o desamparo,  com a solidão, com a sede, com tantos sentimentos desencontrados?

Tenho uma sugestão.Ofereçamos a Deus. Deus é um Deus econômico: recebe tudo e não despreza nada. Com cinco pães e dois peixes alimentou uma multidão.
Eu  sempre penso, nesse meu pensar apaixonado, que o pão e o peixe que o menino ofereceu a Cristo, eram amanhecidos, sem o brilho das coisas que se desejam.  E Cristo recebeu, processou, abençoou, distribuiu e alimentou.

Ele pode fazer o mesmo com a parte espantada de nossa família. E saber disso também nos salva.  

Ana Ribas

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Que saudades de você, meu pai!
Ana Maria Ribas

Nunca consegui estabelecer um diálogo puramente afetivo com o meu pai. Na infância, a maior expressão de amor de que me lembro,  eram as suas grandes mãos guiando as minhas, na tarefa tão difícil de  escrever o meu primeiro nome. Três letras: Ana. Breves momentos. Momentos que se eternizaram dentro de mim, tão bom era o sentimento de ter  a mão de meu pai conduzindo a minha.  Lembro-me ainda. Fechando os olhos posso sentir  sua mão dura sobre a minha, pequena e indecisa.

Nesse período, morávamos numa quase fazenda, um "patrimônio" de 300 habitantes. E não havia cinema. Mas meu pai montou um cinema. Tinha uma Super 8. Só sei isso. Era uma super geringonça que ele manuseava tão bem, passando filme aos sábados para todo o povo daquela terra. Depois, veio uma máquina chamada "patê babí" ou sei lá o quê isso significasse. Ele dizia assim  mesmo: patê babí."  Os filmes chegavam em grandes latas redondas e não eram escolhidos. Os que viessem, seriam festejados.  Quem trazia era  a velha jardineira. Na sexta feira, esperávamos ansiosos, porque à noite teríamos uma sessão privada, em primeira mão, para a família.  Ele nos explicava o filme e chamava a nossa atenção para as melhores cenas. Se considerasse haver cenas impróprias, acendia a luz e rodava a máquina. Recomeçava do ponto em que o beijo já tinha acabado. E só nos restava adivinhar, a mim e a meus irmãos.

Da adolescência, um lapso. Morávamos na mesma casa, almoçávamos à mesma mesa, comíamos o mesmo arroz com feijão de cada dia, mas ele se tornou tão arredio. Ou eu me tornei mais inventiva? Embora eu não entendesse dessas sutilezas.

Por essa época, as invencionices de papel e caneta já começara. Eu compunha histórias e elas eram sempre dos outros. A minha seguia, sem pressa e sem mistérios.  O que era um pai arredio? A proximidade que nos possibilitava o  amor de maneira mais efusiva, seria apenas um detalhe. Eu tinha um pai. Tinha um pai para os momentos de defesa e de ataque e isso me bastava.

Quando mais jovem, convidaram-me para ser miss qualquer coisa. Talvez simpatia, sei lá. Não me lembro. Mas lembro do meu sentimento, ao ver a comissão organizadora do tal concurso vir até a minha casa, pedir para eu representar determinado segmento da sociedade. Eu tinha um pai! Ele de braços cruzados, tímido, ouviu o convite, e respondeu do seu jeito humilde e puro: " se for coisa de gente de bem, ela pode ir. Tem o meu consentimento." Era uma palavra tão em moda: consentimento. Sim, eu tinha um pai! Era tanto o meu orgulho. Para que  precisaria que ele me colocasse no colo,  me beijasse, me abraçasse, me olhasse nos olhos, mesmo que fosse por um breve instante eterno?

Dos meus namoros, pouco participou. Não dava pitaco. Tão grande era a figura materna, que a paterna se encolheu em assuntos dessa natureza. Não, não é nada disso. Quero fazer um retrato fiel do meu pai: ele não se intrometia simplesmente  porque não vivia, nem por um momento, a vida de seus filhos, em nenhuma circunstância. Ele vivia a sua própria vida. Nunca palpitou, nunca quis saber, nunca aconselhou, nunca disse "eu penso que". Ele não pensava. Não sei se por altruísmo, não sei se por discrição, não sei se por comodidade. Eu poderia namorar, noivar e casar, com quem  bem entendesse.  Meu pai permanecia indiferente. Quando namorei um funcionário público, ele não disse nada. Quando namorei um desocupado, ele também não disse nada. Quando namorei um médico, ele nem soube que era médico, senão depois quando machucou um dedo. Um dedo de prosa, pouca intimidade, nenhum segredo: assim era meu pai.

Adivinhávamos a vida. Não havia orientação. Nosso  pai passou por nós como uma figura mística: um tanto quanto protetora  mas sem nos tocar. Como os santos de pedra da igreja católica. A urgência de ser era tanta, que eu e meus irmãos, cada qual a sua maneira, nos virávamos como podíamos, e sucumbíamos aos mistérios nunca dantes desvendados, em silêncio. Não houve orientação sexual, profissional e nem espiritual. Cada qual seguiu o seu norte sem bússola, e pela graça de Deus, todos nos salvamos.

Da minha maturidade plena não teria o que falar acerca de  meu pai: ele se tornara dispensável e eu me tornara por demais ocupada com marido, filhos e o deslumbramento da vida em sociedade. Um dia eu fui deslumbrada! Mas houve um tempo em que, no galope da vida, meu cavalo, branco como o de Napoleão  arriou e ficou pálido:  descobri que meu pai se tornara meu filho.

Foi quando minha mãe morreu deixando o Dudu, um velho cachorro pequinês e meu pai, já entrado em anos, para eu cuidar. Ela nunca me disse: cuide de seu pai. Meus irmãos nunca me disseram: cuide do nosso pai. Mas Deus me disse: cuide do seu pai, como se estivesse cuidando de mim.

Difícil tarefa. Medo, pânico, sentimentos de inadequação que ora se transmutavam numa doce bondade, para logo depois me consumir em séculos de infinita perplexidade. Meu Deus, o que é mesmo esta vida?

Ficamos juntos pouco mais de 2 anos. Esse não é um período do qual gosto de me recordar. Porque tenho a flagrante sensação de haver falhado. Eu acertei na grandeza da visão,  mas falhei nas miudezas de cada dia.  Falhei no amor em conta gotas, naquele que precisava ser dado em doses homeopáticas e não derramado abruptamente, de vez em quando, para acalmar as minhas culpas. Ele recebia um e outro, sem reclamar. Se eu o amava, ele me amava; e se eu não o amava, ele me amava igualmente. Chorei muitas vezes quando compreendi que os meus sentimentos por ele estavam doentes. O filho cuidador tem uma tarefa obscura, não bem explicitada.  Nem tanto pelo trabalho, mas pela súbita inversão de papéis. Ver meu pai depender de mim para as tarefas mais íntimas,  custou-me momentaneamente a saúde e tivemos que contratar uma enfermeira.

  Mas até o fim ele ficou em minha casa. O fim: Falávamos de tantas coisas, mas eram coisas de fora, nunca de dentro. Quando viajei para a Espanha, levei uma filmadora e fui desbravando o sul do país até chegar à aldeia em que ele nasceu: HUENEJA, perto de Granada. Que noite aquela! Eu estava em Hueneja, na casa em que meu pai nascera, aos pés do Monte Nevado. Fiz tudo pensando nele: queria lhe dar a alegria de rever a sua terra, as suas gentes, ainda que fosse pelas minhas narrativas e pela minha câmera. Na volta, a surpresa: ele não esboçou reação. Assistiu alguns minutos do filme,  e depois pediu para descansar. Estava cansado meu velho pai.

No ano de 2001, a introspecçao se agravou. Não perdeu a lucidez, pelo contrario. Acho que ela lhe foi excessivamente exagerada.  Compreendia a vida e pedia a morte. Pediu para ser batizado nas águas, por imersão quando eu lhe disse que assim o tinha sido Jesus.

No dia 20 de novembro, um domingo, sadio e lúcido, segurou forte em minhas mãos e me pediu: Canta! Escolhi o que me veio à mente: " Se as águas do mar da vida quiserem te afogar, segura nas mãos de Deus e vai... se as tristezas desta vida, quiserem te sufocar, segura nas mãos de Deus e vai." Enquanto eu cantava, ele balançava fortemente as minhas mãos como se estivesse se despedindo. Era de tarde. Naquela noite de madrugada, ele foi.

Que saudades de você meu pai!

* A foto mostra meu pai e seus filhos.

Ana Ribas

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