Crônicas 5

UMA LINDA MULHER.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.






  Viver é protagonizar vários papéis. Escrever é como revelar o papel do dia. Sempre o mesmo personagem, com a sua velha vida, acostumada aos vários papéis. 
Eu não me estranho nunca. Já vivi todos eles, por milhares de dias, ao longo dos anos,  tudo misturado com nostalgia, honestidade e essa disposição interior de nunca disfarçar. Sou uma big brother virtual  e o meu jeito de escrever diz assim para você: vem que é bom! 
Aqui não há câmeras escondidas, há compartimentos escancarados. Essa coragem me vem de uma vida bem vivida, e da presença de Deus em mim. Deus em mim é um Deus coragem.
 Então vamos lá. O tema de hoje é : Uma linda mulher! 
Em minha cidade há algumas jovens senhoras que ainda me observam muitíssimo: resquícios da pré adolescência que elas viveram, enquanto eu já vivia a  pré maturidade. 
Elas eram meninas, e eu já era uma linda mulher. Pois algumas dessas meninas, contemporâneas de minha filha mais velha, continuam me chamando carinhosamente  de " nossa musa inspiradora". Olha a responsabilidade!  
Por causa delas, continuo muito íntima do mundo da moda. Sei quando voltou a  usar xadrez, sei quando  camisa branca é peça fundamental no vestuário, e sei quando um colete precisa ser providenciado, com urgência, para compor o novo look. 
Juro que sei disso, só por causa delas. Tento não decepcionar, pois afinal, estou inspirando um estilo. Não quero que as minhas discípulas me vejam por aí, toda hum mil novecentos e bolinha. 
Se bem que, às vezes...!!! Vou ao mercado com o chinelo havaiana mais velho no pé e nada combina com nada: é o dia em que - comigo mesma- estou completamente des-combinada. Nesse dia, torço para que elas não me encontrem, e se acaso as encontro,  corto voltas, e caminho léguas, para que o sonho não se perca e o modelo não se desmanche no ar. 
Semana passada, houve festa em nossa cidade. E o Ivo estava trabalhando como garçon. Na barraca do Rotary, claro. É uma festa bonita que se chama Festa das Nações. Devem existir muitas iguais a essa,  por esse Brasil afora. Uma barraca  faz comida da nação mineira, outra barraca faz comida da nação paulista e outra barraca faz comida da nação caseira, e vai por aí. E eu fui jantar na barraca da nação rotariana. 
E lógico, caprichei no visual, porque não podia correr o risco de decepcionar as minhas meninas. 
No futuro, se o marido as visse, sem nenhum glamour, gordas, desleixadas,  e completamente fora de moda, não seria por culpa do modelo que elas adotaram desde a infância. 
 Então escolhi um look básico,  mas atualizado: calça jeans, camisa branca e colete verde-jeans. 
Coisinha simples, mas da hora.  E arrrematei com uma sandália salto 11 da Luz da Lua, que ainda nem acabei de pagar. A plataforma na frente, compensa a altura do salto e, por isso, das alturas se pode usufruir de algum conforto.
Uma maquiagem leve, uma cara não tão nua, e lá fui eu de novo: de volta para o passado!
Eu sabia que não podia vacilar! Logo de cara, encontro Eliane Vendramel que vem me abraçar.  E me elogia para mim mesma. E me elogia para o Ivo. E me elogia para o povo que está em volta de mim. 
E eu respiro fundo, e me aprumo melhor no salto, e penso: Valeu a pena! 
ivo sorri bondosamente e diz sempre assim: " É porque eu cuido bem dela." Com certeza, Ivo, é porque você cuida bem de mim, e  me trata com amor, e renova os meus hormônios, e paga meus tratamentos e me dá um bom pasto, senão já estaria existindo matronamente pela vida, com essa vocação que tenho para ser mãe de um mundo estrupiado.
 Então jantamos. E logo depois, eu me levantei para vir embora porque o som estava muito alto, e porque o meu ouvido é sensível, e porque eu não aguento. E também porque já estava jantada e devidamente abençoada. 
Mais uma vez, em agosto. 
Então, Ivo gentilmente, passou o braço em volta dos meus ombros e disse em delicadeza de oferenda: - vou te acompanhar até o carro. E até o carro fomos. Dentro de mim começava a 
formar-se a cintilância de um cristal inteiro e eu até ensaiava jogar para trás a cabeleira, que não tenho mais, num gesto involuntário de vaidade secular. 
Se o carro estivesse perto, a noite teria sido perfeita. Mas o carro estava longe, um tumulto de gentes e foi preciso desfazer a mão do ombro e assim fomos, nos desviando da multidão como podíamos.
 E eu descuidei. Pensei que já podia descer do salto, sem descer.  Devo ter-me des-equilibrado e des-equilibrada fiquei: a vaidade se perdera, mas não a candura.  Na escuridão da noite, só Ivo e eu: um lugar perfeito para um beijo apaixonado! 
Ivo que viu a uva, não viu o beijo. Só viu  o des- equilíbrio  de mim mesma sobre o salto 11.  E foi cruel comigo: estilhaçou o meu cristal, sem dó nem piedade. 


Ele disse assim: 
- Você está com algum problema no quadril? 
- Eu??? Não!!! Por que?
- Porque está mancando da perna direita.
- Eu não!!!
- Está sim! 
- Claro que não!!! É a calçada irregular, olha lá que calçada esburacada. - E olhei para trás para mostrar a cárie de um dente.
- Hummm... não vi buraco nenhum.
Nem eu. O que vi foi assim: uma crueldadezinha, um risquinho de fel, que lhe escorreu- quase 
imperceptivelmente-  pelo canto daquela linda boca. Ivo tem uma boca linda e  uma voz grossa e aveludada e quando fala: Fala!
 Suas palavras para mim tem o peso de uma sentença prolatada e prestes a ser cumprida. sem apelação.  Porque eu o amo e nesse amar, fico meio confusa. E nessa confusão, confio no discernimento dele. Se ele disse que eu estava mancando da perna direita, por certo, eu estava mancando da perna direita.
Tchau, bobão - eu falei!
Tchau, bobona - ele respondeu.
- Juízo, hen? - eu disse para que ele tivesse a ilusão da juventude, aquela mesma que ele me negara.


Mas ele já estava longe. 




Ana Ribas




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COMO SE CHAMAM ESSES TAIS? 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.






A eternidade não é aqui, hoje é sábado, e eu não tenho culpa da minha rude franqueza, que se manifesta todas as vezes em que me conscientizo dessas duas realidades.
 Se eu pudesse chorar e ser ouvida "ad infinitum", todos os seres humanos do passado, do presente, e do futuro, sentiriam uma grande compaixão por este ser que ainda vive e chora.
  No entanto, eu não choro por mim. Peço encarecidamente,  que a sua compaixão venha acompanhada de uma visão mais alargada. Esse ser que vos escreve,  chora pela humanidade.
 Minha tristeza- essa que você sabe que carrego comigo -  é uma miudezinha de nada, cujas lágrimas já secaram há alguns anos. Por essa, eu nem choro mais. 
Eu só choro quando alguém precisa de companhia. Então, para que tal pessoa não chore des-acompanhada, eu choro com ela. 
Adquiri esse privilégio de poder chorar conforme me é conveniente. Isso não significa que tenho vocação para ser artista da Globo. Significa apenas que sou um ser hospedeiro de muitas lágrimas. 
Lágrimas, para mim, não são como um parasita que suga e nada dá  em troca. Lágrimas, para mim, são um processo de simbiose instalada: eu lhes dou expresssão e elas me dão vazão. Como a usina de Itaipu: a energia que se obtém da força das águas são a  expressão das águas. A vazão das comportas é ajustada, segundo a necessidade de cada dia. Sem vazão, Itaipu se explodiria. Às vezes penso, que lindo seria ver Itaipu explodir e lamber a terra. Mas também seria trágico,  porque muita gente distraiu-se e  não aprontou a sua Arca de Noé.  A minha está pronta:  Faz algum tempo.  
Sábado é dia de ajustar a vazão das comportas. É dia de dizer: A eternidade não é aqui. Mesmo que eu esteja passando férias numa ilha do Caribe, cercada de mordomias, aos sábados, eu sempre direi: A eternidade não é aqui.
E não é que tem gente que pensa que é? Que leveza de ser!  Que jeito magnífico de existir! Que sensação de vertigem alomórfica! Divididos entre a doçura de um chá da tarde, e a acidez de um café da manhã, a turba segue, animadíssima,  em direção ao nada.
 Os alônimos da humanidade são eles ou seremos nós? Que nomes têm esses tais? 
Eu só me reconheço naqueles que Carl Sagan citou:
" Desde quando existem humanos nós procuramos o nosso lugar nos cosmos. Onde estamos? Quem somos? 
Nós descobrimos que vivemos em um planeta insignificante, de uma estrela trivial, perdida em uma galáxia, jogada em algum canto esquecido do universo, no qual há muito mais galáxias do que gente. 
Nós tornamos o nosso mundo significativo pela coragem das nossas perguntas e pelas profundidades das nossas respostas. Nós embarcamos em nossa jornada para as estrelas com uma pergunta feita pela primeira vez na infância de nossa espécie e feita de novo em cada geração com assombro renovado. O que são as estrelas?" 
Pois é. Que nome têm aqueles que não procuram o seu lugar no cosmos? Que nome têm aqueles que vivem em um planeta insignificante, que só tornou-se significativo em virtude da possibilidade de poder abrigar a vida? Que nome têm aqueles que nasceram e morreram sem nunca indagar da Via Láctea: Ôooo Via Láctea, é aqui que eu moro? Existe algum imposto para eu pagar?  Quem fez para mim esse cafofo morninho? Essa viagem que fazemos todos os dias, incessantemente, em torno do sol, e para frente, nos levará a algum lugar? 
Seria talvez por isso que o mundo tornou-se tão pouco significativo: pela falta de perguntas e pela ausência de respostas? Porque ninguém pergunta nada e vivem todos como se já soubessem tudo? 
 Onde está o assombro renovado? Morrerá comigo? 
Eu não sei o que são as estrelas. 
Não sei- nem mesmo- quem sou eu.
 Mas: Graças a Deus por Nosso Senhor Jesus Cristo, porque  sei que Ele é o Filho do Deus Vivo. 
Sei de um jeito pessoal, subjetivo e intransferível, que, às vezes, me faz muito  feliz,  e outras vezes, me faz apenas declarar: Hoje é sábado, a eternidade não é aqui e eu estou com uma baita saudades do céu. 


Foto: Panorâmica da Via Láctea montada por imagens obtidas através da grande angular dos 


telescópios Schimidt e Hale situados no Observatório do Monte Palomar, Califórnia. Fonte: Hale 


Observatories


Ana Ribas




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A ABELHA E O MEL
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 




Olhar para trás e rever uma certa constância nos atos da vida. Isso tem sido algo tão raro! 
Sei que muitos dirão que não, que são os mesmos nas escolhas morais, e com isso  até concordo. A tendência do pau que nasceu reto é permanecer reto, e a tendência do pau que nasceu torto é morrer reto (também) porque creio no poder transformador de Jesus, embora, por vezes, nem Jesus consiga mudar o torto que quer permanecer torto.
Mas não é desse tipo de escolhas que estou falando.  Também não me refiro às inevitáveis mudanças que vamos absorvendo lentamente, como parte do processo de amadurecimento psicológico. Quando criança, e quando jovem, eu era dura como o talo quebrado de uma rosa cheia de espínhos. 
Meu pai perdia a cabeça comigo e me batia, com a sua mão pesada, bem no meio da cara. Ficava o carimbo por longas horas. Um carimbo que eu exibia com orgulho, de tão ruim que era. Ia para o armazém e quando um de seus fregueses me perguntava o que era aquilo, eu apontava o dedo para ele. 
 Essa era eu: uma peste metida a gente. Minha mãe dizia: "Antonio, pai não bate em filho, na cara! Tanto lugar para você bater - bata nas pernas, na bunda, em qualquer outro lugar, mas não na cara." E ele arrependido, balançava a cabeça e dizia inconformado consigo mesmo: "mas é que essa menina me responde de um jeito  e me olha de um jeito, que eu perco a cabeça!"
 É verdade, pai. Eu merecia apanhar na cara, nas pernas, e na bunda, por não lhe render a devida honra e o mais profundo respeito, que- como pai-  você merecia de mim. 
Eu era uma flor inteira de duro talo quebrado, e hoje sou uma flor quebrada de flexível talo inteiro. Mudanças às quais não me refiro aqui.
Também não estou me referindo às mudanças espirituais, que se incorporam às mudanças psicológicas, de forma que, muitas vezes, não sabemos distinguir se fomos nós quem mudamos, ou se foi Cristo quem nos mudou, com o seu novo habitat dentro de nós. 
  A tendência do ser humano normal é envelhecer com mais ternura, pelo acumular de sua própria sabedoria, aquela que os anos lhe trouxeram, e pelo quebrantamento do espírito que Deus providencia, a cada dia,  na vida dos seus amados. 
Essas mudanças todas são benéficas e altamente desejáveis. O vinho velho é melhor. Precisa ser melhor. Se não fôr, é porque azedou de vez. 
Do que estou falando então?  Quando digo:"Olhar para trás e rever uma certa constância nos atos da vida. Isso tem sido algo tão raro!" 
Estou falando da precisão de um caracol que se enrola e permanece enrolado, e permanecer enrolado, é o seu jeito sem compromisso de existir. Estou falando de gratuidade. 
  Começar uma aula de pintura, e conservar-se pela vida afora aprimorando a técnica.  Caminhar todos os dias como fazia Kant, sempre no mesmo horário, ou no mesmo lugar. Jogar futebol quartas feiras à noite, e sábados  à  tarde. Perseverar em um  trabalho voluntário,  com a mesma fidelidade com que se bate o ponto no local onde se ganha o pão de cada dia. Jantar com as mesmas amigas ou amigos, uma vez ao mês.  Frequentar a academia de ginástica com a determinação inicial. 
 Poder dizer: Faço hidroginástica há 10 anos; faço aulas de dança há 5 anos; faço terapia corporal há 4  anos. Fazer pão integral e comer pão integral, a ponto de não precisar lembrar-se  da receita, e jamais esquecer o  seu sabor. 
Ser regido ou regida pela determinação de jamais abandonar no caminho o corpo antigo.  Estar aqui e não lá. Quem está aqui, que permaneça aqui, e quem está lá, que permaneça lá.
 Isso é raro! Há uma escassez de propósitos. E essa escassez de propósitos tem sido vista também na igreja do Senhor. As pessoas começam o desvendar de Deus de maneira tão apaixonada, e logo em seguida  tornam-se meramente  religiosas. Frequentam o templo  semanalmente por obrigação, e não por convicção. Quando não, debandam de vez, somem, desaparecem, como por encanto. 
Hoje não dá para contar com pessoas que não tenham sido remuneradas para o evento chamado Vida.  
O dinheiro ainda produz uma certa fidelidade. Mas de resto, sempre fica a interrogação: Até quando você estará aqui? Até quando a chama da paixão pela causa manter-se-á  acesa?  
Saber quando o gás está acabando é tarefa relativamente fácil: É só observar a chama. Chama que muda de cor, que bruxuleia,  que varia de intensidade, é sinal de alerta: pode faltar fogo no meio do cozimento. 
A volaticidade dos propósitos humanos, a mim, parece revelar uma doença íntima: o homem está à procura de alguma coisa que ainda não encontrou. E que não encontrará nesta dimensão de maneira plena: Deus se desvenda, mas não se descobre em plenitude. "Hoje vemos como por um espelho, amanhã o veremos face a face".
 Quando essas palavras foram escritas, a arte de fazer espelhos não tinha sido aprimorada, a ponto de se obter a nitidez de agora. Ver como por um espelho, naquele tempo, era ver como por um espelho:  apenas vagamente. 
O espelho mudou, mas a Palavra de Deus continua  a mesma. Ainda o vemos vagamente, ainda apenas o pressentimos, pelo seu agir, pelas circunstâncias misteriosas que determinam os improváveis da vida, e que nos fazem desconfiar que: é ELE!!!
São os bons presságios. Aliando os bons presságios, à certeza da fé, cria-se a busca. Se a busca for intensa, então cumprir-se-á o que está escrito: "Buscar-me-eis e me encontrareis quando me buscardes de todo o vosso coração."
E aí? E aí a busca não termina, mas fica atenuada:  nada mais poderá substituir a sua vocação para a eternidade. Aquele que viu a abelha, sempre virá atrás do mel. 






Ana Ribas




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O PRAZER DE UMA VIDA NORMAL.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.




A visita seria rápida: De sexta feira, às 14,00 horas, até às 2,00 horas da madrugada de domingo. 
 Esse é o horário em que Ivo acorda, e imediatamente, coloca o pé na estrada.  E eu, passageira, que sou, não tenho  outro remédio, senão embarcar na jardineira, sempre de cara feia,  e  deitada no banco de trás. Durmo e babo até a metade da viagem. Depois acordo, e já estamos na metade do caminho. Nessa altura, o mal humor passou, peço café e ele pára.  Ivo é bonzinho e é bom motorista, o que me possibilita tomar café,e dormir de novo- sem babar-  até em casa. 
Mas estamos na ida, e não na volta. 
 Marlene,  a ajudante doméstica  da Sandra, logo que me viu chegar,  foi abrindo a boca e mostrando: 


-"óh rranquei um dente". Um despropósito de saudação, até para tal criatura. Em delicadeza de oferenda, ela me inflinge a desagradável visão.  
Eu: - "éh, que legal." - Sem saber o que dizer, digo essa patetice.  
Mas o pensamento foi longe e direto ao ponto. Acho que sou muito vivida, ou muito esperta, ou muito aguda: saquei tudo na hora.  
Sandra tem um acordo com ela: Quando não recebe visitas aos sábados, ela não precisa vir trabalhar, mas quando recebe visitas, ela deve vir trabalhar. E Marlene, estava preparando a cama para dormir até mais tarde, no dia seguinte.   Percebi,   assim que ela abriu a boca e me mostrou as profundezas do seu ser. 
Mais tarde, de longe, eu a ouvi dizer à Sandra: "meu dente ( que dente?) está doendo." Sandra - que é dentista- abriu o bocão, examinou o local e respondeu: - "que estranho, o alvéolo está completamente cicatrizado, e esse dente foi extraído na segunda feira, não era para estar doendo."  Deu a ela mais analgésico, mais antiinflamatório, e lá se foi Marlene, completamente medicada. 
No sábado, a casa ainda dormia quando levantei, fiz café, tomei café, olhei  a louça sobre a pia, e pensei: "Marlene virá? Lavo ou não lavo?" 
Às 7,00 horas da manhã,o telefone tocou, e antes de atender,  eu já sabia quem estava do outro lado da linha. 
Pois é: -" o meu dente sangrou a noite inteira, e manchou o travesseiro,  e doeu muito, e  a minha cara está inchada, e o olho ficou roxo, e a senhora  avise a Sandra, que a Sandra é muito boazinha pra mim, mas hoje não dá e hoje não vou." 
Conhecendo a filha que tenho, tentei argumentar:
 -" Olha, Marlene, venha só arrumar a casa, em seguida  você vai  embora."
Mas ela não podia: durante a noite, - ela gritara de dor-  durante toda a noite! Até o marido 
estava a impedí-la de vir, penalizado com tanto sofrimento.  
 Então, eu disse claramente, sem nenhum rodeio: "Marlene,  a Sandra é dentista, ela sabe se o seu "dente" doeu ou não. Não adianta você querer enrolar a Sandra com essa história de dente, que foi tirado há uma semana."
" Vamos fazer assim - eu propus- você vem até aqui, enrola o serviço, dá uma disfarçada geral, eu dou um jeito de levar o povo para  almoçar fora, e lá pelas 11 horas você vai embora sem criar problemas nem para você, e nem para ela."
 Não adiantou. Ela disse que não, que não podia vir. Que o olho, que o inchaço, que o dente, que o sangue, que a dor.
 Desliguei e pensei: isso vai dar algo muito próximo da desinteria. Daquelas bacterianas, com muito fedor.
Quando já estava com a metade da louça lavada, Sandra desceu para o café e contei o que tinha que contar: 
-"Marlene  não viria".
 E escutei o que já sabia: 
-"Marlene  não a  enrolaria". 
-"Imagine mãe,- ela disse-  isso é um absurdo, ela não pode mentir desse jeito. Eu sou dentista, mãe, eu sei!" 
 Eu também sabia. 
Quando olhamos para a porta, durinha, em pé, lá estava Marlene: sem edemas, sem sangramento, sem roxo, sem sinais de cansaço, sem outra coisa a não ser uma cara bem murchinha: 
-" Eu pensei bem e vim, pra não deixar você na mão, Sandra. Mesmo com dor,  eu vim. Você é tão boazinha para mim". - Ou seja, ela viera nos fazer um favor: a mártir do dia.  
E aí começou a guerra do Paraguai. Sandra é uma pessoa que não aceita mentiras. Que não suporta artifícios. Que não usa de subterfúgios.  Que tem horror a falsidades. Que não condescende com o erro, mesmo que isso lhe custe a empregada. 
Imediatamente,   foi com ela para o escritório: lugar de castigo! O objetivo de Sandra era que Marlene confessasse a mentira, e então ela perdoaria. Que Sandra sabe perdoar. Mas isso, Marlene  não faria. Ela repetia a mesma história e Sandra repetia que essa história não existia. 
Um breve momento de trégua. Silêncio no norte. No sul, eu lavava a louça.
 Então de novo, Sandra: - "Sabe, Marlene, todos  nós  somos pecadores e eu mesmo sou pó e cinza. 
Quem sou eu para não te perdoar? Fique tranquila: no momento em que você admitir que mentiu, eu perdôo e esqueço. Mas não posso permanecer com você aqui em casa, mentindo para mim. Você é a pessoa que cuida dos meus filhos! Eu preciso ter total confiança em você!"
 Sandra é uma pastora! Mas Marlene não queria ser ovelha, não admitia o pecado e não queria ser perdoada de coisa alguma que - "esse pecado ela não cometera!"- dizia aos prantos.
Nessa altura, a louça já estava lavada e a vassoura me esperava. Do lado de fora, eu ouvia- que remédio? -  e não havia avanço nessa marcha: nenhuma das duas arredava pé da  posição. Impasse total.
-"Pois se você está doente, vá embora e só volte quando ficar curada, porque na minha casa ninguém trabalha doente." - Foi o golpe de misericórdia.
E aí  miraculosamente, ela  ficou curada. Naquele minuto mesmo, já não sentia mais nada. Mas quando Sandra perguntava se ela admitia a mentira, ela dizia que não, que ficara curada ali, naquela hora. 
Poderia parar por aí, não? Eu teria parado. Aliás, eu nem teria começado. Na hora em que Marlene apontou a cara na cozinha, para mim já estaria de bom tamanho, e eu lhe devolveria com o maior prazer o posto que, por direito, lhe pertencia.
 Mas Sandra, não!  Sandra disse que ela só ficaria trabalhando em sua casa, se falasse a verdade. 
Ela afirmava que aquela era a verdade. Então, Sandra repetia que ela podia ir embora. E ela tornava a repetir que estava boa e que não iria embora.
 Resolvi ciscar a terra e entrei na sala. 
 - "Ela já sarou"-  eu dizia. 
 - "Fica quieta, mãe, que na minha casa eu não abrigo cobra." 
E aí a coisa ficou feia para o meu lado.
 -" Você mãe - você!!! - para não ter que fazer o serviço de casa, engole tudo, mas eu não aceito. Na minha casa, cobra não trabalha."
 Na linguagem evangélica, "cobra" está relacionado com a primeira mentira, lá no Jardim do Éden." 
Ser "cobra" é um estilo de viver muito perigoso, para os demais habitantes do jardim. Porque a qualquer hora a cobra pode picar.
 Minha filha,  quando é tomada de um ardor pela verdade, se inflama e me queima. Pôxa, nem precisava. Minha intenção era poupar uma, de ficar sem ajudante, e  a outra, de ficar desempregada. Mas o amparo do amor fôra rechaçado. Pois que se lascassem as duas, pensei. 
 Resolvi posar de espectadora. De espectadores ficamos todos nós: Ivo, eu, Wanderley e as crianças, cada um  cuidando da sua vida. O pai e o avô foram com as crianças para o campo de futebol,  e eu me sentei na sala. Esperando. 
O resultado? O resultado foi um julgamento mais rigoroso do que aquele que existiu no Éden. Tive que voltar à cena do crime.  E foi invocando Pilatos que consegui acalmar a pantera ferida.  
Disse que nem Pilatos seria tão rígido quanto ela estava sendo. Que a outra já aprendera  a lição: nunca mais mentiria. E que agora, era necessário exercitar o amor e aguardar o resultado. 
Que não seria imediato, mas viria. 
Por fim, viria: porque o bem triunfa sobre o mal, e o amor sempre vence. 
E ficamos assim, como no princípio: nem Marlene confessou a mentira, nem Sandra abriu mão da sua preciosa verdade. Que sacrificar a verdade seria condescender com a mentira. Mas confessar a mentira seria uma verdade grande demais. E doeria. 
 E mesmo ficando - assim como no princípio- , de alguma maneira misteriosa, todos nós sentimos que, graças aos rigores da inquisição, graças à sentença prolatada - mesmo que não executada-   a justiça de Deus se cumprira. 
Senti- vou confessar o que senti,- senti  admiração pela postura firme da minha primogênita,  sabendo que nela, o amor se derramaria, em seguida, como sempre tem-se derramado, durante toda a  vida. Ela ama com a mesma intensidade com que defende a verdade. Ela se gasta pela regeneração de uma única pessoa, como se estivesse regenerando o mundo. 
 O que houve depois só a alegria de uma cigarra poderia explicar. A docilidade invadiu a todos. O ar puro  permitiu que aspirássemos em largos haustos a primavera. Que nem era:  era inverno. Mas que luta estranha se travara no ar para conseguir de volta a normalidade, que nos fora, repentinamente, tomada! 
E, repentinamente, devolvida. Pelo avançado da hora, Marlene ficou limpando a casa e a família foi almoçar fora. 
Antes de sair, já distingui Sandra no exercício do amor: 
 -"No freezer tem aquela lasagna que você gosta. Pode descongelar." 
E Marlene responder: 
-" Brigada Sandra,vou deixar a casa bem limpinha."
A bruxa. Aonde estaria a bruxa?  Se alguém houvesse  perguntado, eu não me incomodaria de  levantar a mão: sou eu!
Eu sou a bruxa que relincha  de prazer, quando devolve  a vassoura e  vai ao Shoping D. Pedro.




Ana Ribas




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DES-MILINGUIDA E SMILINGUIDO.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.




  
Ontem fui pregar em um templo evangélico. O que ensinei ali, não vou ensinar aqui. Quando tenho a pretensão de ensinar, escrevo sob a categoria "Mensagens Religiosas." Assim liberto da aprendizagem todos aqueles que não querem aprender, porque nem Jesus forçou as pessoas a entrar -sem fome -nas suas bodas. Portanto, cabe-me respeitar a sua falta de fome. Está satisfeito? Ruim para você. Bom para mim, que vivo com fome. E como! Do verbo comer. Você já reparou como eu sou des-milinguida- aquela parente distante do Smilinguido? Já notou que grandes olhos de des- milinguida eu tenho? Já percebeu que dentro de mim há  pedacinhos de cristais quebrados cuja utilidade me é de um recurso extremo?
 Mas você não: você é inteiro!
 Um dia, eu quis ser inteira. Até descobrir que, se permanecesse inteira, se não fosse 
esquartejada, não poderia  cumprir a minha missão. Alguém já viu uma grande vaca alimentar multidões, se estiver inteira? Não consegue. Precisa-se matar a vaca, esfolar a vaca, cortar a vaca em pedaços, cozinhar a vaca e distribuir um pedacinho de vaca para cada um que tiver fome. 
Então: estou no processo de esquartejamento e cozimento, e  esses pedaços de mim  também são os pedacinhos de cristais quebrados que reverberam e lhe atraem. 
Mas afinal: sou uma vaca ou sou um cristal? Sou ambos. Um cristal para quem só quer o brilho do cristal;  e uma vaca, para quem tem fome. 
Aqui só tem o cristal. Em "Mensagens Religiosas" você encontra a vaca  morta, esfolada, esquartejada, em franco processo de cozimento. É só comer. 
Mas você é inteiro: um grande  vaso de cristal inteiro. Um grande boi reprodutor no pasto. E sendo inteiro que é , vai permanecer inteiro com o que vou contar aqui: uma miudezinha de nada, que reflete bem o que é o homem.
 Então fui pregar, ontem a noite, numa congregação cuja audiência  não ultrapassava o número de  50 pessoas.  O fato objetivo é: fui pregar.  O tema foi: O Jovem Rico do Evangelho de Mateus, no qual inseri um breve falar sobre os 12 discípulos e as 12 tribos de Israel . E acabou-se. 
Vamos agora aos fatos subjetivos: esses me fascinam. Estava lá um irmão, jovem ainda, que me intrigou durante todo o culto. Enquanto as pessoas pareciam me ouvir, atentamente, de olhos bem abertos, o jovem   permaneceu, todo o tempo, de olhos fechados. Sentado, na última fila, tinha o apoio da parede para encostar e por vezes,  dava-me  a desagradável impressão de  dormir, para logo depois se mexer e me mostrar que não: estava acordado. Mas os olhos permaneciam cerrados. 
Contrição, zelo, quebrantamento? O que queria dizer aquilo? Eu não ousava pensar que fosse sono, desinteresse, cansaço, porque se pensasse,  perderia o ardor que me fazia em chamas. 
Meu Deus, como um pregador precisa de um único olhar de reciprocidade, para dar continuidade ao pensamento. Porque mesmo a inspiração precisa de pensamento.  E às vezes, o pregador, só encontra gente de farol baixo. Gente que não ajuda a iluminar a escuridão da sala.
 Mas ontem, não. Ontem os faróis estavam bem acesos: menos o do irmão, completamente apagado. 
O culto terminou, e  aí, quando não precisava mais, o irmão abriu os olhos. Mas não se mexeu do lugar em que estava. A igreja foi esvaziando e eu fui ficando, cumprimentando a todos, antes de sair e voltar para casa. Eu estava cansada, mas feliz: a sensação de missão cumprida traz paz e felicidade. 
 Quando estávamos apenas eu e a pastora, já na porta, vi que  estava ali: uma sombra muda, de camisa preta, à minha espera. 
Sem nenhum preâmbulo, com olhar feroz e desta vez bem aberto,  ele disse: "Não concordo com o que você falou." Ele poderia ter dito: "Não entendi o que você falou." Amenizaria. Mas ele disse mesmo assim: "Não concordo com o que você falou."  
Levei um choque, e ainda assustada, respondi com a voz mais firme que pude encontrar dentro de mim: "Com o quê, especificamente, o irmão não concorda? - Pegue a sua Bíblia- eu disse.  Sim, porque se ele não concordava com alguma coisa, teria que provar biblicamente aonde estava o meu erro. E aí, sem pegar a Bíblia, ele disse: " como os 12 apóstolos irão julgar as 12 tribos de Israel, se Judas era um dos 12  e morreu daquele jeito que a gente sabe?"
Ah, então era isso. Para isso, ele estivera de olhos fechados: concentrando-se para o ataque final? 
 Mas isso era tão fácil, que nem acreditei: Mostrei a ele que Judas fora substituido por Matias e ele respondeu que sim, que sabia que Judas tinha sido substituido por Matias. Se sabia, por que  a interpelação? - Pensei. E ficamos nos olhando. Ele ainda sustentava um olhar duro, de mágoa, como se Judas fosse eu. E eu apenas olhava, e olhando era eu quem perguntava.
 Perguntei se ainda tinha alguma dúvida. Respondeu que "não," que ele não tinha dúvidas, que ele tinha certezas, que  sabia que Judas tinha sido substituido por Matias. Eu esperava que ele acrescentasse: "Mas esqueci".
 E ele não acrescentava e permanecia parado, mudo e fixo, mas o olhar já não se sustentava. O embaraço que o tomou, esse dizia: "Eu sabia, mas esqueci." Admitir, jamais: Admitir, seria ter os olhos muito abertos,  e os dele continuavam fechados. 
E nisso ficamos, e nisso nos separamos. Ele foi embora com o Matias no lugar de Judas, para nunca mais esquecer, e eu vim-me embora com a sensação de que durante o culto um espião da KGB se infiltrara entre nós e tentara me algemar, e me prender, e me açoitar, e me enviar para a câmara de gás, só porque Matias substituíra Judas e o espião esquecera.  
Deus, como são complexos os seres humanos! Entre tantas coisas que preguei naquele lugar, Judas se lhe entalou na garganta, e com um Judas entalado ele ficou, e na saida, com uma machadinha na mão,  me cercou.  Ser pregador da Palavra é tão perigoso!
 Tão perigoso quanto escrever no Recanto. Ainda bem que esquartejada já sou. 


Ana Ribas




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SHIRLEY TEMPLE E SILVIO SANTOS.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.






Tenho que concordar: é verdade que enveredo por estranhos caminhos em minhas crônicas, e que, invariavelmente, esses caminhos levam a Deus. Mas isso não acontece apenas nas crônicas: acontece também na vida.
 Por conta disso, sou de uma inabilidade social tão grande, que o mundo fica de um lado, e eu do outro. Vagamente nos entendemos, mas isso não significa que nos hostilizamos. Somos um para o outro como o estrangeiro que, de chegada num país, não fala, e não entende o idioma local, mas sorri para os nativos da terra, e os nativos da terra sorriem para ele.  E admiram aquele ser. E aquele ser admira aqueles que o admiram. Tudo de longe, porque o de perto causaria muita estranheza.
Senão vejamos: Acompanhei o Ivo a um jantar do Rotary, meses atrás. Lá me sugeriram se eu queria  escrever alguma coisa, para uma tal de Cápsula do Tempo que será aberta pelo Rotary International 
daqui a 50 anos, com depoimentos do mundo todo. E eu respondi que sim, que podia escrever tal coisa.  E que essa coisa seriam duas linhas: "Esta que vos escreve agora, já morreu faz tempo. 
Saiam correndo desse clube  e gastem mais tempo buscando  a Deus  porque a eternidade virá para todos." 
Falei isso porque pensei isso. Mas Ivo não gostou de que falasse o que pensei. Então, para não ter que falar o que não penso,  não falo, não vou, e fico em casa pensando o meu pensar solitário.
Minha inabilidade social é muito próxima da Shirley Temple do Silvio Santos: ela chama de verruga o que é ruga, mas dentro do equívoco ela é toda real.  E o que nela existe de mais equivocado é exatamente aquela parte que nos atrai por ser tão verdadeira. 
 Sinto que sou assim: Uma realidade equivocada. Que atrai a uns e repele a outros.  
Daqui a 50 anos não sei o que serei. Hoje sei o que disse Jesus quando recomendou aos seus discípulos: "Se não vos fizerdes como crianças, não herdareis o reino de Deus".
 Daqui a 50 anos, espero ter herdado o reino de  Deus e obtido a plenitude da filiação. E como eu gostaria que todos os homens  também herdassem e obtivessem a plenitude da filiação,  então, entro no circuito social com essa idéia fixa: fazer com que sejamos verdadeiros, até o limite da possibilidade de - um  dia- nos tornarmos puros como crianças. Com cheirinho de leite recém devolvido. Cheiro suave, sabe? Coisa gostosa. Cheiro de boca de cachorrinho recém nascido você já sentiu?  Tão bom!  Pode ser de criança também. É que na falta de crianças aqui em casa, substituí por cachorros. 
Nesse processo de inabilidade social - em que assumo estar próxima de obter a nota máxima-  há uma coisa que me intriga: sinto-me tão amada pelos nativos da terra! Fico intrigada com isso porque esse amor, entre seres tão díspares, pode significar piedade e piedade eu não quero. Só quero o amor. Então recebo só o amor. E também retribuo com amor. 
 Quando acompanho o Ivo nos jantares, ao iniciar a reunião, o mestre de cerimônias cita o meu nome e diz da alegria de me ter ali e eu fico toda iluminada, sem saber o que fazer direito com a iluminura desse primeiro  amor, que me veio sem que eu estivesse esperando. O rubor me toma e a ternura também. 
 Os outros, que se seguem, eu já espero.  A tribuna é ocupada por novos  companheiros. E todos citam o meu nome e todos dizem da alegria de me ter ali, e eu fico cada vez mais iluminada, até que o meu amor também transborda e digo exatamente o que se espera que eu não diga numa circunstância como aquela.
 Digo o que o sei dizer: Que no meio de um jantar humanístico Deus espera ser o centro. 
Ali tem tudo: tem serviço social, tem amizade, tem companheirismo, tem decência, tem ordem, tem filantropia, tem o que o mundo espera que se tenha na reunião de um clube de serviço. Mas não tem o ensino da Palavra de Deus. Função que eu poderia desempenhar,  se me deixassem. Como não me deixam,  então que ninguém coma do meu queijo. Como sozinha em casa mesmo. Não adianta: Corro o mundo e não me movo nem de mim e nem de Deus!  Se me querem, hão de querer a Ele em mim. 
Silvio Santos aceita que a sua Shirley Temple  anuncie, ao microfone, que ele tem rugas. Eu quero um microfone para  anunciar as rugas do mundo,  e não me dão. Continuo a esperar enquanto escrevo.


* A foto é de Maisa Silva, a nova "Shirley Temple" .


Ana Ribas




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MUAMBEIRA POR UM DIA. 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.






Esta é a segunda vez que troco o título desta crônica: agora vai ser:  "Muambeira por um dia." 
Acho que esse título ficou melhor. 
Então foi assim: No domingo mesmo, Nalva veio aqui em casa e Ivo lhe arrancou a unha do dedão do pé.  Não, não aqui em casa, mas no hospital. O hospital fica em frente de casa. Aqui tudo é tão perto, que sempre fica em frente. 
 Na segunda feira, a minha diarista conseguiu um dia de folga - por obra e graça de Deus - e Nalva fez questão de vir, manquitolando mesmo, para coordenar a casa, cuidar dos meus bichos e coisas tais.  E eu fui para o Paraguai, que a viagem já estava marcada com certa antecedência e ficara ameaçada pelo súbito trupicão de Nalva.  Nalva me ama de verdade! 
 E vocês pensaram que eu estivesse entre baldes, vassouras e esfregões? Não estava! Deus é grande em minha vida! Estava determinado que eu fosse passear, em plena segunda feira, porque aqui em minha cidade é um feriado prolongado: Hoje se comemora o aniversário da cidade e ontem foi ponto facultativo.
E agora, pronto: antes de falar da viagem ao Paraguai, tenho que falar desse descalabro que se chama "ponto facultativo". Ou seja faculta-se ao trabalhador - ir ou não trabalhar- em um determinado dia do ano, em meio aos outros 364 dias do ano, em que lhe é compulsória a presença ao trabalho. O que acontece, todo mundo já sabe: todas as repartições públicas fecham, - que ninguém será tão repetitivo a ponto de querer fazer nesse dia, o que se faz nos outros dias do ano, podendo não fazê-lo. E aí vem a minha proposta muito mais lógica: por que não chamar o ponto facultativo de ponto festejativo? 
Ponto festejativo em minha cidade, significa muitas pessoas indo ao Paraguai- distante daqui 130 km-  comprar umas muambinhas básicas, que aquilo lá é um paraíso de utilidades e inutilidades domésticas, aparelhos eletrônicos, artigos para decoração, tudo vindo da China e agora nos últimos tempos, do Brasil. Compra-se lá o mesmo artigo que se compra aqui, com um preço bem mais acessível. Coisas do comércio exterior, que eu não entendo, mas abomino. E compro. 
E fomos: Ivo, eu e Moacir. Moacir é nosso vizinho, quase um  irmão. No caminho, começamos pelas fofocas da cidade, pelas coisas tristes e alegres que ocorreram com a nossa gente, e depois que se esgota o mais rasinho, vamos nos aprofundando: política, saúde, filosofia, e Deus. 
Sempre tenho que estar preparada para as indagações nada fáceis que Moacir me faz, pelo caminho,  a respeito da Bíblia. Moacir é um leitor convicto da Palavra de Deus, mas quando tropeça em algum fato que não combina com a idéia que tem de Deus, ele me chama para resolver. E eu nem sempre sei como resolver, porque Deus não se resolve, Deus se complica de um jeito gostoso. O jeito gostoso do complicado de Deus é assim como quando uma criança está à beira de um abismo e o pai abre os braços e lhe diz: Não tenha medo, venha! E ela se solta, sem fazer cálculos. Tem hora que não 
entendo Deus, mas rodeada de abismos, eu me jogo em seus braços:  Maior seria o risco de querer entendê-lo do que simplesmente abraçá-lo. E assim nos abraçamos. 
Outro assunto que abordamos com frequência, e que deriva desse, é sobre a antiguidade da terra, as galáxias, a via Láctea, o buraco negro e a origem do homem. Ninguém ali é cientista, mas todo mundo dá pitaco.  Ivo é o mais cientificamente correto porque não gosta de ler, mas em compensação, assiste a muitos documentários.  O buraco negro é a sua grande fascinação.  Moacir não aceita a ciência, só a religião. E eu tomo a posição de defender Moacir - mesmo me parecendo 
que ambas não se antagonizam- porque sinto que a sua fé, tão desprovida de argumentos científicos, é muito mais relevante do que as provas com carbono 14, que Ivo teima em nos inflingir.
 Moacir fica indignado com essa história de que a terra tem bilhões de anos. Ele acha que os cientistas declaram o que querem, e ninguém ousa contestar porque não tem como comprovar- nem o que eles dizem, nem o que se poderia desdizer. Para ele, tudo são especulações.  Os testes com carbono 14,  não o demovem da fé de que o mundo foi criado há mais ou menos 7.000 anos, pelos seus cálculos bíblicos. Na verdade, Moacir sabe, mas prefere não saber, e eu louvo a sua coragem de ignorar o consenso geral, apenas pelo seu próprio bem estar espiritual. 
Que, se você não sabe,  revelo agora.  Coisa  maravilhosa é pensar com desespero: apenas Deus! 
Nesse pensar, Deus se revela. 
Acho isso tão lindo, e Ivo acha divertido, numa total falta de sensibilidade, para captar as ondas espirituais que emanam do nosso amigo.
 A Palavra de Deus proclama em Eclesiastes: "Não há limites para fazer livros e que o muito estudar é canseira e enfado." Em seguida completa: " De tudo o que se tem ouvido a conclusão é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos, pois isto é todo o dever do homem."
 Moacir está cumprindo os dois mandados: ignorando os livros, os achados da ciência mais recente, e temendo a Deus e guardando os seus mandamentos.  Ivo não sabe o quanto isso lhe faria bem. E enquanto ele não sabe, nossas viagens para mim, são extremamente reflexivas, porque cada um de nós, tem um único objetivo: o encontro máximo de um ser  consigo mesmo, através da diversidade que há no outro. 
Paraguai para Ivo, eu, e Moacir é  isso: uma viagem na paz de Deus; algumas bugigangas que se compram no embalo da emoção consumista - e que só depois  se percebe a total inutilidade de tê-las comprado; muito cansaço no final da tarde,  e a volta abençoada para casa, com o saldo do amor, da alegria, da indignação, da perplexidade, da vida, com as suas tramas subjetivamente traçadas no escondidinho -  uma fome que cada um de nós, acabou de revelar para o outro. 
Esta é  uma fome endêmica, uma fome necessária para nos fazer  "ver os servos a cavalo, e os príncipes, andando a pé, como servos sobre a terra." ( Eclesiastes). 
Estamos em casa, de volta para o futuro. E a guerra do Paraguai continua sendo unicamente nossa, até a próxima viagem. 


Ana Ribas




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PÉ NA BUNDA.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI






Mas então é assim? Você liga para mim- a cobrar, de celular para fixo -  e diz : "amanhã, não vou trabalhar. Machuquei o pé, não consigo andar." E fica tudo por isso mesmo?  Você sem conseguir andar, e eu sem conseguir respirar? Até que o seu pé fique curado e eu esteja morta?
 Como me deixei ficar nessa total dependência, sem nem sequer perceber que, um dia, você machucaria o pé? Como não avaliei que o seu amor por mim não ia além de um pé machucado? 
A sua vastidão em minha vida, tem sido além dos limites éticos suportáveis, convenhamos. Mas isso não é culpa a que se lhe possa atribuir. Isso é um castigo que recebo, tardiamente, por nunca ter feito a lição de casa.  
Isso vem de longe: vem da infância, quando minha mãe cortava o bife, para que eu não o comesse aos pedaços, arrancados. Vem do sapato pulseirinha, que eu não abotoava, porque sabia que não passaria o portão da rua, sem que ela o tivesse abotoado - de quebra, a meia soquete, ganhava uma charmosa  viradinha.  Vem da juventude, quando meu irmão, percebendo a má criação,  dizia: "isso aí é um volume" e eu jogava para trás a  cabeleira, empinava o nariz, e  sacudia os ombros, odiando o sentido concreto da palavra, e amando o figurado. Tão bom me era, ser um volume em 
casa. Com aquela vasta cabeleira negra,  aquele corpo de gazela, e aquele cérebro de galinha inteligente.  
Fui um volume bem protegido, até a morte da minha mãe. Se me faltava a Nalva da época, ela me era a Nalva, e o fazia como se, ser Nalva para mim, fosse para ela, a função de maior relevância no universo. 
Minha querida mãe! Nesse dia, comíamos fora. E eu acabava por achar tão gostosa a fazeção doméstica,  daquele jeito  fácil. Quando eu não sabia, ela socorria. Quando eu cansava, ela me fazia descansar, enquanto ela: ela  nunca se cansava!  E, invariavelmente, seguia-se a frase tranquilizadora: " o dia está inteiro." Mesmo que fosse 5 horas da tarde, o dia sempre estaria inteiro. 
Que saudades de você minha mãe! Você nunca machucou o pé. Você nunca me deu com um pé na bunda, exatamente onde me dói -agora - o pé machucado de Nalva.  
É, esse sentimento de desamparo me vem de longe. Vem do tempo em que minha mãe  dizia para quem quisesse ouvir: "Ana só tem jeito para os estudos. Não adianta forçar, que além dela não aprender, sobra muita bagunça para mim limpar".
 Ela dizia:  "para mim limpar"  e eu sei que "mim" não pode ser sujeito, mas ela não sabia. E por que eu sei? Eu sei da mesma forma que sei que -"por que"- pergunta é separado e -"porque"- resposta é junto.  Porque só levava jeito para os estudos. E por que ela não sabia? Porque não levava jeito para os estudos, oras.
Mas hoje: hoje! Véspera de segunda feira! Hoje,  de que vale o "mim" o "por que" e o "porque" se amanhã  a casa vai estar por limpar, a roupa por lavar, o almoço por fazer, e eu não sei  por onde começar, e nem por onde terminar? E não tenho mãe, nem Nalva, nem mesmo a diarista disponível para me ajudar? 
Pensando bem, também não sei empregar direito o "onde" e o "aonde", e pensando melhor, não adianta disfarçar: estou em apuros e terei que me virar! 
 Assim sendo, hoje não é o dia de "onde" e nem de "aonde", é dia de "por onde". Por onde darei conta do recado, eu que só sei escrever recados? 
Ah, nesta segunda feira em que, implacavelmente,  me verei  sem mãe e sem Nalva, queria poder, enfim,  conquistar a alforria de não depender de outro,  escrava que tenho sido de mim mesma,  das minhas  limitações domésticas, desde os séculos dos séculos.
 Queria poder fechar a porta desta casa de milhões de metros quadrados,  libertar meus bichos em algum lugar encantado, botar uma mochila nas costas e sair pelo mundo, olhando flores e admirando pirilampos. De repente, me tornei tão natureba...!!!
Sem ter que ouvir a Silvia dizer: "mãe, você é uma mulher ou um saco de batatas?" ( sou um saco de batatas... de batatas baroas.) Sem ter que ouvir Ivo  espumando a sua doce vingança de milhões de anos: "larga um pouco desse computador e vá cuidar da sua casa. É sua, minha filha." 
E eu quero lá ser dona de casa, meu filho? Eu quero é voltar para o útero da minha mãe, e ficar ali até o pé da Nalva sarar. Sem o peso da domesticidade sobre mim. Sem ser dona de nada.
 Eu quero a liberdade compulsória de apenas ser nada. 
Sendo essa que sou. 
Em tempo: nobres colegas recantistas não aceito sugestões que não me venham ao encontro com um balde e uma vassoura. Pago o valor da diária. 


*Imagem pesquisada no google.


Ana Ribas




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POR ONDE ANDAM VOCÊS?
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI






Não evoco os acontecimentos do início do século passado,  porque deles não tenho lembrança.
Olhando para este retrato sépia familiar, evoco o perfume de alfazema espalhado pelo ar, a pureza do linho branco,a beleza, o ar romântico, a elegância das damas e dos cavalheiros que se tornaram petrificados, na posição em que escolheram ser fotografados. 
Quem cruzou as pernas, de pernas cruzadas ficou; quem sorriu, o sorriso congelou; quem entrelaçou as mãos, não pôde mais soltá-las; quem pôs sapato apertado, ficou para sempre calado;  quem desviou o olhar, perdeu a vez de voltar; quem sustentou o olhar, quedou-se  a nos observar. 
 Quem quis dizer para a câmera: sou sério(a) , sizudo(a), ou apreensivo(a), para sempre será sério(a), sizudo(a) e apreensivo(a). 
As matronas buscaram esconder mas quem mandava ali,  se pode deduzir aqui : quem senta no trono é  rei, rainha é para inglês ver. 
Olhando  esse retrato sépia familiar, sei quais delas eram alegres, felizes, e acostumadas com a vida.
 Quais  eram amarguradas, mal amadas e de certa forma, revoltadas.
 Quais eram solicitadas e quais eram  rejeitadas. 
Quais eram as boazinhas e quais eram  as bruxinhas.
 Quais eram as invejosas e quais eram as generosas. 
Quais quiseram retocar o nariz e não tiveram Pitanguiz.
Quais tiveram várias cores de carteiras, que combinavam com  as várias cores de vestidos. 
Quais disfarçaram com as mãos, a falta do acessório tão querido. 
 Sei quais  dessas damas  quiseram  mirar além dos horizontes e lhes negaram um horizonte. 
E quais quiseram  mirar o umbigo, e viveram felizes mirando o umbigo. 
  A única que sorriu, para sempre me atraiu. Um dia, serei como ela. Tão feliz e tão singela. 
Mas hoje me pareço mais com a dama de olhar comprido: a quarta da esquerda para a direita. Nem ligo para o feio do vestido.
 A que segurou os joelhos com as mãos, quis dizer: "eu não tenho uma carteira, mas tenho uma direção. Em mim ninguém manda, não." Por essa tenho simpatia, mas me falta a empatia. 
Enrolada que sou.
A que não cruzou as pernas disse: "quero ser diferente." Mas morreu, no meio da sua gente. 
Querer só não adianta,minha filha.  Para ser diferente tem  que  mostrar garras e dentes. 
 Todas pareciam  contentes, mas não estavam. Estavam apenas carregando o  fardo sem curvar os ombros, sem franzir a testa, disfarçando a morte interna que as corroía a cada dia.
 Quando ouviam música italiana choravam, mas se chegava alguém, na certa,  era resfriado.   
Meu Deus, para onde foram os fardos que as damas e os cavalheiros arriaram ao chão? 
Vieram parar diretamente em minhas mãos? 
Olhando para este retrato sépia familiar, sei quais desses cavalheiros eram valentes e corajosos, e quais eram medrosos .
 Quais  eram  os mais ricos e quais  eram os mais pobres. 
Quais os que decidiam e quais os que obedeciam.
Quais  os limitados e quais  os inteligentes.
Sei de quais  deles, os demais diziam : "esse é mandado pela Maria". 
 Também sei quem era o chefe do clã e qual a respectiva chefe da casa. E consequentemente, a chefona do clã inteiro.  Essa dona era bem mandona. 
Sei que todas as nobre damas  manobravam  os  circunspectos  cavalheiros, e, na cama, entre os lençóis,   decidia-se o  melhor.  
Entre elas, porém,  apenas sorriam e  de nada sabiam. Sonsas eram por inteiro, mas  só na frente do vespeiro. 
Tolerava-se apenas  que lhes coubesse a  sugestão de quantos metros de tecido deveria ser comprado para repartir entre as nove famílias, com o resultado financeiro da próxima colheita. Que serviria para a confecção  de lençóis, camisolas,  camisolões, panos de prato, calcinhas, e toalhas de mesa. Naquele tempo, prontas,  não se achavam tais lindezas. 
Nem absorvente higiênico. Só toalhinha. 
Sei que a escolha do tecido incluia um ligeiro mal estar: entre linhos, veludos e sedas, com qual ficar? 
 Estela queria o xadrez, Mariquinha preferia o listrado,  e Madalena  o branco imaculado. 
Francisca era apaixonda por um amarelo, mas Rosinha e Imaculada, se uniam no caramelo. 
Hoje me vem à lembrança, por este instântaneo familiar, o perigo oculto que existe ao se posar para uma foto. Quero libertar a todos dessa imobilidade e não consigo. 
Meu Deus, o que faço eu comigo? 
 Rasgo todas as minhas fotos e destruo os negativos!


* A foto é do clã Bernardelli - diretamente da Itália para o Brasil, - a quem peço perdão por esta pífia inspiração. Ana Ribas




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O OURO DE MAURREN.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 






Maurren não é uma atleta comum, e não afirmo isso  pela medalha de ouro que acabou de conquistar. 
Os argumentos que vou defender, farão de mim a comentarista de uma visão direcionada, e essa visão nada tem a ver com esporte. Tem a ver com intuição, com percepção, com a capacidade de saber apenas sabendo. E sabendo sei. Nunca contarei com unanimidade nas opiniões que sustento com embasamento apenas perceptivo. Só os intuitivos entenderão a  subjetividade do fato. Para esses ofereço esta crônica completa, para os demais ofereço os fatos, e para Maurrem  o título de Atleta do Ouro de Deus.  Vamos nessa? 
Maurren não é uma atleta comum, e explico porquê:   os momentos decisivos em sua vida, foram 
Feitos de vitórias e de derrotas, ao contrário da grande maioria dos atletas, em que os momentos decisivos, foram sempre de vitória.
 Os desportistas, de uma maneira geral,  provam tanto a vitória quanto  a derrota, e  perder é parte inerente ao ofício.  Mas Maurren não só perdeu, Maurrem desistiu. Ficou 3 anos sem treinar e abandonou o esporte, tempo suficiente para experimentar a maternidade,  amadurecer,  e conhecer-se,  não apenas até os limites do  corpo, mas também da  alma, e quiçá do  espírito. 
Seu olhar tranquilo e sua fala calma, mansa e pausada, revelam mais que temperamento, revelam sentimentos.  No mundo espiritual, leva-se anos para conquistar o ouro - anos de frustração, submissão, reverência, e abandono nas mãos de Deus. Então se ganha esse jeito de olhar para o mundo e se recebe de volta, quase nada - apenas o brilho de uma luz que se destaca. Esse brilho é o ouro de  Deus. 
Maurren é uma pessoa que soube ver a mão de Deus em seus caminhos, e essa visão é a grande responsável pela consagração.  Agradou a Deus dar o ouro a Maurren. E Ele deu, com a diferença de hum  centímetro.
 Eu aprecio muitíssimo esse detalhe de Deus: Sendo tão grande, Ele gosta de se revelar em hum centímetro. Coisa linda por demais. 
 Se para o salto a distância, hum centímetro faz a diferença entre o ganhador e o perdedor, para Deus, hum centímetro é apenas uma declaração de amor. Deus disse a Maurrem: "Há tempo para todo propósito debaixo do céu. Há tempo de ser humilhada, e tempo de ser exaltada. Há tempo de receber desconfiança e ceticismo, e há tempo de colher aplausos apogísticos. Há tempo de ganhar Sophia e há tempo de ganhar Pequim, o Brasil e o mundo. Como em Eclesiastes, há tempo para tudo." 
 Tudo bem, sei que os céticos dirão: "ela treinou duro". Mas ela treinou como vendo o invisível. 
Qualquer pessoa que tenha um mínimo de discernimento espiritual, soube distinguir nas declarações dessa jovem, antes da ida a Pequim, a mesma disposição férrea que pôde ser encontrada nas palavras do apóstolo Paulo, acerca da sua trajetória cristã: " Portanto, corro, não como indeciso; combato não como combatendo no ar."( 1 Cor. 9: 26).
A carta que entregou aos seus treinadores, momentos antes da vitória, confirmam a tese de que,  se sabia vencedora, por esse saber interior que o Espírito de Deus concede, àqueles a quem Ele deseja conceder. 
As manchetes confirmam que Maurrem previu a final. Ninguém escreve uma carta de agradecimento, antes de receber a recompensa. Mas Maurrem escreveu. Em  pressentindo a vitória, em tempo anterior  à  melhor marca do mundo desta temporada, Maurrem recebeu a medalha de ouro das mãos de Deus, antes de recebê-la das mãos dos homens. 
Senão vejamos: na vida dessa campeã, houve momentos em que a vitória virou o jogo, mas também houve momentos em que a derrota foi a responsável pela grande virada. Essa paulista de São Carlos, tem em seu histórico  uma estranha curva descendente que, de repente, como que impulsionada pela trajetória da própria descendência, faz uma pirueta fantástica que a leva de novo para cima e para o alto. A física deveria  ter um nome para esse evento,  mas não tem, porque ele é apenas espiritual. Não dá para nomear, dá  para sentir e observar. 
 Ela admite isso. Ao embarcar a Pequim,  Maurren tinha no semblante a serenidade de quem soube ver que "todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus." Atribuiu  a dolorosa experiência de ter sido flagrada e punida no exame antidoping -  pelo uso de uma pomada cicatrizante, -  como estratégia de Deus para lhe presentear com sua filha Sophia. E aventou a fé de que, aquEle que lhe dera Sophia, poderia ter um grande projeto pessoal, para ela, em Pequim. 
A isso se chama visão espiritual. A visão carnal não se contenta com nada menos do que o sucesso. 
Se tem o sucesso, tem o entendimento e a perspectiva adequada, de acordo com os padrões do mundo. 
Sucesso é bom e eu quero - pensam os carnais.  Mas a visão espiritual descortina horizontes que nenhum pódio, por mais alto que seja, pode oferecer. Desse pódio invisível  o "atleta"  recebe a vitória, enquanto ainda percorre o estreito e solitário  vale da derrota. Nesse sentido, a vitória de Maurrem foi a vitória de Deus. Nesse sentido, a medalha de ouro de Maurrem tem algo do brilho magnífico do ouro de Deus.
Por esse ouro, - pelo menos para mim,  comentarista esportiva a serviço da BBC do Céu - por esse ouro, Pequim valeu a pena.


* Imagem pesquisada no google. 


Ana Ribas




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JÔ CALÇADOS.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.






Já vou avisando logo que esse texto não tem muito sentido para aqueles que não moram em Cruzeiro. 
Mas tem todo sentido para aqueles que se sentem peregrinos no planeta terra. Sei que desde a última terça feira o meu povo espera por essa mensagem e mesmo agora não me sinto ainda em condições de liberá-la.
Não quero parecer excessivamente melancólica e depressiva. Mas a morte é de uma violência que nos coloca a todos em estado de prostração psicológica. Sim, somos seres espirituais, mas que falta nos faz a presença de uma pessoa à qual estávamos acostumados a chamar pelo nome, a dedicar pensamentos, sentimentos, bons presságios, amor, cuidado. De repente, o vazio. De repente, nos vemos sem saber para onde direcionar o afeto que ainda sentimos e que parece nos pesar na alma, 
como chumbo derretido a milhões de graus centrígados. 
Sei que como pregadora do Evangelho que sou, como ensinadora da Palavra que sou, como mulher de fé que sou, não posso sair por aí confessando publicamente a minha desolação por essa malvada que nos leva o melhor da vida: a própria vida. Mas confesso: estou prostrada. A morte da Jô me deixou mais uma vez, sem rumo no planeta terra.
Tenho o meu rumo bem marcado no caminho que conduz ao céu. Todo mundo sabe que sou uma convicta cidadã celestial e que creio na obra redentora que o Senhor Jesus fez por mim. Mas pôxa, ainda 
estou na terra. Ainda clamo por presenças e grito por ausências. Ainda quero meus filhos ao meu lado, meus netos lambuzando o meu sofá  de chocolate, meus amigos bem guardados para que eu possa vê-los à hora em que quiser. Ou que for necessário.
Não sou muito de visitar as pessoas. Só de vez em quando, muito mais de quando em quando, do que de vez em vez. Mas é porque sei que elas estão ali, disponíveis ao meu afeto. É porque sei que elas estão vivendo a rotina sagrada de cada dia. Quando se quebra a rotina, por alguma doença ou por algum desatino desses que acontecem, de repente, e nos deixam a todos desolados,  então me faço presente. 
Mas a minha ausência também é uma forma de amar. É uma forma de dizer: se precisar, me chame. Se não precisar, deixe-me viver a minha vocação solitária para estar disponível para você em tempos de dor.
Não estou fazendo aqui uma homenagem para a nossa Jô que nos chamava a todas de "amor" com voz  doce,  calma, e  modulada. Quase um hino a voz da Jô. Não quero lembrar o quão guerreira ela foi enfrentando essa terrível doença que por fim  a debelou. Não quero louvar a sua saga de mulher trabalhadora, incansável, de múltiplas atividades, às quais ela se entregava para só descansar quando as tarefas acabavam, à noitinha,  e não quando o corpo cansava.
 Não quero fazer uma homenagem póstuma porque tudo isso me parece tão inútil. Não autorizo ninguém a publicar esse texto em nenhum jornal para que todos possam ler. Não é esse o meu objetivo nesta hora em que choro a morte da Jô, de forma tão dolorosa. 
O meu objetivo é dizer que Jô se foi, e que não está nem mais aí  para as nossas considerações sentimentais ou filosóficas. Jô entrou em paz, nós é que ficamos em guerra. Dessa guerra que começa logo cedo, quando passamos em frente à loja dela e não vemos mais o letreiro : JÔ CALÇADOS.  Dessa guerra que continua, quando viramos  a esquina e nos deparamos com  a porta  fechada do seu salão de beleza.  Dessa guerra que fica mais acirrada quando olhamos para cima e avistamos Dona Alice sentada na varanda, muda sombra solitária.
 Essa é a dor mais solitária: a dor da perda de um filho. 
Eu não sei o que dizer, quando só sei sentir. Quando sinto aos poucos, aos pulos, em intervalos que dão e passam, ainda sei dizer alguma coisa. Mas quando sinto aos borbotões não sei dizer quase nada. Ligo para a Sandra e ela me diz: "mãe, o que é essa vida? " "Não sei, minha filha, não tenho resposta." Tenho resposta para a vida que Jesus nos apresentou, vida perfeita, vida inerente, vida eterna, vida que nunca acaba. Para essa tenho a resposta que Ele nos deixou. Sei de cor, sei explicar, sei sentir, sei segurar forte em minhas mãos essa vida, que é  a única vida que realmente importa. 
Mas esta, esta é tão precária. Esta nos obriga a apagar os vestígios da pessoa rapidamente,  deletando o orkut, retirando os letreiros, apagando os luminosos que registram o nome na vã esperança de que, nessa pressa de apagar os vestígios da pessoa que viveu possamos minimizar a brutalidade que nos atingiu em cheio na cara.
Sois mortais, vós todos! Vós que gastais a vossa vida em reuniões filantrópicas, em chás beneficientes,  em clubes de serviço, em bailes, e em jantares de cristais transparentes. Sois todos mortais. Esse é o recado que tenho para cada um: jovem, homem, mulher, adulto, velhos e crianças. Sois mortais no útil e no fútil. 
Jô você não é mais  mortal. Você alcançou a imortalidade dos que não morrem mais. 


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"Perece o justo e não há quem considere isso em seu coração que os homens compassivos são retirados antes que venha o dia do mal? Entrarão em paz, descansarão nas suas camas os que houverem andado na sua retidão." Isaias 57:1-2

Jô descanse em paz!


Ana Ribas




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DANOU-SE TUDO!
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 






Minha diarista  foi, um dia,   ligeiramente espevitada. O que significa a palavra espevitada, no dicionário não sei, mas para mim significa uma pessoa em permanente estado  de uma esperteza avivada. Que lhe salta pelos olhos como chama acesa. Cida era dessa espevitice alegre, acompanhada por uma  felicidade duradoura, que a fazia gargalhar por qualquer motivo. De vez em quando a estridência sonora passava dos limites suportáveis, e alguns de nós éramos obrigados a pedir  um certo comedimento na sonoridade do riso.  Rir faz bem, mas o dia inteiro, e em tal volume, irritaria  até o vizinho. 
Minha diarista era essa, até se converter a uma determinada religião que lhe roubou parte da chama acesa e lhe cristalizou as atitudes e beatitudes de maneira  tal, que nem a reconhecemos mais. Sentimos certa saudade do riso fácil que  nos foi roubado. E dos "causos"  engraçados,   com que ela nos brindava em dias de faxina. Era uma faxina com direito a alguns episódios de Zorra Total. 
É sempre assim: só se valoriza aquilo que já se perdeu, e aquela Cida nós perdemos. Nasceu outra. 
Essa quando sorri, apenas mostra os dentes. Sobe em escadas, com saias que lhe vão do meio dos joelhos até a metade das pernas. Usa blusas com mangas compridas, mesmo no maior verão. E uma curiosidade: sapatos de salto, não pode mais. "Fazem a mulher rebolar" - ela me disse.  Todos os outros "não pode" eu já conhecia, mas esse deve ser relativamente novo. Antes, ela vinha para o trabalho em cima do salto, e tomava emprestada uma das minhas havaianas. Ai que raiva, quando ela 
pegava exatamente a mais velha, aquela que  gosto mais. Agora, ela já vem de chinelinho rasteiro desde casa. Pouparam-se as minhas havaianas. 
Pois com tal mudança eu vinha me intrigando. Coisa por demais, não só por fora, mas também por dentro.  Por isso, pedi para conhecer a instituição cristã que fôra responsável por tal metamorfose ambulante. Combinamos que "assim que viesse um pregador dos bons", ela me ligaria. Eu queria alguém de longe, que não me conhecesse, tão conhecida sou nesse urban mix caipira. 
Na segunda feira passada, ela me ligou: viria lá um homem de Deus cuja histórico de vida não vou contar, porque você não acreditaria em tanto milagre reunido. Nem eu que estou acostumada acreditei, mas sou daquelas que quando não acreditam, pedem perdão a Deus e vão na pouca fé.  
Milagre também é matéria de que gosto muito porque vivo cercada deles. De milagres de outra ordem.
Pedi a Nalva que fosse comigo: "nem morta vou dar esse gosto pra ela", foi a resposta de Nalva, atritadas que estão as duas, com as contradições teológicas entre as doutrinas religiosas da primeira e da segunda. Cida acha Nalva mundana demais, porque quando chega ao serviço, coloca bermuda para trabalhar. Nalva acha Cida louca demais, porque sobe em escadas, e mostra sem bermuda,  o que não deveria mostrar. E ficam as duas alfinetando-se o dia todo, todas as terças feiras. Terça feira é dia de teologia lá em casa. Dia de guerra entre  Irã e Iraque. E eu sou Aiatolá. 
Na hora combinada fui, sozinha mesmo, mas antes lembrei a ela que não  revelasse a ninguém a minha identidade. Que  na minha cidade sou Suzana Vieira também,  mas de peruca, e óculos escuros, com um vestido gastadinho,  nem dá pra lembrar o último papel que desempenhei como Maria Olímpia. Lembra? Nem eu!  
O  bairro tão longe, o templo tão apertado, e as pessoas que me encararam desde a entrada, de maneira indiferente, e um pouco adversa, só não me fizeram sair correndo  porque eu sozinha me ajudei  a ficar,  pensando assim: "Um dia todos nós iremos desaparecer e nesse dia a terra irá  me comer!! Um dia todos nós iremos desaparecer e nesse dia a terra irá me comer!!
Foi com a juda do vermezinho da terra que permaneci estoicamente sentada, até que o trabalho começasse.  Nem mesmo Cida me socorreu, atarefada que estava, vestindo jaleco cor de rosa, como o de todas as demais obreiras, em fila indiana, grudadas à parede. Obreiras à serviço da parede. Nossa, Cida nem me saudou, só disse assim mesmo: "Fique à vontade, você tem liberdade em nosso meio." Coisa por demais  formalizada, frase decorada, um frio de lascar. 
 Fiquei sentida: eu merecia um sorrisinho mais largo, pois se na terça feira anterior,  tomáramos juntas o café, eu, Nalva e ela. Mas não tem importância, pensei. Amanhã é terça feira e eu te pego na curva. Quando você chegar lá em casa vou dizer: "Fique sem ficar à vontade, você não tem liberdade em nosso meio." E parei por ali, porque a mágoa me impediria a bênção, e eu queria a minha.  
Logo no começo, o pastor chamou-me lá na frente: fui descoberta, mas descoberta por Deus. Voltei para o banco com a iluminura dos que recebem a promessa,  e dela tomam posse com mão fechada e dura: Ninguém me toma! 
 O restante do culto transcorreu de maneira normal. Que se anormalidade houvesse, eu também não contaria a ninguém, porque tenho temor de julgar as coisas de Deus. A Bíblia diz que não há perdão para aquele que proferir qualquer julgamento contra o Espírito Santo.  Quando algo me parece estranho, posso  não compactuar, mas não emito julgamento. Entro muda e saio calada.
O que vou relatar agora me exime de culpa, porque nada tem a ver com as coisas de Deus. Tem a ver com o homem, com o capeta, com o mundo e com Cida. 
O culto já ia adiantado, quando uma mulher gorda, sentada na última fila, bem perto de mim, começou a comportar-se de maneira inconveniente: batia palmas e gritava muito. O pastor, identificando o problema, pediu para trazê-la à frente. Para expulsar o demônio. Que a essa altura se voltara em fúria e lá do fundo, gritava de dedo em riste: - "mais jejum, mais santidade! mais jejum, mais santidade!" Esse era o refrão. 
Mas a mulher não viria, sem antes ser alçada por um guindaste: pesava bem mais de 100 kg. 
Cida era uma das obreiras designadas para funcionar como guindaste, na tentativa de arrancar a mulher do fundo do templo e levá-la até ao altar.  Os homens assistiam religiosamente, de longe, que homem ali não pode tocar em mulher, nem mesmo endemoninhada.( de ninho de demônios). 
 E o imbróglio persistia. A massa humana compactada em 110 kg, bem fornidos de carnes,  não se movia um milímetro,  enquanto bradava triunfante o seu refrão;  e o batalhão de  obreiras, todas com seu uniformezinho cor-de rosa,  delicadinhas, acabavam comprimidas contra a parede, a gordura, os ossos e as nervuras  do corpo que, ocupado pela entidade demoníaca,  dali não queria sair. Daqui não saio, daqui ninguém me tira.  Coisa terrível de se ver, mas com tanta agilidade dinâmica, que atraia a todos nós, seres em permanente estado de busca pelo sobrenatural. A 
vizinhança toda se avizinhou do templo. Quem nunca tivesse ido, naquele dia, foi.  
Nesse momento, olhando para Cida eu vi!  Eu vi, de novo, aquilo que me fizera tanta falta nos últimos meses: A alegria espevitada lhe voltara por completo,  e ela ria, ria despregadamente, como nos bons tempos, completamente esquecida da seriedade da função que lhe fôra designada.
  Aproveitando o momento de distração barulhenta que se formara no ambiente, Cida voltara a ser a moça espevitada e de chama acesa. Viva! Enfim, novamente viva e a minha vontade era correr para abraçá-la, dizendo: Bem vinda ao mundo dos vivos, minha querida!  Bem vinda ao recreio:  a brincadeira hoje é uma batalha de cabo de guerra, e você deve continuar botando  toda a força dos seus braços e pernas, na tentativa de mover o inimigo, sem perder esse estoicismo de núcleo faiscante. 
 Mas o inimigo era feroz, e não se movia. Então, alguém teve a idéia: Se o elefante não vai a meca, que meca vá até o elefante. Desceu o pastor do púlpito, com o seu vidrinho poderoso de  óleo ungido, e em nome do Senhor Jesus, expulsou o demônio, que rugindo as suas sujidades saiu,  e foi gritar o seu refrão em outras pastagens.
Mas Cida? Cida novamente se perdera. Premida contra  a parede, a brincadeira acabara. Voltara a ser de novo a obreira cor-de-rosa sem a chama da vida. A vida abismal que fizera dela a alegria das terças feiras em nossa casa.
No outro dia, terça feira, ao avistá-la no apertadinho da saia xadrez  e da blusa branca de manga comprida, constatei o que já sabia:  Danou-se tudo! 


Ana Ribas




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CHINA EU NÃO TE LOVIU.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI






"Falsificações são desprezíveis, imorais e ilegais", passou a ser a frase pontificada pelo 
governo chinês nas  escolas.  Claro que por trás disso, tem a pressão do governo americano. 
Óbvio! A última Veja traz essa e outras abordagens, sobre as cenas domésticas na China: uma mocinha que trabalha por 6 meses em Xangai,  economizando até o último iuanes ( a moeda chinesa) para adquirir uma legítima bolsa Louis Vuitton. 
Certo! Os iuanes eram dela e a bolsa é dela. Cada um trabalha quanto quer,  gasta os seus iuanes como prefere, enche o bolso do Louis Vuitton que merece, fica com o próprio vazio,  e ninguém tem nada com isso. Nem eu. 
A mesma revista abordou a maneira civilizada como os roqueiros fazem suas letras de música: absolutamente sem nenhuma referência  a sexo. Quando questionado a quem o compositor se referia quando escreveu a seguinte frase da música: "ela tem um corpo bom", o roqueiro respondeu que estava fazendo uma homenagem  à  mamãe. 
Certo! A letra da música é dele, e a mãe também é dele. Cada um tem a mãe que não escolheu ter, e se a mãe de um dos integrantes do CMCB é boazuda mesmo, sorte a dela. Numa China de mulheres desprovidas de boazura, ter uma mãe "com um corpo bom" deve render trabalho fixo como ama de leite.
Errado! Graças à política do filho único, adotada pelo governo chinês desde 1979, ser ama de leite é uma profissão que caiu em desuso:  cada casal só pode ter um filho, e consequentemente, a cada filho é-lhe negado o direito de ter um irmão. 
Mas isso é só um detalhe!
Essas e outras informações,  você pode pesquisar na Revista Veja. Tenho observado que a Revista Veja tem sido deveras graciosa com a China dos chineses, ou com os chineses da China. Um amor cultural que surgiu repentinamente, no lastro de um vetor celestial que passa a cada 5.000 anos,  sempre que uma Olímpiada muda o mundo, para determinada localidade do planeta terra. 
Tentarei  ser benévola porque não gosto de qualquer tipo de discriminação. Nem mesmo aquela que a China tem feito com os animais. Buscarei conter os meus sentimentos,  porque dentro de um vasto universo populacional, naturalmente, devam existir as excessões. 
Mas embora eu me controle e me contenha, não posso deixar de mencionar que não consigo estabelecer  empatia com esse povo. E olha que sou uma pessoa com certa facilidade para a empatia. Já tive empatia estabelecida até com Sadan Hussein, bem antes da hora em que estavam lhe pondo a corda no pescoço; já tive empatia estabelecida com pessoas tão inomináveis, que só a graça de Jesus me poderia justificar. 
Mas pelo povo chinês, confesso: tenho que aguardar a evolução da minha espécie, para que a empatia se estabeleça. Devo ser anacrônica demais.
Enquanto isso não acontece tento entender, através das nesgas do jornal, da televisão, da internet, tento entender, olhando de relance, lá longe,  o que acontece  aqui  dentro comigo.  O que seria esse sentimento? Raiva, indiferença ou desolação de mim para comigo mesma? Afinal, o mundo todo está celebrando a China com todas as cores das suas bandeiras! 
 O que acontece com o mundo que não reage ao anacorético, alienígena e mórbido isolacionismo de um povo,  no terreno sagrado das relações humanas, que pressupõem um mínimo de coerência, ainda que fora dos nossos limites territoriais? Será que o que conta são apenas as relações comerciais? 
Apenas as ameças de bombas atômicas? O que não nos atinge como espécie  também não deve atingir as nossas considerações mentais? 
 Que pensam  os turistas do mundo inteiro quando ajudam a engordar os  cofres públicos da China, com o dinheiro de todas as nações? O que acontece com a humanidade? Perdeu a capacidade de  indignação e se vendeu  ao espetáculo das danças, dos tambores e das sedas? 
Eu não vi, recusei-me a ver e sinto muito por aqueles que viram. Ivo viu. Ivo viu a uva.  E ficou deveras deslumbrado com o que viu.  Tanto que cansou de me chamar para ver,  e eu disse a ele que não tinha interesse  em assistir nada relacionado com os chineses que dirigem a China. Eu amo os chineses mas o jeito chinês de ser, ditado pelos dirigentes chineses, me comove até às entranhas. 
A palavra certa é essa: comoção.  
Como posso ser indiferente a um povo que até bem pouco tempo atrás praticava o massacre de crianças do sexo feminino? E que hoje  aceita como normal que, para casar um filho,  tenha que haver um pregão em praça pública, apregoando as características do macho, cuja espécie está ameaçada de extinção, por falta das fêmeas, que ajudaram a eliminar? 
Como posso ser apática com um povo que esconde o que sente  sem dar a isso o nome de hipocrisia? 
Ou que outra coisa seria aquela história de ensinar os estudantes a não chorar, não reclamar, não demonstrar o menor sentimento se o time da casa perder, e ainda acenar com aquelas bandeirolas ridículas que querem apenas dizer: eu nasci assim, eu cresci assim, eu vivi assim, morrerei assim - tão chinesa assim: Gabrieeela!!!
Como posso ser solidária a  um povo que some com todos os cachorros e gatos de rua, de maneira cruel, sabe-se lá se não genocida, apenas para que nenhum turista possa correr o risco de macular as pupilas com o desavisado cão sarnento que lhe cruze o caminho nas ruas de Pequim?
E o que dizer das 300.000 famílias, obrigadas a ceder espaço para a construção das instalações olímpicas, cujos protestos foram raros e isolados? Todas de uniforme e bonezinho maoísta fazendo reverência a Mao Tsé-tung? 
A esse respeito, li na mencionada revista, que a comerciante Yu Pingju, unica voz isolada no meio da turba vermelha,  recusou-se a abandonar a sua casa, depois que todos os vizinhos,  já o haviam feito. Por essa rebeldia,  despropositada para os padrões da concordância chinesa, foi  chamada de "egoísta". 
Chamaram Yu Pingju de "egoísta" por não ceder passivamente o seu teto, a finalidades tão nobres quanto definitivas: a Olímpiada de Pequim sem a qual a humanidade teria a cura da AIDS retardada por mais 100 anos.  
Isso é só para começar. Mas não vou terminar: a lista seria longa demais. Fica por aqui mesmo o meu pífio, inócuo e solitário  protesto. 
Termino reiterando o meu amor pelos gatos e cachorros de Pequim, e de todos os municípios da China,  que tiveram a infelicidade de nascer num país de tanta crueldade; termino por aqui, abraçando todos os ursos cujas atrocidades tem-lhes custado a vida, gota a gota,  por conta de um suposto remédio extraído do  fígado, gota a gota. Termino por aqui, reiterando a minha admiração por Yu Pingju que ousou discordar de 300.000 concordados camaradas maoístas.
Yu: I love you. 


Ana Ribas




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SEM VARA, MAS COM AGULHA.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI 






Não sei se, por efeito dos cartões, que alguns amigos distribuiram,  e com certeza,   por obra e graça de Deus, os limites do meu site ultrapassaram as fronteiras do Recanto. Outros leitores,  além dessa turma tarada por literatura,  têm-me acessado.
  As estatisticas registram que o site está sendo  favoritado, e que o acesso tem-se dado por diferentes portas de entrada. Esta é uma alegria, pela qual eu louvo a Deus. Ele é o responsável. 
Mas é também um susto profundo, a cada manhã.  
Leitor é exigente e tem fome. Para cada fome, o paladar exige um sabor. Para cada sabor, uma nuance de sal a mais, ou de pimenta a menos. Para cada estômago, a sensibilidade mais ou menos exacerbada, requer um cuidado maior ou menor. Alguns são alérgicos a determinados tipos de condimentos.  E a digestão? Quando não cai bem, reclamam, e a conta sou eu quem pago. 
Quero confessar uma coisa a você: Eu me esforço - todo dia eu me esforço, - mas  ainda não consigo entender o meu leitor. E essa é uma grave deficiência em um pretenso escritor.  Faço um texto profundo e abstrato como " Amanhece o dia em Corinto" mas ele prefere a "A vara de Fabiana Murer". 
Não é todo dia que F. M. tem a sua vara perdida, além de que, já se sabe, que a  vara foi encontrada; a concretude da vara de F. M. faz com que ela seja apenas isso: uma vara. Fiz o que pude para que você não ficasse, apenas, com a vara;  mas as reflexões que  acompanham o  amanhecer do dia em Corinto são renováveis, sem esforço. Sou capaz de chorar -de novo- a cada vez que leio o texto. Sim, eu choro. Às vezes, quando escrevo para você, eu choro. 
 Neste duro ofício, tenho procurado colocar subjetividade em tudo o que é objetivo. Escrevi  "A saga da bota". Quando lhe trouxe a bota,  procurei trazê-la embrulhada comigo mesma e com as pessoas que compram botas. A bota é só um detalhe: o que conta é o entrelaçamento entre a realidade e a tensão interna, entre o de fora e o de dentro. Essa realidade, apenas pressentida, é a que transparece nos meus textos. Busco as vísceras e  enquanto não brota o sangue do abstrato, não lhe entrego o concreto.  Afinal, não precisamos ser tão rasos, não é verdade?  
-Mãe, mas você conta tudo? Perguntou-me a Silvia, levemente preocupada?
- Claro que não, minha filha. Sou muito mais profunda. Isso aqui é apenas a décima parte da minha profundidade - brinco com ela.
A décima parte que quase ninguém revela, mas que eu faço questão de revelar. A cada dia mais.  Se estou me escrevendo, não seria para que fosse completamente lida?  
Enquanto estiver por aqui quero servir de espelho. Mesmo que seja para que você diga: "que mulher feia, eu sou muito mais bonito(a)! Saiba, pois, que a se a sua beleza for revelada através da minha incipiente feeldade, terei atingido o meu objetivo. 
O meu objetivo é fazer do homem, um Reinaldo Gianechini e da mulher, uma Gisele Bundchen. Ambos de uma beleza subjetivada - aquela que só poucos vêem, mas quando vêem,  para além das aparências, se encantam. 
Percorro os textos mais  antigos: lá atrás, sob as cinzas do vesúvio, filhos que me nasceram em dores de parto.   Poucos leram, mas, não, por minha culpa. Eu dei o sangue, o sangue que sempre lhes dou. O que faltou foi o título. Um título que chamasse a sua atenção. Está aí outra coisa que não faço: apelar para títulos chamativos a fim de lhe atrair, como se atrai uma mosca, com carne mal passada. Não faço mesmo. Quer ler, leia!  Não quer ler, não leia!  
Azar o seu, e tristeza  a minha: mas é uma tristeza acostumada. 
 Meus títulos serão sempre coerentes com o sentimento que estou vivendo e não com o que um marqueteiro  exigiria.  Excessão foi a vara de F.M. porque essa não tinha outro jeito mesmo. 
Difícil missão fazer da vara uma abstração titulativa.
Logo que criei o site, escrevi durante alguns dias, e em seguida, o entreguei às moscas. Uma característica da minha personalidade irrequieta: começo a todo vapor, e depois me sobrevêm uma canseira, uma sensação de total inutilidade. Para que serve escrever? O mundo ficará melhor ou pior sem a minha verve escriturística? Perguntas difíceis de serem respondidas e que me dão um sono...!  
Logo que me vem o sono,  vou dormir. Encerro no sono,  o sonho e o  sentimento. A escritora dorme e surge então, uma nova mulher. Nova, mas com séculos de infinita amargura. Que sei eu fazer a não ser escrever? Mas se estou rebelada, não escrevo. 
Um dia, quando resolvo voltar a escrever, e liberar os textos represados, não  lembro mais da senha.
 Da última vez, foi assim:  Minha memória falhava, e ajuntando a insegurança de voltar - quero? 
não quero? -   com a trabalheira de recuperar a senha, deixei a vontade passar e fui fazer tricô.
 Esqueci de contar: Faço tricô divinamente! Com a mesma compulsão com que escrevo. Quando estou na fase tricoteira, minha produção é uma blusa a cada três ou quatro dias.  Dessa última vez,  fazendo tricô, como uma máquina veloz, lembrei-me da senha. Que coisa aquela! Veio do nada, como que soprada por voz divina.
 O resultado? Obedeci à voz. Era a voz interna de Deus. As blusas estão  aí, ( faço duas ao mesmo tempo!),  pela metade, esquecidas para sempre, para sempre  até que a escritora durma e a tricoteira acorde. 
As blusas esperam. Meus leitores morrem. A cada dia, quantos leitores morrem no mundo? Já tenho na Espanha, vivíssimo,  Antonio Gil. Vida longa para ti, nobre caudilho de alma poética. Obrigada pela poesia com que me distinguiu. 
Ao retornar ao recanto, obtive uma recepção que não esperava. E por causa dessas coisas que acabei de narrar,  eu me ponho de joelhos perante o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e peço a Ele, todos os dias, que me faça entender o meu leitor, e ser entendida por ele. E que, em nos entendendo mutuamente, Deus também se entenda conosco, e participe ativamente do nosso entendimento. 
Você pode não acreditar, mas a cada manhã, antes de começar a escrever é isso que faço: faço uma oração por mim e por você, para que a osmose  momentânea,  que apenas cintila por um breve momento, resulte na eternidade de  DEUS!
Você, além de me ser tão contraditório, tão exigente e tão importante, ainda é alvo das minhas orações e do amor de Deus. E também do meu. Que faria eu sem a sua leiturinha básica? Pelo menos até que escritora durma, leia o que quiser, mas não me deixe. 
As blusas lá em cima foram da última fase tricoteira. Estavam sendo feitas por mim  e as fotografei para você. Não adianta: não aceito encomendas.  
Só espero que você não me diga:  "como  escritora você é uma ótima tricoteira."  Porque aí seria pra acabar. 


 Ana Ribas




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A VARA DE FABIANA MURER
ANA MARIA RIBAS






A vara de Fabiana Murer sumiu e foi encontrada junto com o material das atletas que haviam sido eliminadas. 
Só isso. Não espere de mim elucubrações mentais. 
 Antes disso, foi varada pra cá e varada pra lá. Ela já chegara a Macau sem o seu tubo de varas, que, por engano, viera na bagagem do técnico. 
Só isso. Aqui sou apenas uma repórter a serviço da BBC de Londres. 
Depois, em Hong Kong foi tanta varada na balsa que liga Hong Kong a Macau, que os chineses se negaram a embarcar na mesma balsa. Não sei por qual motivo.  Só sei assim: "os chineses se negaram a embarcar na balsa." 
Minha função é informar - mas pela metade. Quem quiser saber tudo que compre o jornal.  
Dessa maneira compreendo, - sem nada compreender de saltos com vara, - que  não foi a primeira vez que Fabiana foi afligida pelo excesso ou pela falta de varas.
 Aí, meu Deus, lá vou eu de novo? 
Não quero me repetir fazendo filosofia com a falta de vara de Fabiana Murer. Eu, que já fiz filosofia com o tombo de Diego Hipólito. Não quero. 
Além da filosofia ser pouca, a graça inexistiria, neste dia  sem graça. Neste dia em que escrevo apenas paraAmanhece o dia em Corinto. Inicio este texto às 5,40 da manhã, porque hoje gostaria de guardar o sol, um pouco mais tarde do que habitualmente. Em compensação há dias em que quero guardar o sol por volta das 15,00 horas, mas ele não me obedece.
Amanhece o dia em Corinto. Corinto, atualmente, é um conjunto arquitetônico formado pelas  ruinas da grande cidade que existiu na Grécia Antiga, e que atraiu milhares de mercadores vindos de Roma, Tessalônica, Patras, Éfeso  e kalamaria, potências comerciais da época. Corinto foi um grande núcleo populacional e um próspero centro comercial. 
Corinto foi também um depósito de amores e de dores existenciais, porque  homens e mulheres habitaram ali, e aonde habitam o macho e a fêmea da espécie humana,  também  co-habitam as angústias existenciais  mais profundas que nos distinguem dos seres  primitivos.
 Por isso, continua amanhecendo o dia em Corinto. 
Eu estive em Corinto porque as ruínas me atraem. Viajei milhares de quilômetros para ver ruínas. Elas exercem sobre mim o fascínio das coisas que guardam a ferrugem dos séculos. A ferrugem é o sentimento do tempo. E sentimento é coisa que levo muito a serio. 
Fui ouvir o tempo em Corinto. Sim, claro que vi outras coisas na Grécia. Vi estátuas de homens pelados,  minimamente cobertos por folhas de parreiras. Vi esplêndidos iates ancorados, como aquele que  Onassis usou para passear com Jaqueline, pelas ilhas de Mikonos. 
Onassis que já passou. Jaqueline que já era.
 Vi homens belíssimos, obtidos a cinzel, - e a beleza desses homens era feita de um  nariz grosso e romano. Vi mulheres sem beleza, desenhadas a lápis cera -de cor cinza - e mais não preciso dizer porque não quero lhes ser excessivamente cruel. 
Também não quero  roubar a fantasia que inspirou a música de Chico Buarque: " mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas." -Você percebeu que, em nenhum momento Chico cantou a beleza física das mulheres de Atenas? Pois é! Chico tem bom gosto. Foi buscar outras belezas, de outra ordem, nas mulheres de Atenas. 
Bom: Até pode ser que, de 1995 para cá, com o avanço da medicina estética,  tenham encontrado lápis de melhores cores para desenhar as mulheres de Atenas. Mas naquela época,  eu vos afirmo, o lápis era cinza. E a mão que desenhava tremia muito.  
  Vi o mar  verde-azulado, o céu azul esbranquiçado e as casas branco caiado, subindo pelas montanhas. Um conjunto arquitetônico tão sublime, que mais me pareceu um quadro emoldurado na parede de casa, do que propriamente uma paisagem viva.
 Mas, sinto lhes informar,  não viajei tantas horas na classe econômica de um avião, enlatada feito sardinha, não viajei tanto tempo, para apreciar  um quadro perfeito na parede, um quadro que qualquer pintor pudesse pintar, ou que a televisão pudesse mostrar, com riqueza de detalhes e sem custos. Também não viajei para me deslumbrar com os iates e com o conjunto arquitetônico das ilhas gregas. Que arquiteta não sou. 
Sou operária da construção civil. 
 Viajei para ver de perto as ruinas de Corinto que guardam a mágoa do tempo. E as minhas. Viajei para colocar a doce mão na eternidade. E de lá nunca mais a retirei. Todas as manhãs aqui em Cruzeiro, amanhece o dia em Corinto.  
 Desde que estive em Corinto, ganhei a visão que o Rei Salomão ganhou, bem antes que Corinto existisse: "não há nada novo debaixo do sol." 
Caminhando sozinha pelas ruinas de Corinto, eu vi o velho e o jovem; vi a criança e o adulto;  vi a humanidade cansada da mesmice de cada dia, mas que, - sem saber que aquilo era cansaço, - pensava ser apenas a vida. O habituado cansaço substituindo a novidade de vida e ninguém desconfiando: - todo o mundo resignando - o já resignado jeito de existir. Foi essa a visão que busquei, e encontrei em Corinto. 
  Os homens levantando às 5 horas da manhã para ir às casas de banho, e as mulheres levantando às 5 horas da manhã para ir às fontes de águas. Cada qual abastecendo a sua própria rotina com a sua rotina própria.  
As crianças brincando nas ruas, e os velhos vivendo em prece, assentados nas portas, debruçados sobre o seu passado e  sobre o seu  bordão. Os velhos de Corinto!
 Era assim em Corinto: nascimento, infância, juventude, maturidade,  velhice - vida e morte.  E hoje amanhece o dia em Corinto. Todos os dias, os mesmos dias, continuam amanhecendo em Corinto. 
Eu miro as  mulheres de Corinto e, obediente, levanto-me às 5 horas da manhã para abastecer essa mesma rotina, feita de pontos que formam um  círculo. Cumpro os meus pontos e não quebro a orbicuidade esférica. Quero tocar na eternidade sem pressa, mas com decisão.   
Hoje- especialmente hoje-  quero  caminhar pelos caminhos de pedra de Corinto. Nestes nos quais piso,  ainda não há o eruginoso limbo das pedras. Mas os dias passarão, os anos suceder-se-ão, os séculos tombarão, e no futuro - haverá futuro ainda que você não saiba- e no futuro,  uma mão novinha em folha, abrirá o portão que guardará o que restou, das ruínas da minha casa. 
Dessas ruinas, o distraido não irá extrair nada. Talvez, a única coisa que ele consiga enxergar seja somente isso que serão: ruínas. Mas eu espero que, pelos vestígios da minha vida,  passe alguém montado em Pégaso, o cavalo alado da mitologia grega. E que ao me pressentir por ali, arrie o cavalo, faça uma parada reverente,  sinta do que é feita a existência, toque na porta da eternidade e comprove sem grandes surpresas : "Ela chegou lá! Lá aonde, dentro em breve, eu estarei." 
Mas hoje, 19 de agosto de 2.008, o dia ainda amanhece em Corinto. E amanheceu muito triste, porque perdi para o câncer, aos 38 anos, a minha grande e querida amiga Jocenir Sebastiani. 
Minha querida amiga: que Deus lhe  acompanhe às moradas eternas aonde o tempo, a ferrugem,  a traça  e o câncer não poderão lhe alcançar. Repouse nos braços do Senhor Jesus, aquEle  a quem você confessou como seu único e suficiente salvador, e que é poderoso para guardar o seu bom depósito até aquele grande dia. 
Descanse em paz!  
Para nós, ainda não há perfeita paz: os dias continuam  amanhecendo em Corinto. 
                


* Imagem  do Blog Mochilão sem Fronteiras. Ana Ribas constatar o que já sei. E o que sei, eu que nada sei?
 Ah, eu sei que a vida é curta e misteriosa. Que há dias em que se tem o curto da vida, e há outros em que se tem o mistério do misteriosa. 
Eu sei que há perdas tão irreparáveis e tão doloridas, que para sentir de novo o gosto de mel só nascendo de novo: como abelha! 
Eu sei que o cinza de uma chuva pode acentuar a nostalgia e o brilho do sol pode afrontar a dor. 
 É porque sei essas coisas que ninguém gosta de saber- e tem raiva de quem sabe - é porque sei essas coisas, que não posso ir embora sem dizer -assim, de curtinho- a Fabiana:
 -  "sabe, minha filha, não chore por falta de vara. Tão bom me foi o tempo em que não conheci a vara, que não me conformo de vê-la chorando pela falta de vara.
 Eu, Ana Maria: um dia, sem vara, saltei milhões de anos para trás, e fui cair em Canaã,  bem no colo do patriarca Abraão. Aquele salto, sim! Aquele salto doeu e eu chorei! E choro até hoje, porque nem sei por qual motivo me deram com uma vara invisível e me fizeram cair de costas, para trás. 
Não, não é verdade. Hoje, 14 anos depois, eu  já sei: eu não mereceria a  varada invisível e dolorosa, mas não é por não merecê-la que o universo não a merecesse por mim. Então, escolheram um ponto no universo, e esse ponto, fui eu.
 Obrigada meu Deus! Todos os seus motivos são bons e amáveis, ainda que não possamos compreendê-los. E a isso se chama fé. Fé num Deus que nunca falha.
 Você, Fabiana:  chore não... chore  apenas se algum dia, uma vara pontiaguda atravessar a sua alma e se alojar inteira em seu coração.  Por essa chore.  Mas não por esta que lhe impediu 4,55 x 4,65 m de altura. 
Coisinha rasa por demais.
 Por falta de varas não lhe faltarão os saltos  e  que junto com eles, não lhe venham os 
sobressaltos. 
Mas se vierem -que não lhe falte a fé -ainda que lhe falte a vara.  


* Imagem colhida do UOL.


Ana Ribas




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AMANHECE O DIA EM CORINTO






Amanhece o dia em Corinto. Inicio este texto às 5,40 da manhã, porque hoje gostaria de guardar o sol, um pouco mais tarde do que habitualmente. Em compensação há dias em que quero guardar o sol por volta das 15,00 horas, mas ele não me obedece.
Amanhece o dia em Corinto. Corinto, atualmente, é um conjunto arquitetônico formado pelas  ruinas da grande cidade que existiu na Grécia Antiga, e que atraiu milhares de mercadores vindos de Roma, Tessalônica, Patras, Éfeso  e kalamaria, potências comerciais da época. Corinto foi um grande núcleo populacional e um próspero centro comercial. 
Corinto foi também um depósito de amores e de dores existenciais, porque  homens e mulheres habitaram ali, e aonde habitam o macho e a fêmea da espécie humana,  também  co-habitam as angústias existenciais  mais profundas que nos distinguem dos seres  primitivos.
 Por isso, continua amanhecendo o dia em Corinto. 
Eu estive em Corinto porque as ruínas me atraem. Viajei milhares de quilômetros para ver ruínas. Elas exercem sobre mim o fascínio das coisas que guardam a ferrugem dos séculos. A ferrugem é o sentimento do tempo. E sentimento é coisa que levo muito a serio. 
Fui ouvir o tempo em Corinto. Sim, claro que vi outras coisas na Grécia. Vi estátuas de homens pelados,  minimamente cobertos por folhas de parreiras. Vi esplêndidos iates ancorados, como aquele que  Onassis usou para passear com Jaqueline, pelas ilhas de Mikonos. 
Onassis que já passou. Jaqueline que já era.
 Vi homens belíssimos, obtidos a cinzel, - e a beleza desses homens era feita de um  nariz grosso e romano. Vi mulheres sem beleza, desenhadas a lápis cera -de cor cinza - e mais não preciso dizer porque não quero lhes ser excessivamente cruel. 
Também não quero  roubar a fantasia que inspirou a música de Chico Buarque: " mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas." -Você percebeu que, em nenhum momento Chico cantou a beleza física das mulheres de Atenas? Pois é! Chico tem bom gosto. Foi buscar outras belezas, de outra ordem, nas mulheres de Atenas. 
Bom: Até pode ser que, de 1995 para cá, com o avanço da medicina estética,  tenham encontrado lápis de melhores cores para desenhar as mulheres de Atenas. Mas naquela época,  eu vos afirmo, o Lápis era cinza. E a mão que desenhava tremia muito.  
  Vi o mar  verde-azulado, o céu azul esbranquiçado e as casas branco caiado, subindo pelas montanhas. Um conjunto arquitetônico tão sublime, que mais me pareceu um quadro emoldurado na parede de casa, do que propriamente uma paisagem viva.
 Mas, sinto lhes informar,  não viajei tantas horas na classe econômica de um avião, enlatada feito sardinha, não viajei tanto tempo, para apreciar  um quadro perfeito na parede, um quadro que qualquer pintor pudesse pintar, ou que a televisão pudesse mostrar, com riqueza de detalhes e sem custos. Também não viajei para me deslumbrar com os iates e com o conjunto arquitetônico das ilhas gregas. Que arquiteta não sou. 
Sou operária da construção civil. 
 Viajei para ver de perto as ruinas de Corinto que guardam a mágoa do tempo. E as minhas. Viajei para colocar a doce mão na eternidade. E de lá nunca mais a retirei. Todas as manhãs aqui em 
Cruzeiro, amanhece o dia em Corinto.  
 Desde que estive em Corinto, ganhei a visão que o Rei Salomão ganhou, bem antes que Corinto existisse: "não há nada novo debaixo do sol." 
Caminhando sozinha pelas ruinas de Corinto, eu vi o velho e o jovem; vi a criança e o adulto;  vi a humanidade cansada da mesmice de cada dia, mas que, - sem saber que aquilo era cansaço, - pensava ser apenas a vida. O habituado cansaço substituindo a novidade de vida e ninguém desconfiando: - todo o mundo resignando - o já resignado jeito de existir. Foi essa a visão que busquei, e encontrei em Corinto. 
  Os homens levantando às 5 horas da manhã para ir às casas de banho, e as mulheres levantando às 5 horas da manhã para ir às fontes de águas. Cada qual abastecendo a sua própria rotina com a sua rotina própria.  
As crianças brincando nas ruas, e os velhos vivendo em prece, assentados nas portas, debruçados sobre o seu passado e  sobre o seu  bordão. Os velhos de Corinto!
 Era assim em Corinto: nascimento, infância, juventude, maturidade,  velhice - vida e morte.  E hoje amanhece o dia em Corinto. Todos os dias, os mesmos dias, continuam amanhecendo em Corinto. 
Eu miro as  mulheres de Corinto e, obediente, levanto-me às 5 horas da manhã para abastecer essa mesma rotina, feita de pontos que formam um  círculo. Cumpro os meus pontos e não quebro a orbicuidade esférica. Quero tocar na eternidade sem pressa, mas com decisão.   
Hoje- especialmente hoje-  quero  caminhar pelos caminhos de pedra de Corinto. Nestes nos quais piso,  ainda não há o eruginoso limbo das pedras. Mas os dias passarão, os anos suceder-se-ão, os séculos tombarão, e no futuro - haverá futuro ainda que você não saiba- e no futuro,  uma mão novinha em folha, abrirá o portão que guardará o que restou, das ruínas da minha casa. 
Dessas ruinas, o distraido não irá extrair nada. Talvez, a única coisa que ele consiga enxergar seja somente isso que serão: ruínas. Mas eu espero que, pelos vestígios da minha vida,  passe alguém montado em Pégaso, o cavalo alado da mitologia grega. E que ao me pressentir por ali, arrie o cavalo, faça uma parada reverente,  sinta do que é feita a existência, toque na porta da eternidade e comprove sem grandes surpresas : "Ela chegou lá! Lá aonde, dentro em breve, eu estarei." 
Mas hoje, 19 de agosto de 2.008, o dia ainda amanhece em Corinto. E amanheceu muito triste, porque perdi para o câncer, aos 38 anos, a minha grande e querida amiga Jocenir Sebastiani. 
Minha querida amiga: que Deus lhe  acompanhe às moradas eternas aonde o tempo, a ferrugem,  a traça  e o câncer não poderão lhe alcançar. Repouse nos braços do Senhor Jesus, aquEle  a quem você confessou como seu único e suficiente salvador, e que é poderoso para guardar o seu bom depósito até aquele grande dia. 
Descanse em paz!  
Para nós, ainda não há perfeita paz: os dias continuam  amanhecendo em Corinto. 
                
* Imagem  do Blog Mochilão sem Fronteiras. 


Ana Ribas


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O SORRISO ME AFRONTOU.
ANA MARIA RIBAS. 






Alguma coisa no sorriso de Wilma Martins, condenada por sequestrar Pedrinho, me afrontou. E eu não sei direito o que foi essa coisa que me afrontou. 
Vi a imagem de relance, e já tinha virado a página virtual, quando nada pude fazer, senão voltar. Voltei para ver o sorriso da mulher que foi condenada por sequestrar Pedrinho, no exato momento em que ela deixava o Tribunal de Justiça, tendo nas mãos o benefício de liberdade condicional. 
A coisa que me afrontou - e que não sei dizer qual coisa foi- fez-me esquecer para onde estaria indo eu, neste vasto universo virtual, no exato momento em que me deparei com o sorriso da mulher que foi condenada por sequestrar Pedrinho, saindo do Tribunal de Justiça, tendo nas mãos a liberdade condicional. 
Quando voltei, premida como se pela urgência de avistar uma flor no pântano, recebi bem no meio da cara, o sorriso da mulher que foi condenada por sequestrar Pedrinho, saindo do Tribunal de Justiça, tendo nas mãos o benefício de liberdade condicional. Recebi como quem recebe um ôvo podre, um tomate maduro, uma pedra lançada por um estilingue, em alguma parte bem dolorida do corpo. Que ainda me dói. 
Aquele sorriso foi para mim, vocês acreditam? Ela me sorriu tão doce e me disse: "tome é para você". E eu, malcheirosa que sou, não tive a candura necessária para acolher a sorridente dádiva que me fora dada tão repentinamente. Calada estava, calada fiquei, de olhos bem abertos, sem nenhuma razão de ser. Apenas vendo: uma mulher agradável de ser vista; dentes perfeitos, sem cáries aparentes; sobrancelhas definitivas, moldadas em esteticista; unhas pintadas em tons clarinhos, como convém à mão que balança o berço; óculos escuros, não para esconder os olhos, mas para segurar o cabelo como tiara; correntinha com medalhinha de ouro no pescoço; pele bonita, ainda viçosa. E o sorriso. 
O sorriso de Madona, levemente indefinido, nunca me afrontou. De nenhuma das Madonas, mesmo daquela que de vez em quando coloca a pontinha da língua para fora, quando sorri. O sorriso de Marta Suplicy, depois do conselho salutar no aeroporto, também nunca me afrontou. Nunca me afrontou também, o sorriso de Paulo Maluf, tão simpático Paulo Maluf. 
Mas o sorriso de Wilma Martins me afrontou.
E afrontada fiquei. 


* Imagem copiada do site da UOL. 


Ana Ribas




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A REVOLTA DA SARDINHA.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.




Começa assim: 
Eu já contei aqui, que me tornei extremamente minimalista.  A primeira vez que me deparei com essa palavra - minimalista - foi numa revista de decoração. A casa era pelada e branca, não tinha vasos, não tinha flores, não tinha objetos. O que impressionava era um grande pano de vidro temperado, que subia do piso ao teto, uma escada cinematográfica, uma mesa para seiscentos lugares e um sofá branco onde caberia toda uma família deitada.  Família de 600 pessoas. E o sujeito dizia que esse era um estilo minimalista. A revista tinha que conhecer a casa da minha faxineira: ali está a essência do verdadeiro minimalismo.
Mas deixa pra lá. Minimalismo hoje é um detalhe que introduz a revolta da sardinha. 
Quando se concretizou de vez a revolta da sardinha,  dei tudo o que estava guardado, há anos para aquela ocasião, que não aparecia há anos.
 Comecei me livrando dos vestidos de festa de hum mil novecentos e bolinha, porque não vou mais a Festas. Acho uma injúria quando me convidam para uma festa. Casamento, então, meu Deus, só vou amarrada e assim mesmo, logo depois da cerimônia religiosa dou um jeito de me des-amarrar e  voltar para casa.
 A última vez que fui,  voltei  chorando. Porque me doíam os pés, naquela sandália altíssima. 
Comprei essa malfadada sandália,  recentemente. Eu estava escolhendo outra,  bem menos estilosa, mas muito confortável. Só que a minha cunhada, Marina, estava comigo e disse assim: "benhê, quer conforto, vai de chinelinho havaiana. Não tem essa, não. Pra ir a uma festa, tem que ir em cima do salto."E eu, obediente, fui. 
 Depois de três horas em cima do salto, cheguei em casa desabando e chorando. No outro dia, fiquei descalça o dia todo. 
 Antes, muito antes, da revolta da sardinha,  eu ia à cerimônia e à festa. A contra gosto, mas ia. Depois,  alguns amigos começaram a reparar que eu comia e vinha embora, imediatamente. De fininho. Porque já cumprimentava os noivos,  no começo da festa para poder conquistar a minha alforria, depois da boca livre.  E aí, certas pessoas, cuja amizade permite a liberdade, começaram a verbalizar o que a voz da minha consciência já dizia: - "Nada de comer e sair correndo. Que feio!" 
Tive que concordar: coisa feia mesmo, comer e sair correndo. Melhor sair correndo sem comer.  
"Não tem comida lá em casa não?" - eu me perguntava. "Às vezes sim, às vezes não." - eu me respondia. Quando a resposta era não, eu comia um lanche no Queiroz. Ou um pastel na feira.  
Quando a resposta era sim, eu esquentava as sobras  do almoço e comia, com um prato na mão, sentada lá fora, rodeada dos meus cachorros. 
Ivo não, Ivo fica até o fim da festa. Ele gosta de festas. Ivo é um homem socialmente correto. 
Casado com uma mulher festivamente incorreta. 
 Quando assumi de vez, que era festivamente incorreta,  dei adeus aos salões de beleza. E aqui começa pra valer, a revolta da sardinha. Passei boa parte da vida, até alguns anos atrás com uma cabeleira comprida.  Que exigia de mim escova 3 vezes por semana, tintura, hidratação e coisas tais. Entre a cabeleira que eu cultivava, e os pêlos dos quais queria me livrar, lá se iam mais 2 idas extras ao mês, além das 3 semanais. E manicure semanalmente, e pedicure quinzenalmente. E modelar a sobrancelhas. Até o dia em que me descobri uma sardinha e me revoltei de vez. 
A revolta da sardinha começou com um telefonema. Um único telefonema que me fez enxergar os milhares de outros idênticos que se repetiam a cada semana: 
- Alô, é Ana Maria. Tem horário para mim hoje?
- Só encaixe.
- Ok, vamos lá. Quero escovar o cabelo.
- Deixa eu ver... vou te encaixar às 10 horas, entre a Cida e a Rosa.
-Ok. Quero fazer a mão também.
-Ah, a mão tem que ser as 8,00 horas. Vou te encaixar entre a Madalena e a Iracema.
-Ok. A sobrancelha.
- Sobrancelha... a sobrancelha  a gente encaixa entre os encaixes, na hora em que você estiver sendo encaixada.
Meu Deus, eu não era sardinha para viver encaixada! Ah quanto tempo, estava vivendo encaixada, sem ser sardinha? Milhões de anos? Desde toda a minha vida? Quantas horas preciosas  eu havia perdido, encaixada no meio de sardinhas que  mal conhecia, e que mal me conheciam também, todas nós obedientes  e caladinhas, esperando pela liberdade que nos era periodicamente sequestrada?
Cansei de ser sardinha e viver encaixada. Cortei a cabeleira bem curtinho, lavo em casa, seco naturalmente, faço tintura em casa, faço luzes em casa, faço tudo em casa. Eu e Nalva, Nalva  e eu.  Sem encaixes. Sem custos excessivos. Sem a sensação desagradável de estar sendo confinada.
E como Nalva aprendeu a fazer luzes? Fazendo. Ser minimalista é também um jeito de ser assim: 


"deu certo deu, não deu, dane-se.  Se estragar, corta mais curto." Mas sempre dá certo. Nada que um Kit milagroso da Koleston não resolva.
 Nalva é linda! Sou eu quem faço a tintura do cabelo dela. Nalva também não gosta de ser sardinha. 
Hoje no almoço teremos sardinha. Ivo não gosta.


Ana Ribas




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EU QUERO VER O TOMBO.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 






Não, nem todo tipo de frieza é maldade. Pode ser apenas um excesso involuntário de lucidez, dessa lucidez que nem sempre me vem em horas apropriadas.  Azar o da hora. Preservo com unhas e dentes  a  lucidez, ainda que me queiram louca, por causa do impróprio da hora. 
Jogos Olímpicos de Pequim é hora inapropriada  para conservar a lucidez, mas não abro mão dela. Nas entrelinhas, morde-me  a isca. Ou sou eu quem mordo a ela. 
 Ivo, diante da televisão, como todo brasileiro,   embabascado com tantas performances plásticas, é quem me provoca a lucidez, nesse domingo de manhã.
-Olha, Ana, o que essa Pavlova faz com o corpo!? - Ele tenta me prender enquanto vou passando, distraída,  pela sala.
- Esse corpo que a terra há de comer- Eu retruco, sem mal humor, apenas desinteressada. 
-Olha Ana, a altura da pirueta da Daiane dos Santos! Isso é muito difícil! - Ele exclama, 


extasiado com a gauchinha.
- Difícil é morrer e voltar a viver.- Eu pondero, para que ele me libere de vez. 
- Veja essa chinesa, veja isso, Ana, parece ter o corpo de borracha!!!
- Esse não é o corpo glorioso que vamos receber.  
- Putz, Ana, mas você é uma chata! 
- Putz Ivo, você é um deslumbrado.
- Isso aqui é arte, Ana, isso aqui é espetáculo, isso é domínio do corpo.
- Eu prefiro o domínio do espírito. 


Meu diálogo com o Ivo é real, e eu faço um pouco de charme porque com essas respostas antagônicas, nos divertimos os dois. Uma forma de comunicação enviesada que nos faz rir, na falta de melhores risos.  Mas é também emblemático.  Há uma realidade histórica  na tensão que existe entre esses dois mundos tão desencontrados. Parte do que digo, é para fazê-lo rir. Parte, é para fazê-lo pensar. 
De que vale um dez redondo  para a forma perfeita? E os décimos que se perdem, quando na saida, o joelho falha? Entre vencer e falhar quantos  segundos são necessários? Não é assim a vida? Num minuto você é vencedor, no outro, você é perdedor. Para o vencedor manchetes que duram o dia todo nas páginas virtuais, para o perdedor, manchetes que são rapidamente substituidas por outraS que tragam mais alegria para o povo.    
Por volta do ano 70 DC. viveu Timóteo.  Fomos muito amigos, Timóteo, Paulo e eu. Timóteo era atleta e praticava saltos mortais, uma modalidade que lhe valeu medalha de ouro na Grécia Antiga. 
Timóteo fazia piruetas fantásticas que certa vez o levaram de Corinto a Athenas, num duplo mortal. Logo depois que Timóteo recebeu a medalha, eu ouvi Paulo dizer a ele, discretamente e com carinho, como um pai fala ao filho. Paulo disse mesmo assim: - Timóteo meu filho, "exercita-te a ti mesmo na piedade. Pois o exercício físico para pouco aproveita, mas a piedade para tudo é proveitosa, tendo a promessa da vida presente e da que há de vir." ( 1 TM 4:7-8). 
Paulo disse só isso. Valeu, Paulão!
Mas agora é a vez de Diego Hipólito.  Diego e o tombo na Grécia Chinesa. Paulo não estava lá, mas eu estou aqui e tenho algo a dizer:  As performances perfeitas de Diego para pouco aproveitam. O que vale é o tombo. O tombo é humano, dignificante, sublime, e didático-pedagógico. O tombo, o espanto, o pedido de desculpas e a frase: "não acredito que cai".
Eu acredito que você caiu,  Diego, e seu tombo me foi muito útil. Ele me provou que não há bonecos de borracha competindo em Pequim, há homens de carne e osso. Homens que caem para se levantar humildes, pedindo desculpas por não terem a plasticidade dos deuses da Grécia Antiga. 
Aqueles mesmos que eu encontrei por lá, em todas as praças, em todos os átrios, peladões com "las verguenças" de fora. ( em homenagem à minha avó que me dizia: "guarde muito bem as suas verguenças.")
Tenho guardado, vó, tenho guardado. Minhas verguenças, embora bem guardadas,  não me impedem de corar  quando sinto que a humanidade fica paralisada, bem na hora em que deveria gritar:  Viva Diego Hipólito! Bravo! Bravíssimo! 
Viver, para mim, é assim: um novelo desenrolado lentamente ao fio da minha roca.Que me fura os dedos. 
Para outros, é uma medalha de ouro conquistada em Pequim. Que lhes aumenta o gáudio.
O tombo é para todos.


 Ana Ribas




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