Crônicas 3

DIÁLOGO DE UM AMOR PROFUNDO.
ANA MARIA RIBAS. 





São 10, 30 da manhã de domingo, estamos indo votar e, de repente, bipolar que devo ser, sou envolvida por uma súbita alegria. Uma alegria mansa. Fico procurando um significado para aquilo que me veio, sem que eu saiba o que fazer com essa que me veio. Encontro um significado e compartilho com o Ivo,  como a criança que, totalmente fora de hora, mostra no pé, a meia nova: 

- Ivo!!! Sabe que a idéia de sair em férias com você está me deixando feliz? 
-Jura?! Que legal- ele diz, acostumado com a minha melancolia crônica. 
-Eu só não sei para qual lugar vou levar você comigo. – falo pensativa, procurando na memória um único lugar onde eu realmente deseje estar. Parece que, longe dos meus netos, não há lugar. Mas netos não são “um lugar”. Ou são? 

Ele responde cantando a música da cerimônia do nosso casamento, há 20 e unssss anos:
- “Deve existir um bom lugar só para nós, cheio de paz, cheio de esplendor, um bom lugar...” 
- O cemitério. Eu digo em súbita iluminação. Nem macabra, nem triste, apenas em iluminação.

Rimos muito porque somos assim os dois: perdemos o clima, mas não perdemos a piada. Sem contar que, nessa altura da vida, o cemitério parece-me ser o único lugar cheio de paz e cheio de esplendor. Do esplendor e da paz dos que não sentem mais falta  de paz e cansaram do esplendor. 
Da secção eleitoral,  fomos visitar um casal de amigos e compartilhamos a piada;  e depois  passamos no restaurante, compramos um marmitex e compartilhamos o marmitex; e agora depois de compartilhar esse compartilhado minúsculo com vocês,  vou compartilhar com os meus gatos a soneca da tarde. 


Tenham todos um bom final de domingo. 


* A foto mostra, -  em momento Yoga news -o Gueny,  ( não é Geni é Gueni),  por quem também tenho um amor profundo. 


Ana Ribas




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A CRISE AMERICANA CHEGOU LÁ EM CASA. 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 






Tenho em casa um companheiro que não se dispõe a ter intimidade demais com Deus. Tenho em casa um marido que acredita em Deus, e que lhe é profundamente reverente, mas essa reverência é um pouco frágil. Não aguenta tranco. Essa reverência precisa ser guardada num cofre forte porque se fizer um passeio pelas alamedas das dores, dos sofrimentos e das tragédias, a reverência - essa -se transforma em mudez. E aí, temos um reverente mudo. Que não se indigna, mas fica a beira de. Que não questiona, mas não admite a abertura de um diálogo. Que não entende, que sabe que foi programado para não entender, mas ainda assim,  recusa-se a aceitar tamanha ingerência planetária, sem o seu entendimento. 

Esse homem tem, em casa, uma companheira que se dispõe a ter intimidade com Deus. Que necessita dessa intimidade para continuar a viver. Que acredita em Deus, e além de acreditar, e de lhe ser reverente, precisa encontrar um sentido divino em qualquer situação humana, precisa ver Deus na manchete dos jornais, nos jornalistas, e nos jornaleiros. 

Essa mulher – essa que vos escreve-  gosta de observar os feitos de Deus: nem sempre consegue, mas sempre tenta. E, quando por uma fresta,  enxerga Deus passar - depois do fogo, depois do terremoto, depois da tempestade -,  sai anunciando: Eu vi Deus aqui, eu vi Deus ali, eu vi Deus acolá. 

E anuncia para quem? Primeiramente, para esse que dorme com ela na mesma cama, para esse  que compartilha com ela o mesmo teto.  Esse que não compartilha com ela o mesmo sentimento sobre Deus. 

Temos aí um princípio de crise instalada que já perdura há muitos anos e que não evolui. Nenhum dos lados fica convencido da importância de se pertencer ao lado do outro. Reconheço nesse outro, muita sabedoria para a vida: ele me ensina como fazer amigos e conquistar pessoas (e não é o autor do livro); ele me ensina a viver sem derramar todas as lágrimas- sempre reservando um pouco para as futuras dores; ele me ensina a ser suave nessa terra de suavidades apenas aparentes. Ele tem o sangue bom, vermelho e quente. De nós dois, ele é o elemento água. 

 Mas eu sou fogo e quero ensiná-lo a ver efeitos especiais nas filmagens de cada dia: seja no Brasil, na Europa, na África, ou em EUA.  Quero ensiná-lo a ouvir as mensagens que Deus tem deixado nos quatro cantos da terra. Mensagens apaixonadas, mensagens desesperadas, mensagens de um amor que arde tanto que, às vezes, queima, machuca e dói. Ardeduras, machucaduras e queimaduras necessárias. 

Ontem a noite, por exemplo. Ontem a noite foi assim: mesmo sabendo que esse que estava jantando, à minha frente, prefere o arroz com feijão existencial, resolvi oferecer a ele uma mínima porção da minha degustação celestial.  

 Idéias são comidas dessa maneira: um fala e o outro ouve.  Eu falava que os Estados unidos da América estão começando a experimentar o crivo de Deus. Que toda a economia mundial será afetada como consequência do julgamento de Deus sobre a nação americana. Uma nação que se diz democrática mas age como os impérios assírios e babilônicos agiam com os seus diferentes. Com a mesma crueldade. Com a mesma arrogância. Com a mesma  presunção. Da maneira como os impérios bíblicos do mal agiam contra Israel, nas Escrituras, o império americano age, nesta era,  com os parentes distantes de Israel. 


E Israel aplaude. Por aplaudir, vai sobrar para Israel também. Vai sobrar para o mundo todo que está alheio ao mover de Deus. O mundo todo que está atento ao painel luminoso das bolsas de valores, mas está completamente indiferente ao sinal luminoso dos céus. 

Fico muito confortada quando vejo Deus agir. A mínima ação me é melhor do que um Deus impassível. Portanto, encontro-me extremamente entusiasmada  com a descoberta. Porque essa descoberta,  é a abertura de um cenário. Na procura por um homem que resolva os problemas do mundo, virá finalmente o Anticristo. Eu estou esperando ansiosamente a vinda do Anticristo. Porque antes que ele possa me tocar, serei arrebatada pelo meu Cristo. Mas tudo a seu tempo. E o tempo é esse que começou com a queda das Torres Gêmeas – um símbolo da derrocada financeira que viria, que veio e que ainda virá- e que não sei quando, terminará. Poderá durar 20, 30,  50, 100 anos, mas o que é isso para aqueles que estão esperando o Senhor Jesus voltar há 2.000 anos? 

Vejo claramente o juízo de Deus sobre a América imperialista, sobre a América que, a pretexto de ser uma nação justa, faz ingerências injustas em terras que não lhe pertencem, em povos que não lhe são. 


O colonialismo americano. O colonialismo americano começou no campo das palavras.  Do vocabulário que foi inflingido ao mundo. Eu não me importo de ter passado fome na terra do tio Sam,  por não saber como chamar um garfo pelo nome. Mas eu me importo quando tenho que dizer "slow motion" aqui na minha terra. E digo  porque- se vocês que são a  a maioria- aceitam as palavras que eles nos impõem, eu que sou a minoria, tenho que concordar que a idéia de câmera lenta deve ser traduzida por "slow motion". 

Mas o colonialismo americano não ficou apenas no campo das palavras.  Evoluiu para o campo  das idéias, e do campo das idéias evoluiu para o campo da força. De colonialismo, fez-se imperialismo. 


 A América imperialista, tendo à frente um presidente cristão, deve ter perdido todos os exemplares das Escrituras. E no rastro dessa perda, escolheu ser Senaqueribe, rei da Assíria;  escolheu ser Nabucodonosor, rei da Babilônia; escolheu ser Assuero, imperador desde a Índia até a Etiópia; escolheu ser César, imperador de Roma.

Todos os imperios do mal tinham motivos, além do mal, para invadir Israel. Mas não sabiam. E o motivo – eis aí um mistério – o motivo  era exatamente tratar com o povo de Deus que se havia prostituido com outros deuses e com culturas pagãs. Essa prostituição cultual imediatamente se traduzia num estilo de vida voltado para o mal: o mal dominava as ações dos pais, dos filhos, das famílias, das tribos, dos reis. Israel competia em maldade com os povos à sua volta. 

Deus então precisava agir. Deus é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus que tendo uma aliança eterna com os três patriarcas, tem sido, por essa aliança, obrigado  a ser, para sempre,  o Deus de Israel. Deus não volta atrás em suas alianças. Deus é imutável. " Se somos infiéis, ele permenece fiel."

 Dessa maneira, as Escrituras narram que Deus usava as nações inimigas para corrigir o povo, trazendo-os de volta à verdadeira adoração, aos princípios de justiça,  mas as nações inimigas não tinham a menor idéia de que estavam sendo instrumentos de Deus. Quando o povo de Deus, finalmente reconhecia os seus pecados e consagrava a sua vida, Deus então, julgava as nações inimigas. E o julgamento de Deus sobre essas nações, era diretamente proporcional ao rigor, ou à misericórdia, com que elas haviam exercido a dominação, sobre o seu povo, em cativeiro. 

Ou seja: EUA pode sim, ter sido a vara de Deus sobre o Oriente Médio, mas o rigor com que EUA usou essa vara, determinará o rigor com que Deus tratará agora o povo americano. 

Esse foi o tema da noite de ontem. Que provocou tanta polêmica aqui, e talvez provoque muita polêmica  aí. Mas digo para vocês o que eu disse ontem,  para o Ivo: 

-Deus é soberano e Ele reina sobre toda a terra. Ele abate a quem precisa ser abatido,  e exalta a quem merece ser exaltado.  Ele levanta reinos e destrói reinos. Ele planeja e executa coisas grandiosas, baseado em apenas três de seus inúmeros atributos: soberania, justiça e  santidade. 


Como não temos em nós mesmos nem justiça, nem soberania e nem santidade, quando Deus assistir impassível ao juízo que virá, como colheita,  sobre a nação americana, vamos dizer apenas: “Psiu, Papai tá quieto, mas tá vendo tudo!"




Ana Ribas




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O QUE É A MORTE  PARA VOCÊ?  
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI,



Confesso a vocês:  Os textos que têm tudo de Deus e pouco de mim, sabe-se que  são mais de Deus do que meus. Mas também não me sinto à vontade, apenas revelando Deus em mim: porque os que querem apenas Deus, não virão até à minha escrivaninha. Irão até o pastor, até o rabino, até o padre, até a natureza, até dentro de si, e ali encontrão Deus. Portanto, meus textos hão que ter medida. Hão que ter proporção. Hão que ter convergências, onde o meu leitor possa identificar: aqui está Ana, aqui está Deus, aqui estão os dois juntos. E aqui estamos nós. 

Ontem, o sentimento de não ter feito o dever de casa,  ficou revirando dentro de mim,  até que, cansada de ser revirada,  tomei a decisão de escrever sobre o significado da morte para o cristão.   Quero apresentar esse tema a vocês, sem ignorar o apelo, sem fingir, como fingi até agora: “ não, isso não é comigo.”

É comigo porque a comissão é divina. E se tenho que falar sobre a morte, melhor falar enquanto ainda estou com vida, do que partir devendo a explicação. Uma explicação apenas espiritual, baseada na Bíblia, e na observação pessoal sobre os dois lados de uma mesma moeda, com a qual todos nós efetuamos transação: a vida e a morte.    

 Não dá para varrer e esconder embaixo do tapete os sentimentos que estão aflorados dentro de alguns de nós. Vidas tão jovens estão cruzando a linha de fronteira da morte. Esta semana, eu vi,  como alguns de minha cidade também viram, mas creio ter  visto mais, do que todos aqueles que viram. 

Exatamente por ter visto tanto, Deus encarregou-me de compartilhar com vocês: os de perto e os de longe, todos por quem os sinos dobram também.  Quero compartilhar enquanto ainda está fresco, enquanto a memória recente permanece preservada. Tenho, pois, o encargo de compartilhar o que vi.

Eu vi: A paz na imobilidade da pedra. Essa imensa paz falou da eternidade com tamanha força que hoje sou a porção mais expletiva, aquela que serve para preencher e completar o que faltou dizer. Sendo que não faltou nada. Em pura serenidade, ele nos disse tudo.

Apenas imóvel, apenas dormindo, apenas sonhando, apenas obtendo a restituição que pediu a Deus, apenas sendo frágil, apenas desprezando a força, apenas querendo colo de mãe, apenas pedindo a última morada, apenas suplicando o teto em dia de chuva, apenas desejando a cama em dia de frio, apenas dizendo: “eis o berço” afinal, – ele nos disse tudo. 

Eis o berço onde o guerreiro triste repousa das guerras que não declarou, das batalhas que não deflagrou, da miséria que não decretou, das angústias que apenas viveu, do mundo que não lhe fez juz. Eis o berço, onde tudo parece ganhar um sentido novo. Um sentido novo, que afronta o sentido velho. O velho acordar, o velho andar, o velho acumular, o velho entesourar, o velho aprender, o velho ensinar: tudo velho.

Desse tudo velho, que a nós, os vivos, parece tão novo, a cada dia, e pelo qual nos gastamos tanto: O trabalho, que nos pede a máxima pontualidade;  a vida acadêmica, que nos exige o máximo saber; o amor, que não exige nada, mas nos impele a tudo; a política, que só nos basta sofrer - nem precisamos fazer; os bens de consumo, que consumimos tanto, até que eles nos consumam à exaustão de toda uma vida. 

Então, cabelos brancos, olhos embaçados, mãos trêmulas, passos indecisos, só então dizemos: “é isso a vida?”

Não é isso a vida.  Vida é um estágio e não, apenas, um estado. Um estágio que requer de nós bem mais do que a mera concentração de esforço humano para manter o processo bio-químico em funcionamento. A verdadeira vida é da mesma qualidade de vida inerente a Jesus, a vida eterna, a vida que guarda dentro de si mesmo - a própria origem da vida. 

Jesus é Deus. “ No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Verbo era Deus.”João 1:1 

Ele estava ou Ele era? Ele era e Ele estava! Eis aí um mistério! Ele era um,  fez-se dois e, na formação do homem, finalmente, três: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.”(Gn 1:26).

 O Pai planejou, o Filho executou e o Espírito substantifica e torna realidade para nós as coisas espirituais. 

Não por coincidência, mas por realidade, o universo inteiro é formado por átomos e os átomos são compostos de prótons, neutrons, e elétrons. Três fazem Um e esse que é Um faz movimentar o universo inteiro, que é formado pelos Três.  Eita Deus! (Obrigada meu Deus, por essa revelação tão simples, tão pura e tão cristalina!) 

 E o que é então a morte? A morte é  a libertação do susto, da perplexidade, da impotência, do medo, do mal, das manchetes hodiernas de cada dia: essas,  no pós morte,  não nos atingem mais. 

Mas a vida é depositar, finalmente, todas as dores, todas as angústias, todas as perplexidades, todos os temores, nas mãos daquEle que venceu a morte por nós. Isso é a vida.

A morte, para o cristão, é o que está descrito em Isaias 57:1-2 “ Perece o justo e não há quem considere isso em seu coração que os homens compassivos são retirados, antes que venha o dia do mal? Entrarão em paz, descansarão nas suas camas os que houverem andado na sua retidão.” 

Morte é um estado de paz, um sono, um descanso, uma ausência de sofrimento, um não mais saber notícias do caldeirão do inferno, um não mais ser alcançado por quaisquer enviados das trevas, que tentem fazer de nós, o tema da última reportagem.  

 Sinto dizer-lhes, a vocês, que se gastam tanto em busca do sucesso, do trabalho, da projeção social, da ascenção econômica, do vil metal,  sinto dizer-lhes que todos morrerão com falta ou excesso de sucesso, de trabalho, de projeção social e de ascenção econômica. Morrerão impregnados de reais, de dólares, de euros,   e morrerão até que pelo nariz lhes escape os vermes.

 A terra tem sido injuriada pela inversão de valores, pelo descaso com o planeta, pela pompa e circunstância dos humanos. A terra é simples. Ela  quer apenas a companhia  do sol. Mas, por vezes, parece-me que alguns humanos,  têem a pretensão de querer ser mais do que verdadeiramente somos, e a a terra não nos perdoará por isso. Ela não perdoará a intromissão humana no seu projeto perfeito, elaborado pelo grande Arquiteto do Universo. Ela nos comerá a todos – nhoc, nhoc, nhoc- e para isso tem sido ajudada pelos vermes. Os vermes e a terra são irmãos que se unem contra o inimigo comum. O mesmo inimigo que, lá no Jardim do Éden, invadiu a nossa vida, e nos fez pensar de nós mesmos mais do que convém. 

O homem é o grande predador da terra. Sua ausência faria um bem extraodinário ao Planeta emporcalhado pela imundície dos homens. Um exílio involuntário, por alguns milhões de anos, seria muitíssimo bem recebido pela bicharada nativa – que chegou primeiro, diga-se de passagem. 

Contra a terra, estão todos aqueles que alimentam-se da árvore do conhecimento do bem e do mal, e dela fazem o combustível de suas vidas. Esta é a era do conhecimento. Nunca se acumulou tanto conhecimento, como, também, nunca se chegou tão perto de colocarmos em risco a existência da vida biológica no planeta. Com tanto conhecimento.

 Mas a terra, embora seja a nossa casa, o nosso ninho, o planeta que ocupa um lugarzinho no Sistema Solar, que por sua vez está abrigado, não no centro, mas na periferia da Via Láctea, - a terra - ainda não é o alvo: o alvo é o homem. 

Está chovendo em nossa cidade: chove na terra. Que diferença isso fará? Que diferença fará saber que choveu? Que diferença fará, assistir a vitória do próximo(a) prefeito(a)? Que diferença fará, se houver uma recessão econômica em âmbito mundial? Se houver dinheiro, e não houver alimento? Se o efeito estufa, estufar a terra? Que diferença isso fará?

Tudo bem, você quer que eu mencione o oposto, o lado bom da vida. Pois aceito o desafio. Farei isso também: que diferença fará, se as estações produzirem o verão no verão, e o inverno no inverno? E entre elas, o outono, seguido da primavera? Que diferença fará, se as bouganvileas florirem todas? Se não houver mais pobres na terra? Se o Brasil ganhar todas as copas do mundo? Se a próxima rodada Dhoa chegar a um consenso que não nos doa no bolso? Que diferença isso fará? 

Morreremos todos. Ao fim do ciclo, tombaremos: um após o outro. E outras chuvas virão, outras estações suceder-se-ão, outras guerras e outras pazes serão estabelecidas,  outros homens nascerão, com uma porção de maldade intrínseca, e igualmente, morrerão.   

Para os mortos, não faz nenhuma diferença os fatos naturais ou sobrenaturais  da terra.  E para nós, - que somos os mortos em outra forma, - que diferença isso fará daqui a 50, 70, ou  100 anos?  
 Diante da eternidade, apenas uma coisa pode fazer diferença: sermos  filhos de Deus, pela preciosa redenção efetuada por Jesus Cristo, e recebida por nós como presente do céu. Pura graça!  Para isso, é necessário um transporte de reino: o homem precisa sair da esfera de Adão, e entrar na esfera de Cristo. De que maneira isso se faz? A fórmula bíblica é: Crer com o coração e declarar com a boca.   Crer e dizer: “Eu recebo Jesus Cristo como meu único e suficiente Salvador! ( Romanos 10: 8-10).

Fomos programados por Deus para sermos seus filhos, - em Cristo,- e na qualidade de filhos,  nem a morte e nem a vida deveria nos amedrontar. Nossa luz está acima e além,  como cidade edificada sobre o monte. Nada nos atingiria  se compreendêssemos,  enfim, a posição que nos está garantida, por herança,  nas regiões celestiais.( Efésios 1)

A morte para nós é como o ferimento no calcanhar de Cristo: um sono, do qual acordaremos sem maiores danos. ( Gn. 3:15).  Mas, para aqueles que não pertencem a Cristo, a morte será como o ferimento na cabeça da serpente: morte eterna que não é morte mas um queimar eterno no lago de fogo. (Apocalipse 20: 11-15). 

 Embora essa verdade seja objetiva e segura, poucos atingiram a revelação interior, capaz de revolucionar toda a existência humana. Tentamos, mas não conseguimos atingir esse estágio; não conseguimos elaborar o fato maravilhoso que Paulo descreveu em 1 Coríntios 2:9: “ as coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam.”

Não obtendo a substantificação dos fatos espirituais,  sofremos. E por sofrer, choramos. E por chorar, comovemos o coração de Deus. E finalmente, Deus, comovido ao extremo com um sofrimento extremamente desnecessário,   intervém e diz : Vem! Vem para o mundo dos irremediavelmente vivos e tome posse, por antecipação, da herança eterna que vos está preparada, desde antes da fundação do mundo. 

A morte é um castigo, a morte é o último inimigo a ser vencido, mas para os filhos, Deus concedeu  o penhor do Espírito que se contrapõe à morte.  Com o nosso penhor, a morte não nos toca.

Há serenidade e paz naqueles que dormem em Cristo.  A paz que eu vi estampada  na face imóvel e serena, que ardia em vida. A paz que já não me deixa distinguir se:  mortos somos nós - os vivos, - ou se vivos, são os que morrem em Cristo, antes de nós. 




Ana Ribas




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ESCOLHA A VIDA.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.






Esta é uma mensagem para náufragos e para navegantes. Não é uma crônica. É uma mensagem cronificada, colocada dentro de uma garrafa, e jogada na vastidão do oceano. Você acaba de encontrar a garrafa. Agora, leia a mensagem. 



O silêncio é ouro. Em que circunstâncias, o silêncio é ouro? Sempre que somos confrontados com situações que não entendemos. Quando não entendemos o agir de Deus, devemos conservar a esperança e aguardar em silêncio que Ele nos salve da perplexidade. Nosso coração deve ser guardado em esperança, e nossa língua deve ser preservada da murmuração. Deus abomina os murmuradores, aqueles que usam a língua para julgar as ações de Deus. 

Quem é o homem para julgar as ações de Deus? Acaso temos o seu entendimento? Compreendemos a sua mente? Conhecemos o seu propósito? Todas essas interações devem ser fonte de meditação, sempre que somos confrontados com situações de difícil compreensão. 

Um dia, o profeta Jeremias estava ligeiramente indignado. Nesse dia, ele apenas disse: “ Bom é ter esperança e aguardar em silêncio a salvação do Senhor.” Lamentações 3:26. E acerca dele mesmo, ele disse: “ Eu sou o homem que viu a aflição pela vara do seu furor” Lamentações 3:1.

Mesmo estando sob a vara do furor de Deus, Jeremias considerou que era melhor conservar a esperança e aguardar em silêncio a salvação do Senhor. 

No muito falar sobre o que não entendemos existe o pecado da rebelião. Quando arrazoamos sobre situações que não dominamos, estamos julgando não a situação em si, mas o próprio Deus que a permitiu e determinou.

Frequentamente o homem corre esse grave risco: avaliar as ações de Deus sobre a vida ou a morte de outras pessoas. Se não conseguimos entender o mover de Deus em nossa própria vida, como vamos julgar o mover de Deus na vida dos nossos irmãos?

Nossa atitude, grosso modo, deveria ser assim: “ não sei porque ele está apanhando, mas Deus sabe porque está batendo.” Ou ainda: “ não sei porque ele está recebendo esse presente, mas Deus sabe porque está lhe dando.” 

Não devemos convocar Deus para uma prova do ENEM. Não usemos a mente para questionar,  nem a língua para confrontar, nem o nosso saber para avaliar. Os atos do Senhor são soberanos. Nesses casos, o silêncio é ouro. O silêncio nos lábios, e a fé no coração, trazem nas asas do vento, a salvação do Senhor. 


Quando Deus nos salva  de nós mesmos, vivemos. Quando nós nos salvamos, morremos. Escolhamos, pois a vida para que vivamos. 




Ana Ribas




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HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ NÃO LIMPA GAVETAS?
ANA MARIA RIBAS.  






Nesta manhã, a reflexão é de uma visão tão pura como dois mais dois. O resultado da soma é que complica o resultado. Esse da reflexão. Pode ser quatro, cinco, seis ou mil. Depende da sua resumição ou da sua amplidão. 

Eu sou uma resumida-amplificada. Assim: Se consigo continuar a viver,  de maneira apenas normal, mesmo não podendo amplificar a realidade, então posso dizer-me adaptada a um mundo vestido de normalidade. Nesse caso,  não sou um ser em evolução, sou um ser em estagnação.  Permaneço circunscrita por todos os lados, e ainda  faço parte do todo.

Tão bom fazer parte do todo: todos lhe saúdam  e você saúda a todos. Faço  feira, às quartas feiras,  e compro beterrabas com folhas. Não como ( do verbo comer) as folhas; como ( do verbo comer)  os talos: corto a cada 5 cm,  afervento, escorro, tempero com pouco shoyo e, com um tanto de imaginação e outro tanto de distração, sem olhar diretamente para o prato, tenho aspargos, de primeiríssima qualidade, a custo zero. Mas a lei da demanda exige que se guarde esse segredo a sete chaves. Perdi as seis e a sétima chave acabei de entregar para vocês. Façam bom proveito. 

Pois então. No meio de um tema que estava exigindo de mim tão alta concentração, vieram-me os talos da beterraba. Vou repetir o primeiro parágrafo para que nos volte a concentração:

“Se consigo continuar a viver, de maneira apenas normal, mesmo não podendo amplificar a realidade, então posso dizer-me adaptada a um mundo vestido de normalidade.” Esse pensamento, você já conhecia. Agora vem o novo: “Mas se não posso amplificar a realidade, e se preciso dessa realidade amplificada para continuar a viver, de maneira apenas normal,  então é que me sinto anormalmente nua."

 Caso consiga o milagre de pertencer, será, no mínimo, superficial e recessivo. Venha como  óleo que  é, que  nós a receberemos como água que somos.

  Óleo sou. 

 A vastidão que não me limita, impede-me de pertencer. Já a circunscrição que me contém no redondinho, oferece-me o colo.  Quero pertencer e não quero ser circunscrita; quero a vastidão e quero o colo.  Mas essas duas variáveis parecem estar repelindo qualquer provável combinação. E mesmo eu, fico dividida.  E mesmo eu, amanheço os dias querendo ser outra, e não essa. E mesmo eu, anoiteço as noites,  para fugir dessa que sou pelas manhãs. Ou não sou. 

Ser ou não ser, eis a questão. 

Penso que o mundo deveria abraçar todas as espécies, dentro da espécie humana: a espécie feliz, a espécie conformada, a espécie socializada, a espécie nativa, a espécie não civilizada, a espécie que sonha acordada e a espécie que dorme sem sonhar. E também todas as espécies, ainda não catalogadas. Penso que o mundo deveria abrir um espaço maior para a vastidão das espécies. 

Ontem, fiz uma limpeza nas gavetas do escritório. A compulsão tomou-me como parte do vendaval, que por aqui passou, destruindo tudo. Mas esse mínimo fazer fez-me tocar nas coisas vestidas, eu que, acostumadamente, visto-me de nuas abstrações. 

Na hora da limpeza, essa, senti que os dois mundos se tocaram. Senti como se a Madonna de Leonardo, vestida, estivesse encostando na Madona de Lourdes Maria, nua. E as duas se beijavam. Respeitosamente,  as duas se beijavam.

Foi tão bom. Quero dizer, no meio do tão ruim do vendaval,  foi tão bom. Balde, vassoura, pano, rodo, avental, todo um arsenal para limpar salas, banheiros, quartos e cozinha: o que é vestido se cobre de pó. Mas o que me propus limpar,  em compulsão de limpeza, foram apenas gavetas. 

Gavetas contendo papéis. Revirei  minuciosamente os conteúdos, cataloguei, amassei, rasguei. Nenhum papel do tesouro nacional, apenas os papéis do meu próprio tesouro. O contra-cheque de cada mês, as contas de água, luz e telefone quitadas, as faturas do cartão de crédito, os talões de cheques usados,  um envelope para se fazer uma doação a uma instituição que faz o bem, - e envia antecipadamente uma caneta por conta do bem que se há de fazer-  eu que faço o mal de reter a caneta e não enviar a doação. O mal não me parece tão grande, porque a intenção é fazê-lo, mas torna-se enorme, porque dia após dia, a intenção vai para um lado e a ação segue para o outro. Detesto bancos. 

Mas contabilizo a vida e pago as minhas contas: eis aí um jeito de pertencer aos que se vestem? Ou não? 

Estão vendo? Já não sei. Há tanto tempo deixei o mundo, tão nua em pêlo, que já não sei como é ser vestida com tanta roupa. 

 Os papéis. Os papéis são apenas um detalhe nessa história de  gavetas,  mas um detalhe extremamente importante. Não sou contraventora para lavar papéis. Então para quê a água, para quê o rodo, para quê a vassoura, para quê o sabão?

 Para  compor o cenário da domesticidade dentro de mim. O  mundo precisa, cada vez mais de cenários domésticos.  

Decido-me pela ordem: a ordem é universal.  A ordem que me falta internamente e que eu procuro alcançar, apenas alcançando, com uma escada desdobrável, em dias de vendaval.  Tenho pastas – várias-  para arquivar um papel que é diferente de outro papel. Arquivo todos.   

Mas eu sou a mesma, em todos os tipos de papéis, por isso não consigo me arquivar. Não consigo dizer,  finalmente: esta pasta é minha.  Quando vou para a cozinha, faço lasanha com estas mãos que escrevem, e no meio da lasanha, bem no meio, quando a água alcança o ponto de fervura, e a massa parece ter vida própria, minha própria vida gira lentamente em seu próprio eixo, e sem poder conter o impulso longitudinal, em direção à vastidão, corre! Pelada, com a mão no bolso. 

Nalva termina a lasanha, e eu como. Apenas como. 




Ana Ribas




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MAIS UMA PERDA, MAIS UMA DOR.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 






O melhor investimento é a vida, mas a sensação é de que amanhecemos todos mais pobres, mais carentes, mais necessitados da graça e da misericórdia de Deus sobre nós, os que ainda temos vida. A sensação é que durante a noite, o inimigo veio e cortou as nossas asas, deixando-nos cotocos, mutilados, olhando uns para os outros, consternados com a  própria mutilação, e com a mutilação coletiva. 

Amanhecemos com a sensação de que não há nenhuma garantia de que veremos o amanhecer de amanhã, e por isso, precisamos valorizar o amanhecer de hoje, que nossos olhos há pouco, viram surgir no horizonte. 

Mas o que significa essa frase “ precisamos valorizar o amanhecer de hoje? “ O que se faz quando se valoriza um amanhecer? Dá-se a ele um certificado de honra com as seguintes palavras : “ amanhecer eu lhe concedo a honra de ser este único amanhecer, este que não amanhecerá jamais”. É isso o que se faz?

O que se faz quando o sentimento de brevidade da vida fica impregnado  dentro de nós, e ainda assim, não sabemos o que processar com a informação que recebemos, antes que o fato se materialize e nos diga em realidade: “sim, a vossa vida é breve como um sopro”. O que se faz?

De nuvens que vêem e vão, nos céus da terra; de velas que acendem, e apagam aqui, ali, em todas as casas; de lírios, que exibem a  beleza e   murcham, em todos os jardins; de flores, que distribuem  perfume e morrem, em todos os campos; de crianças, jovens, adultos e velhos, que nascem, crescem, vivem por um breve tempo, e desaparecem, em todas as famílias da terra. Assim é a vida. 

Enterrar um filho é a maior das injustiças que a vida pode fazer conosco.  Sempre que encontro um pai,  uma mãe, um ser gerador de vida, que acabou de perder o ser a quem  deu a vida, eu penso, com quanta tristeza- eu penso: “ seja malvindo ao clube. Ao clube dos que não podem mais apenas ser.”

É-nos negado esse único direito: o direito de apenas ser. Porque a morte de um filho, determina que jamais se possa viver essa única nossa vida. A morte de um filho é como uma sentença genésica, para que, dali em diante, viva-se mais a vida daquele que já não vive, do que a sua própria. 

A morte de um filho nos impregna a tal ponto, que faz-nos assim:  faz-nos abdicar dos sabores que amamos em prol daqueles que ele amava. Ele amava lasanha? Pois então haverá de se comer por ele, um pedaço de lasanha, e por nós, uma porção de amargo fel. Lasanha misturada a fel, passa a ser a iguaria dos domingos. Na segunda, logo pela manhã, o pão com salsicha ao molho de tomate vermelho, nos sabe a sangue. E nós comemos.   E os sons? Quando se ouve “eu não quero ser prefeito, pode ser que eu seja eleito e alguém pode querer me assassinar”, tem-se a impressão de que Raul Seixas é o nosso melhor amigo, e que, de alguma forma, ele foi prefeito e o assassinaram,  aqueles malvados,  que não o queriam prefeito. E o tiro atingiu gente demais. O tiro atingiu uma juventude inteira, que não era transviada, era apenas encantada.  

A morte de um filho nos paralisa numa época. Como se o derradeiro trem tivesse andado, e nós tivéssemos perdido esse derradeiro que andou, condenados a ficar naquela mesma estação, durante primaveras, verões, outonos e invernos. Sempre frio e cinza em qualquer estação. Sempre sexta feira em todos os domingos. Sempre Paixão de Cristo em todo Natal. Sempre feliz ano velho a cada ano novo. Sempre Aleluia de Hendel. Sempre aniversário sem bolo. Sempre o mesmo presente: um mísero vaso de crisântemos. E sempre o seu - que os amigos já não se lembram de lembrar. 


Sempre tudo de um sempre igualmente sempre igual. Sempre preservando o patrimônio, o que sobrou: o túmulo, as fotos, um caderno, uma carteira, um par de meia (usada), vestígios de vida, que como retalhinhos, vamos costurando, uns aos outros.  Passamos a ser os guardiães da memória. Que só a memória vive em nós. Nós que somos a memória e não somos nós.  

Não há tréguas. Não há possibilidades. Não há alternativas. Não há atalhos. A cada manhã, retomamos o nosso triste caminho velho, com o sentimento de que, em algum lugar do céu, Deus nos olha com a compaixão dos tristes. Dos que nada puderam fazer para evitar-nos a dor inevitável. E ainda assim nos ama com amor irremediável. 

Eis aí um mistério eu vos digo: passamos a amar ainda mais aquEle que sendo o Dono da Vida, nos ofereceu em cálice de amargura, a morte. Passamos a amar mais, e a compreender mais o que significa  o presente que o Cristo nos deu em palavras: “ a paz que excede todo entendimento.”

Temos a dor e temos essa espécie de paz. Temos a saudade e temos a paz. Temos a angústia e temos a paz. Temos a tristeza crônica dos irremediavelmente tristes, e temos a paz: a paz que excede todo entendimento. 

Veja só: uma paz deve vir acompanhada de entendimento. Todo ser pensante deve ser capaz de entender a sua paz, de pegá-la nas mãos, de revirá-la por todos os lados, de observá-la por todos os ângulos e finalmente dizer: “isso é a paz.” Pois esse “isso” vem transbordando, nessa espécie de paz. Vem excedendo toda  capacidade de compreensão humana. No meio da desgraça da morte, Deus nos concede a graça de uma paz que excede todo entendimento. 

Você não consegue entender o que digo? Pois se isso não é para ser entendido, é para ser vivido. E que Deus lhe permita nunca vivê-lo. Porque viver essa paz, é ser portador da síndrome do amargo fel, com a designação da abelha que sai pelo mundo distribuindo mel. Um paradoxo que,  mesmo sendo vivido, jamais poderá ser compreendido. 


Eu sou uma abelha que distribuo mel. De graça, comam  e bebam desse mel que tanto me foi cobrado. E que de graça, lhes ofereço. 

Nesta manhã, eu quero apresentar os meus sentimentos aos familiares, e em especial ao Dr. Wilton Silva Longo e à dona Terezinha Longo, respectivamente, pai e avó do saudoso Dr. Wilton Silva Longo Filho, que na noite de ontem, aos 33 anos de idade,  deixou-nos a nós, os que ainda vivemos,  com a estranha sensação de que o mundo é o mesmo.  Mas nós ficamos menores. Mais carentes. Mais frágeis. Mais assustados. Mais perplexos. Mais necessitados da graça e da misericórdia de Deus. 

Toko, Toquinho, que do céu lhe recebam os anjos e os amigos que você conquistou na terra, e agora são respeitáveis cidadãos do céu:  Eládio, Márcio, Paulo, Amarildo, Damásio, Rony, Claudinei, Gianechinni, Milton Frank, e os demais que seria impossível nomear, tão longa é a lista dos meninos que já foram. 

Nós não fomos. Nós não fomos e ainda assim, já estamos indo. Sendo que alguns de nós, fomos, sem ter ido. Para esses últimos, o coração bate cansado, trôpego, melancólico, indeciso, mas ainda bate.

Estranhamente, ainda bate. 


* A foto mostra  Toquinho e a nossa querida Tatiane, irmã do Toquinho. 




Ana Ribas




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VOCÊ SABE O QUE TE FALTA E O QUE TE SOBRA?  
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.






Ah, a sensação que se tem, de que os dias para se gastar são em menor número do que aqueles que já se gastou. Que o crédito diminui um pouco a cada momento. Que a vida é como um reservatório de água, que vem cheio, mas vai esgotando, de maneira imperceptível, a cada segundo. E que não se sabe, exatamente, por onde anda a linha da água, mas se pressente que o nível já vem batendo pela altura do joelho. Que de joelhos se faz a vida diante do que já se gastou em vão. 




 Meu Deus, que construí eu, nos dias que já gastei? E que farei eu para não gastá-los tão em vão? Esses que me restam, como fundo de reserva? Manchados, turbados, cristalizados em silêncio de espera, como o gole ao moribundo? Na sede, apenas adivinhada? A quantas andará o reservatório dos meus dias?




 Eu me toco, exploro o meu corpo,  e não me sinto doente. Olho no espelho e me vejo tão jovem. Também não ando a pressentir coisa alguma. Nada. Tudo caminha no mesmo compasso há milhões de anos.  




 Mas, porém, todavia, contudo, nada pressinto e tudo  sei. Naturalmente sei.  Sei desse saber que sabe, sem necessitar de pressentimento. Sei contar os dias, os meses e os anos. Tão compridos os dias, os meses e os anos que gastei, apenas gastando, apenas pensando que não havia problema nenhum em gastar o que me sobrava tanto. 




 Gastei em crônica melancolia. Uma melancolia que paralisou-me em séculos de extrema amargura. A amargura que nem a mim pertencia, que era apenas dos outros. Dos outros, os motivos para a amargura; não meus. Meus eram tão somente a grande inabilidade e as pequenas inabilidades para viver.  




 A inabilidade sempre presente  na vida que apenas vive,  até hoje vive,  simbolizada na oração que mandaram-me recitar, um dia. E eu, obediente recitei: “Obrigada meu Deus, pelos meus braços perfeitos, quando há tantos mutilados, pela minha voz que canta quando tantas emudeceram.” 




 Emudeci quando cheguei na palavra “emudeceram”. Apenas meio metro de gente, encarando o padre, o chefe do rebanho, a coragem transformando a ovelhinha em leão, para  dizer, na cara nua, que a reza que ele me propunha era de um egoísmo constrangedor.  Que fosse rezada por outro, que por mim não seria.  
Que sentir precoce e puro será esse que me foi dado sem que eu pedisse?




  Meu Deus, tantos anos depois, ainda carrego comigo, esse tão puro:  como exibir o meu braço perfeito, sem afrontar o mutilado? Como usar a minha voz de taquara rachada em réquiem ao defunto mudo? Assim, apenas dizendo? Como se aquilo tudo fosse apenas uma interpretação shakespeareana, destituída de sentido? 




 Eita: Não! Não! E não!   




 Eu sempre tive algo de Maria Madalena arrependida por existir neste mundo. E esse algo foi se impregnando em mim até me fazer gastar os dias. Irremediavelmente. 




 Gastei, e assim foram gastos os meus dias: sem afrontar o mundo. E subitamente, afrontando.  Como o cachorro que toma um banho, de maneira tão dócil e  obediente, e quando menos se espera, arrepia o pelo e sai espirrando água para todos os lados. Espetacularmente. 




 E agora me ocorre: em quantas saídas espetaculares gastei os meus dias? Quantas vezes, terei pensado que arrepiando o pêlo estava melhorando o mundo, quando tudo o que consegui obter foi apenas uma pocinha de lama? 




 Os dias que gastei já não me voltam mais. Mal ou bem, feliz ou infeliz, participando ou excluindo, pertencendo ou não pertencendo, fazendo ou nada fazendo, gastei os meus dias de uma forma que me parece ter sido extremamente isto:  nem útil e nem fútil. Extremamente nada. 




 E mesmo agora, não sei o que fazer com o que não me  sobra mais. Com o parco e o minguado. Se não sabia o que fazer quando era perdulária dos meus entesourados dias, como saber o que fazer agora, com a indigência que me espreita pelas frestas  da parede e me diz assim: “ vai acabar”? 




 Ivo me conhece tanto! E como é bom gastar os dias ao lado de alguém que nos conhece tanto. Pelo menos isso eu soube: gastar os dias ao lado de um homem que me conhece tanto.  Que bom que não gastei os meus dias ao lado dos Tarcísios Meiras que rondaram a minha vida. Todos tão fúteis!  Que bom que Deus me deu por marido esse homem de sangue quente e vermelho, esse homem  disposto a conhecer-me  tanto. Não apenas meu corpo, mas também a minha alma: Ivo me conhece tanto!




 Pois esse que me conhece tanto, disse-me assim, ontem, domingo, logo pela manhã:




 - Ana, diga-me uma coisa: como você está se sentindo?




 Eu nem estranho a pergunta tão amplificada. Ivo é homem de amplos horizontes. Mas, precavida, quis saber mais, antes de me aventurar a responder que o estômago estava bom e que a mucosa nem ardia.




 - Em que sentido? Eu digo. Já sabendo em que sentido ele dizia, e apenas ganhando tempo. 




 - No sentido da palestra que você proferiu ontem (  sábado)? O fato de saber que fez bem a tantas pessoas, compartilhando o seu saber:  como você se sente?




 - Ah, sim, claro, eu me sinto bem, Ivo. Muito bem. – respondo, ligeiramente encabulada. Ivo ainda consegue me encabular. 




 - Pois é, Ana. A vida tem esse sentido mágico: quando acabam as nossas ilusões, ainda podemos nos gastar pela ilusão dos outros. Veja eu: por que você pensa que eu não páro? Porque é extremamente importante sentir que estamos fazendo alguma diferença nesta vida. (....)




 O discurso filosófico está apenas começando. Temperado com tanto cuidado. Com tanta sabedoria. E o sol ainda nem apareceu, por trás do muro da nossa cozinha.  Mas, para nós dois,  parece estar entardecendo. Há uma penumbra de seis horas da tarde entre nós. Há sombras apenas pressentidas. 




 Olho para ele e penso:  Meu Deus, como esse homem  me conhece bem. Eu estou com a mesma cara estampada todos os dias, mas ele olha dentro dos meus olhos e de lá extrai a  fórceps, a pepita de ouro mais pura, aquela que guardei a sete chaves.




 - Acha mesmo que fiz bem  a essas  pessoas, Ivo? Quantas delas vão reter o que lhes entreguei? Vou me espremendo contra a pia da cozinha, para desviar os meus olhos, do azul dos seus olhos. 




 Pergunto porque tenho certeza de que, na verdade, ele sabe, que o maior bem que fiz, foi a mim mesma que fiz. Mas ele escapa, ligeiro como um bagre ensaboado, conjecturando com  raciocínio rápido:




 - Ana, o seu potencial é muito grande e Deus precisa distribuir entre as pessoas que sofrem, tudo o que você  aprendeu, tudo o que Deus lhe ensinou. Se eu soubesse metade do que você sabe, meu Deus! Eu só faria isso.    




 Mas se eu nem soube gastar os dias que me escorreram pelo meio dos dedos, e nem sei gastar os que ainda guardo na mão fechada e dura, como posso ensinar alguma coisa a alguém, se esse mínimo saber me foi negado? 




 Apenas penso e nada digo. Recebo o dobro do que ele sabe, com uma resignação que chega a doer. Recebo, porque faz parte da minha vida receber tudo desse homem. E se ele diz que sei o dobro do que ele sabe, com seu diploma de médico, obtido na melhor faculdade do Paraná,  eu acredito que sei o dobro do que ele sabe, com o meu diploma de História, obtido na pior faculdade de São Paulo. 




Ivo sabe que nada sei. Mas esse nada saber, inclui saber uma coisa. E essa coisa,  ele declara logo em seguida:




 - Ana, você é a mulher que tem-me ajudado a viver esta vida. Você é a mãe dos meus filhos. Mas acima de tudo, você é mulher de uma grande fibra. Queria dizer isso para você. E quero dizer que você não deve parar, agora que recomeçou. Que você não deve parar nunca mais. Que muita gente vai ser ajudada por suas  palavras, pelo seu exemplo, pelo seu mostrar o Caminho. Que você pode fazer em poucos anos o que deixou de fazer a vida toda. E que você sabe que pode contar sempre comigo.   




 -Então é, finalmente isso:  Gastar o que já não me sobra,  distribuindo o que falta para os outros,  na fartura dos seus dias (dos outros)?  




 Olho para ele  e nada falo: estou diante de um mestre e diante de um mestre, os discípulos se calam.




 Falo agora com vocês. 




 Pois isso eu já tinha visto:  eu já tinha visto os jovens com o excesso do que me falta, e também já tinha visto o quanto lhes falta do acumulado que  me sobra. Eles bebem de mim - daquilo que lhes falta-;  mas eu não posso beber do que lhes sobra, porque o que lhes sobra é vida e vida é intransferível. Ninguém pode transferir para o outro alguns anos de vida, alguns meses de vida, alguns dias de vida.  E, ultimamente, um negócio estranho, tem-me acontecido: tem-me acontecido de voltar  para casa com uma  sede de vida. Eu que sempre fui meio morta, queria ganhar agora uns palminhos de vida.




 Ah, a vida! Sinto essa sede  todas as vezes em que sou excessivamente festejada, todas as vezes em que me chamam “senhora”, todas as vezes em que estendem um tapete vermelho para eu entrar, todas as vezes em que os jovens ficam tímidos diante de mim, e as mulheres me vêm como formadora de tendências. 




Eu só quero formar uma tendência: amar a Deus sobre todas as coisas, ao próximo como a si mesmo, e aos animais ainda mais do que a nós mesmos. 




Eu   quero apenas a lembrança do azul do céu,  no verde dos campos. Eu quero Adão e Eva nús, dando nomes a todos os animais, nomes escolhidos a dedo, com o coração. Como: Julião, Dudu, Toquinho, meus amados, meus queridos, que já não latem mais. Sinto saudades do Julião, do Dudu, do Toquinho. E, às vezes, fecho os olhos para sentí-los comigo. E choro de saudades. Confesso: choro pelos meus mortos cachorros que, enquanto viveram, não me foram cachorros, foram-me amigos.    




 Eis aqui  a maior injustiça que atribuo à  vida: quando valorizamos a relva verde e não os tapetes vermelhos, quando valorizamos o casebre na montanha e não o palácio na planície, quando valorizamos o olhar dos animais mais do que o brilho dos carros,  quando pensamos ter aprendido a viver abrindo-nos para a vida,  aí mesmo é que estamos   prontos para morrer. E morridos somos. 




 Que Deus me conceda a primazia, porque sem o Ivo acho que nem saberei ser morrida.  Um dia. 




Ana Ribas




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ANALFABETOS QUE DOMINAM O VERNÁCULO.
ANA MARIA RIBAS.


Não há dúvida de que qualquer texto tirado do contexto vira um pretexto. Sou contra os pretextos e mais contra ainda contra os pretextos que não produzem nenhum tipo de benefício à humanidade. A humanidade precisa de Deus. E o Deus que Jesus Cristo nos apresentou como seu Pai e nosso pai,  propôs para nós, filiação e vida eterna. Vida eterna, com a mesma qualidade de vida que lhe é inerente.   Se o mal entrou e Deus sabia que entraria, é outra questão. Uma questão que foi muito bem administrada, tendo em vista que, respeitando o nosso livre arbítrio, Ele nos permitiu a escolha. As Escrituras estão repletas de citações  literais e não literais,  de uma exortação plena e responsável ao livre arbítrio humano: “escolheis hoje a quem sirvais.”


O homem pode escolher a quem quer servir. Se há um ser no universo  mais magnânimo e mais generoso do que o Cristo do Cristianismo, que se me apresentem e eu  servirei a esse outro. Eu não conheço outro que tenha morrido por mim.  Por isso sirvo a Ele.


Ah, mas esses tais também não acreditam que Cristo tenha morrido por mim ou por nós. Eles  até acreditam que Cristo tenha morrido, mas não “por nós”. Afinal, um Cristo morto lhes é mais conveniente do que um Cristo vivo. Um Cristo vivo incomoda. Um Cristo vivo pede uma posição: Quer ou não quer? É ou não é? Pode ou não pode? Vai usar a moita ou vai desocupar a moita?


 Se não há pecado, se não necessitamos de salvação, e se não há inferno, então também não precisamos de Cristo, nem vivo e nem morto. Morto até que pode: um cadáver se não for sepulto, fede. Então faríamos o sepultamento de Cristo e em 24 horas tudo se resolveria da forma como os vivos resolvem tudo para os mortos: com 7 palmos de terra.


 Para que precisamos de um Salvador se somos tão bons, tão amáveis, tão puros? Olhemos o mundo à nossa volta: que maravilha! O mundo vai às mil maravilhas: pais matam filhos e filhos matam pais, mas o demônio existe apenas na imaginação dos crentes. Dos incautos. Mata-se por esporte, apenas porque... porque é um esporte, ora bolas!


Mas isso não significa, de maneira nenhuma, que haja uma força malígna operando no universo. Significa apenas que somos esses bons, que não necessitamos de salvação, que nunca pecamos, que jamais targiversamos. Somos os puros filhos da pura.


Não precisamos, pois, ser salvos de nada se o Inferno só existe na cabeça do Dante, nosso amiguinho Dante. Que imaginação dantesca teve esse Dante, filho da dona Danta.  Mas Dante não sabia que o inferno não é para todos, é só para os que fazem questão. Para aqueles que pinçando um texto bíblico aqui, e outro ali, formam as suas convicções absurdas e as espalham com uma maquiagem rebocadinha, como aquela do palhaço Pururuca: boca vermelha e cara branquinha.  Que de pururuca, deverá ser o grosso do fogo eterno.


Pois é. O inferno não é para todos. É só  para aqueles que dominam o vernáculo, são analfabetos de Gênesis a Apocalipse e não querem dar-se ao trabalho de colar grau: um grauzinho de humildade.


Menos, minha gente, menos!




Ana Ribas




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Missão International. 
Ana Maria Ribas.





Amanhã, na parte da tarde, viajo para minha primeira missão international. Logo cedo, hoje- véspera de amanhã -na mesa do café, encontro um mapa sobre a mesa. Ivo sai de madrugada, para trabalhar nessa mesma cidade, em que vou pregar. 

No mapa, estava escrito assim:

Ana, preste atenção:

- Do trevo até a Estrada Catarina, tem muitas curvas. 
- Na descida e na subida do Rio da Areia, tem buracos no asfalto.
- 1.500 m. após o Rio da Areia, tem buracos no asfalto. 
- Do trevo de Moreira até a entrada da cidade tem buraco no asfalto.
- Na entrada da cidade tem uma curva perigosíssima; 

 Ivo, seu anjo guardião.

Estranho tanta preocupação com uma viagem de apenas 42 km, e deixo para ele a seguinte pergunta:

- O que significa isso? Amor demais ou fé de menos?

 Ana, missionária do Senhor Jesus.

Com letra de médico, o anjo guardião responde:

- Significa que você é uma pessoa muito bacana, muito legal e que pode me fazer falta.  E também significa que o carro não tem seguro total e custou caro.

Que Deus te proteja. 
Ivo. 

 -Amém!
 Ana. 


Ana Ribas


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ENGATE A RÉ, MAS SIGA EM FRENTE. 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 






Eu ontem relembrei o passado. Fui procurar na minha biblioteca cerebral detalhes que me fizeram retroceder no tempo. Pareceu-me tudo tão nítido e eram apenas lembranças.  




 Não gosto de relembrar o passado. Porém,  de certa maneira, seria um desperdício não recordar os equívocos que cometi, pela vida, como parte do aprendizado. Fui buscar os erros do passado, para analisar, sintetizar, comparar e ensinar os que ainda  podem,  apenas, acertar.




 Os que podem apenas acertar são aqueles que têm uma vida inteira para gastar, com a possibilidade, mesmo que remota, de acertar sempre. 




 Como o mancebo que foi até a minha casa, seriamente abalado com as quirelinhas da vida. Diante desse ser tão frágil,  indeciso  como um passarinho que parece ter perdido o desejo de voar, exibi um raio X com as cicatrizes das minhas asas machucadas, e dei   a receita do  elixir mágico que me curou: o tempo. O tempo, sob as mãos poderosas de Deus, transformando o material em produto altamente reciclável. 




 O tempo e o vento. O vento do Espírito. 




Sempre é tempo de olhar para cima e para o alto. Mas na juventude, podemos ter essa disgressão que nos leva a valorizar excessivamente a porção de nós que foi machucada, e nos fixarmos nela. Como se ela fosse o todo. 




 Não é: Nós somos inteiros e a porção machucada é apenas uma fração.    




 Mas que atração temos nós, os humanos, pelo ato de lamber as nossas próprias feridas, como aquela criança que, quando chega uma visita em casa, corre para exibir o joelho que machucou.  Feridas excessivamente lambidas nunca cicatrizam. Mesmo quando nos consideramos maduros, nem sequer reconhecemos  que há um efeito didático na dor. Lambemo-nos muito, na tentativa de valorizar excessivamente os nossos sentimentos. Nem queremos a cura, queremos o reconhecimento de que, afinal, “eu sofro, logo existo.” Queremos a lambeção.




 Não por acaso, nascemos com o sentido da visão totalmente imaturo. Não distinguimos quase nada, e segundo os cientistas, a visão só se completa por volta dos 4 meses. 




 Mas cientista não sabe nada, ou sabe muito pouco. A visão nunca se completa. Ela sempre se amplia, sempre se alarga, sempre se traduz além e aquém da retina, e isso não significa nenhum distúrbio visual envolvendo a mácula lútea. Significa, apenas, que somos seres com a capacidade de enxergar abstrações. Significa também que, pela vida afora, essas abstrações irão se materializar em aprendizagem. 




  Significa que aprendemos a repousar os nossos olhos na saudade, na dor e na tristeza, construindo com elas o nosso travesseiro de plumas. Um dia, abrimos o travesseiro, e as plumas voam. Mas logo, aparecem outras plumas para encher o nosso travesseiro de pedras. Que, com o tempo, transformam-se em plumas.




 Entre pedras e plumas, transcorre a vida. Quem quer viver apenas de plumas, não conhecerá o duro da pedra e também não saberá valorizar adequadamente, o macio da pluma. Há uma tensão necessária e benéfica entre a pedra e a pluma. 




 A isso eu chamo libertação. Essa libertação só acontece quando aprendemos a visualizar nossos sentimentos pela ótica da Palavra de Deus, catalogando e identificando aqueles que nos delimitaram, e aqueles que nos impulsionaram. Muitas vezes, nem temos forças para lutar contra os fantasmas das nossas óperas. Nesse caso, melhor deixá-los conviver nas sombras, que sombras também podem ser criadoras. Basta entregar tudo nas mãos poderosas de Deus.




 Tive uma amiga com a qual eu me permitia repartir o silêncio. Éramos tão amigas que o silêncio nos bastava, sem nenhum constrangimento. Até nos orgulhávamos disso. Ela entrava pela porta da minha casa, e se eu estivesse deitada num sofá, ela se deitava no outro. A saudação era curta e afetiva: 




 - Oi Anador –ela me dizia, acrescentando ao Ana do meu nome a palavra dor. 
- Oi Marlosa – eu repetia juntando ao Marli do seu nome a palavra amargosa. 




Duas bobeiras que não diziam nada, mas falavam tudo. Uma intimidade para poucos. E ali, não raro, uma de nós tirava um cochilo, na frente da televisão, e quando aquela acordava, a outra já havia ido. Assim era a nossa convivência: estreita e fiel. Todos os dias nos falávamos ao telefone e todos os dias, ou quase todos os dias, nos víamos nesta pequena orbe. 




 Um dia, pelos descaminhos da vida, nos perdemos. E o silêncio que era uma ponte a nos unir, tornou-se um abismo que já dura mais de 20 anos. Ela mudou-se daqui, e eu mudei de mim. Não sou mais a mesma pessoa e com certeza, nem ela também será mais a mesma pessoa. Ainda que houvesse uma reconciliação – e da minha parte, houve uma tentativa- ainda que houvesse essa reconciliação, Anador e Marlosa morreram.




Mas quanto custou para ambas,  elaborar essa perda silenciosa, dentro de nós. E quanto esse acontecimento foi totalmente contraditório. Por um lado: torpe, fútil, ignóbil, destituído de sentido. Por outro lado: absolutamente necessário, para a minha evolução espiritual. 




 A partir desse evento, Deus começou a construir essa que hoje - ainda – continua em construção. A partir dessa situação extremamente dolorosa, eu ganhei uma solidão necessária, e uma busca incessante pelos eventos do mundo espiritual. 




 Se há uma Verdade, eu compreendi que ela não está circunscrita aos limites da terra, e por querer demais a Verdade, também passei a querer demais o céu. E continuo querendo.




 Mas hoje o meu querer é feito de conciliações entre a fé nas verdades divinas e a fé nas possibilidades humanas. O homem não pode aprimorar-se sozinho, e, se pudesse, esse aprimoramento teria um efeito apenas doutrinário. Contudo, Jesus pode transformar o homem, e o faz, muitas vezes, através do próprio homem. Por causa disso, penso ser possível conjugar Marlosa com Anador, desde que o médico que administre esses dois sais de remédios  tão distintos, seja o Senhor Jesus. Caso contrário, penso ser melhor que toda amizade guarde um necessário distanciamento, para que dois sejam dois. Porque sem Jesus, dois, nunca serão um. Nem mesmo no casamento, quanto mais numa amizade. 




 Vinte e dois anos se passaram, e outros vinte e dois anos, provavelmente se passarão, até que a morte leve uma, e depois a outra, sem o necessário perdão. Varremos para debaixo dos nossos tapetes a sujeira que produzimos há 22 anos e há 22 anos convivemos com ela. TaLvez, nem nos incomode demais, essa sujeirinha a toa. 




 Eu me dessensibilizei, quiçá, ela também tenha se dessensibilizado.




 Mas a Palavra de Deus, não se dessensibiliza com o tempo. Ela é eterna e ela diz assim: “ Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade, te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo.” 


 Estamos todos a caminho e um dia, estaremos diante do grande Juiz. Naquele dia, tudo o que está oculto virá às claras, e tudo o que foi dito em segredo, será proclamado em alta voz. Se devo algo a ela, quero aproveitar este site que tem corrido o Brasil e com certeza, chegará até ela, para lhe pedir perdão: 




 -Marlosa, perdoe-me. Não quero ter que pagar lá - nada que possa ter ficado devendo a você, aqui. Por isso, lhe peço perdão. E também porque no meu coração não há mais lugar para rancores, só há lugar para um imenso e grande amor. Amor por todos os seres, sejam eles amoráveis ou não amoráveis. E você sempre me foi tão amorável!




 Daqui deste espaço virtual, daqui de onde tenho aberto tantas vezes o meu coração, exibo o raio x com as marcas das minhas asas machucadas por dores mais densas. Bem mais densas. Elas são as mais altas credenciais que Deus me concedeu.  Com elas, eu posso dizer: “sou uma mulher de dores e carrego na minha alma as marcas de Cristo”.




 Na verdade, sou uma mulher de uma única grande dor, mas essa dor é tão grande que se equivale a todas as dores do mundo. Sem saber você profetizou sobre a minha vida: Ana +dor. 




 Hoje, entendo que: no exato momento em que nos separamos, Deus começou a preparar-me para ser essa grande dor. O aprendizado tinha que ser solitário, intensivo e monástico. No ano de 1986, Deus separou-me do mundo e separou o mundo de mim. 




 Pouca coisa temos hoje em comum, o mundo e eu. Apenas o absolutamente necessário. Ele não sente a minha mínima falta, e eu também não sinto a mínima falta dele. Somos quase incompatíveis. 




 Que é a vida? Carl Sagan, disse que a vida é uma longa jornada feita de genes, cérebros e livros. Achei tão sugestivo que um cérebro privilegiado como Carl Sagan tenha relacionado três coisas: a nossa biblioteca genética, a nossa biblioteca cerebral, e os livros. Com elas, um homem se faz. E Deus refaz. 




 Porque o último livro a ser aberto, no Universo, será o Livro da Vida do Cordeiro, que só o Senhor Jesus poderá abrir. Autoridade para isso Ele já tem. Quanto anseio por esse dia em que todos os equívocos se desfarão!




 O meu desejo é que, nesse grande dia, os nossos nomes estejam escritos no livro da Vida do Cordeiro, e que não haja mais dívidas a pagar. Que o tempo, o vento, e o sangue de Cristo, tenham coberto todas as apólices das nossas dívidas. E que essa cobertura inclua até mesmo a dívida mais cara: a dívida do  nosso coração.  




Ana Ribas


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NINGUÉM PRECISA SER GALINHA PARA AMAR ULISSES. 
ANA MARIA RIBAS. 



Meu vizinho tem um galo. Há que se respeitar um vizinho desamparado, que mora sozinho, que perdeu o pai, que perdeu a mãe, que perdeu os irmãos, cada qual para o seu mundo, e adotou um galo. Ele também adota cachorros, mas depois esquece de alimentar os cachorros, e aí surge-me um grande problema, porque, sem brigar com o vizinho,  tenho que entrar em cena, para libertar os cachorros, amarrados no fundo do quintal, a pão embolorado e água suja.  Esse bondoso homem ama cachorros abandonados, mas não cuida dos cachorros que ama, porque ele próprio precisaria ser cuidado.  Entenderam o drama? Não há ração nem para o cachorro, nem para o passarinho, nem para o vizinho. E durma-se com um barulho desses.  

Pois agora, graças a Deus, esse vizinho adotou um galo, graças a Deus, cujo quintal( do vizinho)  tem tanta minhoca,  graças a Deus, que, sozinho, dá conta da fome do galo, graças a Deus. Da conta da fome de comida, mas não da fome de outros seres de sua espécie. 

Pois então.  Esse galo, marido de galinha, parece estar viúvo. E  canta  a sua viúvez no terreno contíguo ao meu quintal, ao lado da sala, onde a massagista vem-me atender.  Uma sinfonia que amo, mas, às vezes, me parece tão dolorida, que nem sei explicar se a dor é minha, propriamente, ou do galo, tão somente. 

Viu que eu “tenho” uma massagista? É, eu tenho uma massagista com mãos de fada. Se não tivesse,  minhas costas não dariam conta das horas que já passei no computador, e das horas que ainda haverei de passar no computador. Se Deus permitir. Computador está se tornando para mim um troço absolutamente imprescindível, para eu escrever sobre galos.  E, como uma coisa puxa a outra,  massagista também. Até parece que sou fútil, mas não sou. O computador é por conta da profissão – sou escritora, lembram?- e a massagista é por conta da ordem do doutor. Dr. Ivo. 

 Mas estou falando do galo. Só ouço o seu cantar, nesse momento em que estou ali, desamparada como franga dessossada. Nessa hora, o galo canta. É porque a minha massagem coincide com o cair da tarde, com o pôr do sol, que é a hora em que, excetuando-se as madrugadas, o galo canta. Então, toda tarde, ouço o galo cantar. E me comovo com o seu canto: o galo é velho.  

Todo ser humano tem um centro térmico regulador. O galo tem um centro cantador, e fui eu quem descobri isso, só que ainda não divulguei o resultado da minha pesquisa científica. Quando o IBAMA anunciar, você já sabe que fui eu. O centro cantador do galo deve estar diretamente relacionado com a regulagem da luz do sol. O galo canta quando pressente que vai amanhecer, porque ele cansou de dormir. E também canta quando pressente que vai anoitecer, porque cansou de estar acordado. O galo canta quando está cansado de ser. 

Ontem, eu ouvi o galo cantar, fechando mais um dia. E distraída, como sou,   disse em voz alta, de pura melancolia: 

-Coitadinho do galo. 

 Eu não disse para Léia ouvir ( Léia - a massagista). Também não disse para o galo ouvir. Eu disse para Deus ouvir. Mas poderia ter dito só em pensamento, porque Léia ouviu. E depois que ouviu, vi-me em apuros para responder à pergunta que ela, toda viva, fez-me  a mim, toda desfalecida:

- Por que coitadinho do galo?

Eita  meu Deus, e agora, como vou responder?

 Léia tem dessas coisas: as mãos são de fada, mas a cabeça é de veneziana fechada. Ou de pianista que pode passar horas batendo na mesma tecla desafinada. 

 Como explicar a essa veneziana fechada, que  já coloquei uma escada para espiar o galo no quintal do vizinho, - para ver se esse ser bípede estava bem cuidado, se tinha comida, se tinha água, se tinha bastante sujeira no quintal- e vi, também, algo que não gostei de ver:  que  faz parte da natureza do galo ser coitadinho.

 - No final da massagem, eu explico.- respondi, de olhos cerrados.  Para ganhar tempo. E para ver se ela esquecia. 

Ao fechar os olhos,  perdi a massagem. Perdi o bom da massagem. Perdi as mãos da massagista. Perdi o contato com cada fração do meu corpo, que já é todo inteiro de alma e espírito. Fiquei só com o galo.

O galo é um galinhão. Um galinhão que tomou chá de trepadeira. No bom sentido. Pois, se ele é enorme, como não haveria de ter tomado chá de trepadeira?  O galo tem uma vocação irremediável para a solidão. Isso ninguém percebe. Só fazem apologia ao bom da vida do galo, e nem percebem que, para cada momento do-bom-da-vida do galo, há séculos de uma irremediável solidão. 

 O galo come minhoca, com uma extrema delicadeza. Ele pega a parte dianteira da minhoca e lhe dá uma bicada, bem de leve. Nesse bem de leve, os dentes serrilhados ( esse galo tem dentes, mas é o bico que lhe serve de dentes), nesse bem de leve, os dentes serrilhados   já levam a primeira porção. Que ele degusta, suavemente fazendo um gutural e quase inaudível cócócó. Que quer dizer: gostoso, gostoso, gostoso. Depois, ele come a parte traseira da minhoca, sem nem desconfiar que está comendo minhoca com maionese. Que minhoca tem maionese. Tudo é bem caprichado nessa cadeia alimentar: a minhoca que não vem com maionese, vem com catchup, ou vem com mostarda. E tem o selo do INGALO. 

O galo é dono de uma crista de fazer inveja a qualquer poder humano. A crista do galo é vermelha, porque o galo é comunista. Ele não se importa de repartir as galinhas com os demais companheiros galos. E nem mesmo com os companheiros humanos. Ele reparte a coxa da galinha, as asas da galinha, as visceras da galinha, o peito da galinha, o curanxim da galinha ( meu açougueiro fala assim: cu-ran-chim)- o galo reparte  tudo o que a galinha tem com aquele que, em troca, pode lhe dar – ou não- uns míseros grãozinhos de milho. O galo é bom.

Eu é que sou ruim. 

Quando a massagem termina, estou mais ruim ainda. Quero sair correndo, para escapar da questão, e  me levanto lépida como o vento. Digo a mim mesma: vou conseguir, vou conseguir, vou conseguir. Mais três passos e estarei livre de explicar porque o galo do vizinho é coitadinho. 

Tudo em vão! Antes que alcance a porta,  vem-me a pergunta e antes que a pergunta se complete, vem-me a resposta. Tenho que ser tão inteligente quanto Eistein, mostrando a língua para o mundo.  

Dona Ana Maria Ribas, a senhora não me respondeu:
-Por que o galo é coitadinho? 
- Porque ele é galo.
-Ahhh!

Meu Deus do céu, e não é que ela parece compreender? Acho que a veneziana começou a abrir-se para o mundo dos galos. 

Que ninguém precisa ser galinha para amar um galo.   Basta ser gente. 
  
Essa reflexão rasinha sobre um galo é uma forma de protesto. Ontem escrevi  sobre a Espanha e poucos leram. Tão lindo o que escrevi!  Eu compro uma passagem, viajo para a Espanha, conto tudo com o coração e alma,  e ninguém lê, pelo menos, com os olhos. 


Tenho eu o direito de prostestar quando escrevo coisas profundas e ninguém lê? Não tenho! O leitor é livre para ler ou não ler, já sei: sou socialmente correta.  E antes que me digam, eu digo: O leitor é livre para ler ou não ler. 


  Mas assim mesmo protesto. Tenho vocação para protesto, desde menina. Que se há de fazer? E no protesto, não existe o socialmente correto: existe o protesto. 


Pois então: essa é a minha forma de protesto.  Quem não quis conhecer a Espanha, fique a vontade para conhecer hoje o galo do meu vizinho. O nome do galo é Ulisses e o do meu vizinho é ... deixa pra lá. 


Tenham todos um bom dia na presença de Deus. 


Filhinhos: A bênção final é para amenizar o sermão. 




Ana Ribas




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A ESPANHA ME FEZ E O BRASIL ME REFEZ.
ANA MARIA RIBAS. 






A vida nos conduz por caminhos que nem sequer sabemos.  Eu sempre me soube predestinada a nada saber, mas exageradamente, esse “nada saber” é como uma ofensa íntima que se guarda, porque não se tem a quem reclamar. Pai e mãe, já foram: o departamento de reclamação, para mim,  fechou cedo demais.   

Antes de irem, eu lhes perguntava: por que foi assim? Meu pai era todo silencioso, mas minha mãe arriscava a resposta e ela vinha diretamente da revolução espanhola de 1936: O general Francisco Franco era o culpado. Ele que de fome, quase matara a minha ascendência, acostumada a garbanzos. 

No aeroporto de Barajas em Madri, o cidadão que me esperava era um anônimo senhor de cabelos grisalhos e boina  negra, cujo nariz de atributos romanos lhe amenizava o rosto vincado. Tinha uma tabuleta  na mão, e lá estava escrito com letras irregulares, mas enormes : Sra. Bernardelli. 

Meu Deus, que emoção! Sou eu, acenei com a mão, timidamente. O rosto do velho iluminou-se todo no dever de receber-me com honras, e o meu- onde os grandes olhos de espanto estavam ainda mais espantados – o meu voltou a ter a cor rosada,  dos que, finalmente, podem respirar em paz. Eu havia passado pela alfândega, o funcionário não me perguntara nada, e nem me convidara a voltar pelo caminho de onde viera: Que alívio! 

Em seguida, puxando minha pesada mala, mais perdida do que cego em tiroteio,  outro presente de Deus: era recebida por aquele respeitável espanhol de Espanha, que até nariz romano tinha para esbarrar no meu, na hora de me saudar. 

Pois foi assim que nos saudamos: como dois parentes que se encontram depois de uma longa ausência.  Como dois amigos que se visitam, após o exílio em outras plagas. Como dois, a quem o destino de um ultrapassara o do outro, e depois recuara, trazendo de volta. 

 Quase beijo o velho, sentindo-o tão meu parente: era o funcionário da agência de turismo. Mas era meu parente. Naquele momento eu estava aparentada com todos os homens e mulheres da terra, tão incrível foi o sentimento de pertencer que me tomou, no momento em que pisei naquele país. 

Eu me reconheci na modelo da capa de revista, em todas as modelos de todas as capas de revista - nas negras melenas adornadas por negras mantilhas, no rosto forte de influência árabe, na pele levemente morena de lembrança marroquina, nas mandíbulas quase quadradas, nas maçãs do rosto bem destacadas, no falar sem pausa, no respirar sem fôlego, no tom de voz um pouco acima do recomendável - eu me reconheci nas mulheres da terra. 

E reconheci nos velhos, o meu  querido pai;  e nos menos velhos, os meus irmãos. Nessa identificação, eu era toda espanhola. Nem feia, nem bonita: apenas uma mulher espanhola. 

Se me fosse dado uma mantilha, um pente, um leque, um vestido de babados e um par de castanholas, eu poderia sair por ali, dando olé, mas nem mesmo foi preciso. Dei um olé para a terra sem nenhum outro apetrecho que não o meu DNA  estampado na cara. 

A primeira coisa que pensei foi: preciso chorar. O momento pede que eu chore!  E eu chorei.  Só não beijei o chão da terra, porque não sei.   O choro contagiou o velho “tio” espanhol, que sem saber o que fazer comigo, e não querendo mais separar-se da “sobrinha brasileira” que  acabava de lhe cair no colo,  brindou-me com um belíssimo passeio por Madri, que não estava previsto no programa. Só fui para o hotel quando já anoitecia.

 Era hora de dormir, mas eu era a Gran Via, toda iluminada; eu era a Plaza Puerta del Sol, onde o sol nunca se punha; eu era a Espanha inteira,  acesa, comovida, e agitada.  

Foram vinte e hum dias quase sem deixar de ser a Espanha.  Eu não podia dormir porque tinha que viver as 24 horas de cada um daqueles dias, por todos os meus, que nunca mais puderam ser espanhóis; por todos os meus, que também não conseguiram ser brasileiros; por todos os meus, que perderam a identidade, sendo nada. Então, naqueles dias, eu tinha que ser-lhes tudo. E se dormisse, voltaria a ser eu mesma.

 Não, eu não podia dormir. Ficava nas sacadas dos hotéis durante as madrugadas, olhando as luzes e sonhando os sonhos.    

 Não fui à terra para um turismo tradicional. Fui para fazer o caminho inverso. Muitos vão para  o caminho sagrado de São Tiago de Compostella. E eu,  para o caminho sagrado dos santos Antonio Ribas e Antonio Ribas Filho. Os caminhos da minha mãe,  levaram-me a Campillo de Purchena- um ôvo onde só coube um pinto. Mas nada disso importava: eu havia ido para refazer caminhos. 

Meu primeiro destino- um pueblo de 300 habitantes: Hueneja, no sul da Espanha, próximo a Granada, encravado no sopé do majestoso Monte Nevado, onde há neve durante os 365 dias do ano.  Ali me nascera toda a família paterna. 

 Debruçada sobre a ponte milenar que atravessa o povoado de Hueneja, na Espanha, eu vi o rio passar. E vi o povo viver e beber, da água daquele rio - um minguado filete que nunca se esgota, continuamente abastecido pelo degelo da montanha. 

Às 3 horas da tarde, em Hueneja, é a hora mágica. A hora em que os sinos anunciam que o pão saiu do forno. 

Em segundos, o povoado acorda da sesta, as portas das casas se abrem simultaneamente, e , lá de dentro,  velhos – velhos  homens e  velhas mulheres,- de negras roupas velhas,  apoiados em velhos bordões,  surgem  mexendo devagar o  corpo velho, e vão em direção à velha padaria,   guiados mais  pelo costume e pelo cheiro, do que pela obliterada visão.

 Hueneja às 3 horas da tarde cheira a pão. O cheiro, em todas as ruas, chega na frente de tudo.    Eu entrei na fila. Com pasta de alho, fatias finas de jamón, e lágrimas nos olhos, comi o pão, lembrando da nossa margarina. O monte Nevado foi a única testemunha das minhas lágrimas. 

Eu sou uma mulher de lágrimas, já se sabe. Mas essas não foram por falta de margarina no pão.  

Essas  foram saudades de alguma abstração. Chorei por nada, mas esse nada foi tão grande, que me fez chorar por tudo.  Chorei pela ausência dos sabores da terra, de que foram privados os meus.  Chorei pelos jámons espanhóis, famosos em todo o mundo, que jamais voltaram a comer. Chorei pelas tortillas, adaptadas a cheiros verdes e outros temperos, neste Brasil de tantas ervas.  Chorei pelos chouriços, cujo sangue de porco, lhes era a lembrança mais genuína do sul da Espanha. Se não havia langostino, substituia-se por pollo. E como nada daquilo  havia, pobres que éramos, as substituições foram sendo feitas, gradualmente até que  a ração acostumada de cada dia, foi tomando o seu lugar, à mesa de cada dia. Embuchados com  arroz e feijão,  nesse país de proteinas e carboidratos, meus velhos foram aprendendo a enganar as papilas. Que de vez em quando, revoltavam-se.  De que maneira? Nem queiram saber. 

Não sei porque meus avós e meus pais, vieram morar no  Brasil. Talvez tenham vindo para sofrer, que de sofrimento se faz a vida de alguns escolhidos. Aqui eles não enriqueceram, apenas sobreviveram. A arroz com banana: boa fruta desta terra.

  Imigrantes sempre foram motivo de exploração, em qualquer nação. Alguns conseguem a proeza de enriquecer trabalhando, outros enriquecem na esperteza, mas nem de uma única célula de esperteza foi constituida a minha genética espanhola.  Uma vocação impertinente para o trabalho escravo, essa sim, lhes possuiu por inteiro. E nenhum anseio para vôos mais altos, para a liberdade. Francisco Franco lá da Espanha, os dominava, aqui no Brasil,a minguados contos de reis.  

   Meu pai era de uma fidelidade quase canina: viveu praticamente toda a vida cortando panos para um turco chamado  Nagib Fakiani, cuja lojinha ficava encravada na Rua Batista de Carvalho, em Bauru. Olha a sina! Se meu pai ganhasse, uma única vez de seu Nagib Fakiani, ganharia também do Bill Gates. Mas meu pai nunca ganhou nada que não uma tristeza crônica no olhar, e um conformismo feito de mudos e prolongados silêncios. 

Não fui a Espanha para fazer um levantamento sociológico do passado ou do presente. Fui para saber. Não sei direito o que fui saber. Na verdade, acho que fui aprender. Fui aprender que não se tira o pé da Pátria amada, sem que se pague um preço.  O primeiro preço é ter filhos que pertençam a outra nação, e que possam gostar de samba e música sertaneja, por exemplo. Meu pai detestava as duas.   Os demais, são tão inócuos quanto: torcer pelo Palmeiras, comer feijoadas aos sábados, e rabadas às segundas feiras. Tudo com cerveja, sem viño. 

Meus avós e meus pais, tiraram os pés da Espanha, por força de uma ditadura, mas outros  ficaram, resistiram, e se deram bem. Bem melhor.  Lá a vida lhes teria sido mais amena. E os sabores mais apurados. Lá, teriam dançado Flamenco e tocado castanholas. Lá, o caminho da esperança passaria por autovias e não por picadas abertas a machado e mordidas de pernilongos. 

Das picadas, sobraram os palmitos. Com os palmitos, fizeram-se pastéis. Eu amo palmitos e amo pastéis, mas lamento não ser cidadã do primeiro mundo.  Lamento ter sido destratada pelo motorista do ônibus que me conduzia, cujo respeito só consegui quando mandei-lhe na cara o palavrão preferido da minha avó. 


 Aquele palavrão salvou-me da maldade do homem e foi o meu passaporte para a dupla cidadania. Dalí para frente, ganhei o direito de assentar-me com ele, e a guia turística, nos restaurantes, e de colocar a minha mala sobre todas as outras, no bagageiro do ônibus. E de rir, das suas piadas grosseiras. E de conhecer o que pensam os motoristas a respeito dos estrangeiros que visitam a terra.  Lá, como aqui, todo burguês é um ser ridicularizado pelo operariado trabalhador. Que se danem,  que estraguem as suas preciosas malas  e que  gastem até o último euro, enquanto eles se indignam jocosamente com a nossa mansa vida de vinte dias. Que, na visão obliterada,  lhes parece ser a mansidão da vida inteira. 

Ganhei o direito à cidadania espanhola, nos dias subsequentes ao palavrão. Na despedida, até lágrimas aquele bruto derramou. Mas isso me pareceu tão pouco. Eu queria mais. Eu queria ser a dona da  terra. Eu queria passar férias, na Costa do Sol.  Eu queria envelhecer nos asilos cinematográficos das colinas próximas a Barcelona. Todos – disseram-me- custeados pelo governo, bem como saúde, alimentação e qualquer gasto com remédios. 


Na Espanha, recebe-se o resultado dos exames médicos pelo correio, juntamente com os remédios a serem tomados, e a próxima consulta  agendada. Tudo sem fila e sem desgastes; que desgastado, o doente já está, para locomover-se em vão. Tudo tão primeiro mundo. 

Eu gostaria de obter dupla cidadania.  Mas não essa dupla cidadania que se conseguiria com alguma persistência, enviando toda a papelada para o consulado da Espanha, no Brasil.  Eu gostaria de obter uma dupla cidadania de amores, de sabores,  de cheiros, de pendores, de praias de águas tépidas combinadas às águas degeladas  de Sierra Nevada, ambas entrando dentro de mim e me fazendo cidadã do mundo. E depois do mundo ser meu, então sim: eu seria dele e, juntos, faríamos uma casa universal na terra e essa casa seria a porta da casa de Deus, uma entrada para o céu.  

 Eu sei que essa é uma grave digressão existencialista. Eu sei que a minha memória genética guarda um mundo de sombras adormecidas, que a qualquer momento, podem ressuscitar e sair por aí, ao rodopio de castanholas. 


Mas não temam: brasileira para sempre serei.  Pois se só consigo a legitimidade entre motoristas, e guias turísticos, à custa de um palavrão,  é melhor esquecer a Espanha, valorizar o Brasil, comer arroz com feijão, votar no PT e aplaudir o Lula. 

Viva a democracia! Viva o arroz com feijão! Viva o SUS! Viva Matinhos, no litoral paranaense. Viva esta caipirósca, que do noroeste do Paraná, vos escreve, comendo pão com margarina. 

E viva Deus que me libertou das touradas imorais, das procissões que carregam deuses mudos, das ordens religiosas que impõem chicotadas no lombo dos penitentes, das cinco pontas da cruz de Caravaca, dos rosários de contas que, ao término de um sussurro, emendam com outro sussurro, sem nunca ter fim e sem que  a voz lhes chegue ao céu.  

 Foi melhor assim! 


* A foto foi tirada em Sevilha, numa loja de souvenirs. 




Ana Ribas




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O HOMEM COM TODOS OS SEUS ORIFÍCIOS.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 







Meu Deus como é bom dormir, e como amanhecer amanhece. E como eu me levanto ao primeiro toque de clarim que anuncia o novo dia, premida pela urgência de ser essa mesma que se levanta todos os dias, em busca de um destino não glorioso. Que de -não glórias- é feita a vida desta moura, descendente de mouros. 


Meu Deus, como são mouros esses todos que são latifundiários, e os que são bilionários, e os que são empresários, e os que são proprietários, e os que são políticos, e os que são carregadores de sacos,  nos mercados municipais que abastecem o mundo. E também como são mouros, os que são mendigos, e todos os  demais que ainda não são defuntos. 


Este é o fundo comum de uma vida sem hierarquia, que acaba da forma como se sabe, que acaba, um dia. Natal após Natal. O Natal, que inventaram como sendo o dia do nascimento de Cristo, quer dizer: "receba Cristo neste dia, antes que não haja mais natais." 

Nesta manhã, eu não tenho nada de ruim para lhes dar. Nesta manhã,  só tenho para lhes dar o que é. Não vou lhes apresentar o que não é, apenas para que me pensem de uma lucidez adaptada. Não há lucidez adaptada. Toda lucidez é desamparada. 


E a minha lucidez, nesta manhã, só quer examinar o homem, como um ser catalogável, na crueza de todos os seus orifícios. Os orifícios aparentes. Ninguém precisa me mostrar os que estão ocultos. O problema do homem são os seus orifícios. E vou lhes provar numa rasa reflexão orificial.

Nesta manhã,  eu só preciso de olhos que se levantem pedindo, pelo amor de Deus, por mais um pouquinho de escuridão e recebam a luz, bem no meio da retina. Eu só preciso de narizes que não queiram cheirar nada além do seu próprio chulé,  mas aspirem o cheiro de café.  Eu só preciso de bocas que bocejam, mas engolem, porque saco vazio não pára em pé. E esses sacos que se põem em pé, com os seus próprios pés, vão para um lugar de extrema relevância: o banheiro. Que de banheiros é feita a vida de um homem e de uma mulher. E no banheiro, outra vez, mais um orifício, aquele que não quero mencionar e já mencionei. E depois,  mãos bem lavadas,  a boca de novo. A boca escancarada para que a escova lhe penetre a cavidade, e limpe os dentes e a saburra da língua. E os dentes, numa única mastigada, engolindo o pão acostumado, sem outra alternativa, que não  comer o pão acostumado.

E a corrida contra o tempo: o homem e a mulher indo, que a vida, ao amanhecer, é feita de idas; e à noite,  é feita de vindas.  De helicóptero, de avião, de carro, de ônibus, de lotação, de trem, de metrô, de bicicleta, a pé, todos indo, e depois, todos voltando, agarradinhos com as suas bolsas, com as suas pastas, com os seus documentos, com os seus pensamentos. Os pensamentos sentadinhos e obedientes, como se tudo de bom lhes estivesse acontecendo, em troca desse nada que lhes pedem os orifícios. 

Eu hoje não quero fazer da minha matéria de meditação nada específico, eu quero a generalidade. E nessa generalidade, meus olhos alcançam o Alemão, um gatinho amarelo ouro,  que na verdade eu chamo de Mizinho, porque a suas cordas vocais emitem um “mi” fraquinho. 


Mizinho foi atropelado por um débil mental que mirou o gato na calçada, e acelerou para ver o tombo. E no rodopio da pirueta que lhe foi imposta, Alemão caiu dentro de um bueiro.

Quando a notícia me chegou – e sempre chega – Alemão foi levado ao hospital e de lá voltou curado.  Para a rua de novo? Lógico que não. Para a minha casa. Ivo, no impacto da notícia - "mais um gato de rua aqui em casa?!!!"-   jogou-me na cara um travesseiro. Feito de plumas. Mizinho não miou e eu também não miei, apenas me comovi.  Ivo tem por mim uma paixão arrebatadora, que, às vezes, se manifesta  no macio de um travesseiro. Eu amo travesseiros de plumas, mas o meu é de espuma. E também amo Ivo. E também amo gatos. E cachorros. E periquitos. E papagaios. E plantas. E tudo o que vive. E vou me equilibrando precariamente entre tantos amores. Vale a pena. Amar é a única coisa que vale a pena. 


Nessa manhã, de amanheceres que amanhecem, Mizinho nem miou fraquinho. Apenas escalou a minha cama, deitou em cima do quentinho do meu peito, e ficamos os três, silenciosamente,  entreolhando-nos: eu, Alemão ( que é Mizinho)  e um inseto que não é mosca, e não é abelha. Meus conhecimentos de zootecnia não me permitiram catalogá-lo. E meus conhecimentos de que -tudo que vive quer viver,- não me permitiram matá-lo.  


Pois nessa manhã de mouros, eu, Mizinho e o ser que voa, cada um cumprindo o seu destino, nos entreolhamos.

O inseto de côr,  que se furta a um catálogo de cores, dava vôos, curtinhos e rasantes, que diziam:  "como é bom dormir e como amanhecer,  amanhece."

Mizinho olhando para cima, acompanhava o vôo com a sua boquinha entreaberta, e a gengiva marcada por hematomas que nunca mais lhe sairão. Esse faz o seu anoitecer dez vezes ao dia, porque gato dorme 16 das 24 horas de um dia. 


Mas eu, eu que não tenho as asas do inseto, e nem a natureza dormitiva do gato, eu que não sei esconder o sol apenas fechando os olhos, fiquei comovida com o mistério que se formou e uniu  esses três seres tão distintos: o inseto, que voava; o gato, que rodopiava, sem sair do lugar, apenas com o pescoço molemolente e  olhos rápidos como um giroflex; e a mulher, que suportando o peso do gato, do inseto, da vida, dos homens e dos mouros, estava sendo de um puro heroísmo ao desvendar os orifícios do mundo. 

 Então ela pensou uma pensamento novo: este é o balé da vida e nós somos seres com sapatilha nos pés. Cada ser vivo, segundo a sua natureza, dança a parte que lhe cabe, até que a cortina se feche.  

Depois, essa  mulher renunciando à delicadeza impossível  dos bailarinos que também cultivam seus orifícios,  levantou-se para a realidade, abriu a Bíblia e leu o que nela está  escrito:

“ E a cidade não necessita de sol, nem de lua, para que nela resplandeçam, porque a glória de Deus a tem alumiado e o Cordeiro é a sua lâmpada. E as nações andarão à sua luz, e os reis da terra trarão para ela a sua glória e honra. E as suas portas não se fecharão de dia, porque ali não haverá noite.” Apocalipse 21:23-25.

-Mas então é isso, Deus?


Sim, então é isso: é noite, e ainda não raiou o sol do meio dia. Este é o lusco fusco da madrugada, e essa estrela de quinta grandeza  que parece luz, é uma velinha acesa, que apenas anuncia a chegada daquela luz. E com aquela luz, vocês não ganharão apenas um dia eterno, mas um corpo novo, sem necessidade de orifícios. 

 Então, Deus permita-me corrigir a declaração inicial equivocada com que anunciei esta crônica.

Ela vai começar assim: 

 “Meu Deus, como é bom acordar e saber que um dia seremos ainda mais acordados.” 


 E o resto, cada um pode escrever do jeito que quiser,  porque hoje todos estão convidados a comemorar  a satisfação do intervalo entre a meia luz e a grande luz, entre o sol que apenas se levanta a cada manhã, e aquele sol que não se deitará jamais, porque jamais haverá noite. 


Tenham todos um bom dia, na esperança desse grande dia! E cuidem bem de todos os seus orifícios, que eu cuidarei dos meus. 

 Ana Ribas




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Quando promessa é dÚvida. 
Ana Maria Ribas 






Bem sei que nem se lembram mais, de que, ontem, tive o compromisso de pregar em uma grande igreja. Mas faço questão de pensar que sim, que todos em conjunto lembraram-se de fazer uma prece por aquela que seria a mensageira da noite. Pois bem: quer tenham lembrado ou não, nessa manhã, tenho a alegria de lhes comunicar que Deus em mim, deu conta do recado, de maneira magnífica. Falei sobre a fraqueza das pessoas que foram comissionadas com a missão divina, e a provisão do Senhor que é todo suficiente para as nossas vidas. Ou seja, falei para mim mesma que humana sou, e em falando para a minha humanidade, todos os humanos se iluminaram em seus assentos, e a igreja ficou como uma cidade sobre um monte. Cheia de luz. Da luz da Palavra de Deus.


Mas hoje é segunda feira e desde ontem, quando me desfiz do encargo de ministrar, já meio veio o pensamento livre. Tão bom um pensamento livre. E o pensamento livre que me veio foi este: “promessa é dÚvida.” Obviamente, estou falando das promessas humanas, daquelas que um homem faz para outro homem. Que as de Deus, são infalíveis. 


Para nós, humanos, quando descemos o monte, promessa é sempre uma grande dÚvida. E não é porque tenhamos vocação para a canalhice, mas porque a vida trabalha em sentido inverso às probabilidades que você supõe para os outros, e para si.


A rotina, o dia a dia, a vida, chamemos da maneira que quisermos, esse grande monstro de boca aberta que engole as promessas em estado gestacional, ou mesmo aquelas que já nos nascem com o coração enfraquecido.


Promessas que já nascem com um coração enfraquecido são aquelas que não farão absolutamente nenhuma falta ao mundo, se deixarem de ser cumpridas. Do tipo, que eu fiz, um dia desses a alguns amigos: “esta semana, eu apareço lá, para tomar um café com vocês.” 


A semana passou, o café esfriou, e eu não apareci para tomar o café, porque nem café eu posso tomar. E a verdade completa é: eu não posso tomar café e não sei tomar visitas. Não, na casa dos outros. Na minha, depende do dia.


Não obstante, no momento em que fiz a promessa, eu pensei que sim: que gostaria de ir, que gostaria de voltar a tomar café, que gostaria de tocar a campainha daquela casa, e passado o momento inicial, que sempre me constrange, sentar-me ao sofá e respirar em largos haustos a felicidade de ser essa que cumpre promessas, aparecendo para tomar o café. E depois, o instante mais feliz: com o recibo de quitação na mão, ultrapassar o portão, dar dois beijinhos naqueles com quem gastei uma hora da minha preciosa vida feita de segundos, ligar o carro e já no quarteirão seguinte, depois que tudo acabou, enfim: experimentar ter sido, aquela normal que não sou. 


A verdade é que não sei visitar gratuitamente, não sei chegar, e menos ainda, sair, sem um motivo que possa justificar a invasão domiciliar. Mesmo que tenha sido convidada. Fico empacada na saída, como, às vezes, empaco no final de uma crônica. 


Como me oferecer uma saída digna, eu que adentro o recinto sagrado dos outros, sem ter a menor idéia do que vou fazer ali? 


Eu posso chegar dizendo, por exemplo: “oi, vim para cumprir a promessa?- estou lhes perguntando.
E na hora de ir embora, eu posso me despedir, dizendo: “então, estive aqui e foi muito bom estar aqui, mas agora preciso ir-me embora?”- eu posso fazer isso? é assim que se faz? sem uma apoteose? sem dizer: “ vim para lhe entregar um bilhete premiado da Mega Sena?”


Meu bilhete premiado da Mega Sena é sempre a Palavra de Deus que levo na bolsa, mas que só posso usar quando a dona da casa devolve-me, em simpatia, a fragilidade que eu lhe revelo. Se, no meio da conversa fútil, digo a ela, suspirando: “a vida é muito breve”, esse falar é uma isca. 


Mas se ela, preferindo comer um dos biscoitinhos, em vez de comer a minha isca, responde-me: “pois é, o tempo voa mesmo, que delícia, já estamos perto do final do ano e eu quero curtir todas: natal, fim de ano, férias”- isso significa que ela jogou fora a minha isca e preferiu o seu biscoito. Pois que fique com o seu biscoito!


Então me levanto, e da mesma forma como não tive um motivo para entrar, vou embora, sem um motivo para sair, que não este: a vida passa correndo, e eu não gosto de perder tempo com gente feliz. 


Sim, eu sei que uma pessoa que apenas vive, pode expor um pensamento simples e se você lhe der corda- como as crianças, às pipas – elas revelam um mínimo de complexidade. Por essa complexidade, apenas adivinhada, é por onde lhes morde a isca. Mas eu nunca soltei pipas, nunca tive paciência para esperar uma lufada de vento que lhes desse – às pipas e às pessoas - impulso para as alturas. Meu negócio é sempre para ontem, para agora, para já. Quer, quer. Não quer? Fui! 


Promessas e visitas. Esse é apenas um dos tipos de promessas que me faço sabendo que, ao fazê-las, acabei de ganhar uma grande dÚvida. Existem outras promessas e outras dúvidas. Todas maravilhosamente destituídas da menor importância, a não ser aquelas que lhes atribuímos, em nosso inconsciente coletivo- coletivo por milhões de idênticas e inúteis promessas, ali abrigadas. 




Houve um tempo em que, para fortalecer as promessas que eu fazia para mim, e para os outros, recorria a uma agenda. Não usava a agenda porque o meu dia fosse tão corrido quanto uma agenda pudesse sugerir, mas porque, através da agenda, acionei um mecanismo de proteção em favor das pequenas promessas que me nasciam em debilidade máxima.


O mecanismo era assim: no domingo, eu escrevia aquilo que me propunha a fazer na segunda feira. E por estar agendado que, na segunda feira, era dia de “organizar as gavetas do escritório”, por exemplo, eu organizava as gavetas do escritório, por exemplo. Que incomodava-me ver agendado o compromisso com as minhas gavetas e não cumprí-lo.


Algumas vezes, eu não dava conta da lista comprida, então, fazia um x na frente das que me desvencilhara, e repetia as demais, na página seguinte. Até que tudo fosse um grande X. Quando uma página, era de um grande X, eu era de uma grande Felicidade: Enfim, pronto, o dever de casa, eu podia viver e me gastar comigo, e não mais com gavetas. 


Bem, acho que por hoje é só. Tenho que me desincumbir da minha agenda imaginária. Que começou assim: 1- Escrever um texto para o Recanto. XISSSS. 


Tenham todos um bom dia, na presença de Deus! 


* A foto mostra eu por mim mesma, com a Bíblia na mão e uma das becas de pregadora. Estava um frio! 




Ana Ribas




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PICARETAGEM E DEMANDA.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI






Hoje é domingo, o dia em que Jesus entrou, triunfalmente, em Jerusalém. Os reis adentravam Jerusalém montados em cavalos, após as vitórias nas guerras, e Jesus escolheu montar um jumentinho, porque Jesus era do contra. Ele desbancava, pacificamente, qualquer exaltação humana, algumas vezes, sem  necessidade de proferir uma única palavra. Apenas com um quadro. 

 Jesus montava um cenário e aquele cenário falava. O cenário que Jesus montou, ao subir num burrico baixinho, quase arrastando as pernas na estrada de terra batida, dizia o seguinte: “ olhem bem para mim, vós todos que pensais poder associar a mim, as vossas BMWs e as vossas casas luxuosas em Campos do Jordão, lá no Brasil de um dia.” 

Essa minha fixação por jumentinhos nesta semana, não é de caráter obsessivo, saibam todos.  Mas é que fiquei pensando – que pensar é matéria de que gosto muito – fiquei pensando, em como hoje, aqueles que fazem a obra de Deus, estão ficando cada vez mais abusados.

 Também fiquei pensando,  em como aqueles que recebem a obra de Deus, das mãos dos tais que fazem a obra de Deus, estão ficando cada vez mais emburrecidos e manobrados.

A extrema necessidade humana faz de nós seres carentes de uma Palavra de Deus. Mas essa Palavra está tão disponível. E ela é clara o suficiente para que não sejamos enganados pelos falsos profetas que circulam por aí, com a mesma velocidade com que enriquecem por aí. E aqui não falo apenas da riqueza de indivíduos, falo também da riqueza de um sistema religioso que remonta aos tempos de Constantino, imperador de Roma. Enfim, junte tudo num mesmo saco, e pense: que gatos são esses que miam  juntos e fazem, candidamente, rom-rom-rom regidos pelo maestro do inferno?  

Meus queridos: Jesus disse que o Filho do Homem não tinha aonde reclinar a cabeça. O Filho do Homem é um dos títulos de Jesus. Como Filho de Deus, ele tinha tudo no céu, mas como Filho do Homem, ele não tinha nada na terra. Não posso dizer: Ele não acumulou nada na terra, porque se eu usasse a palavra “acumular” daria a idéia de que alguma coisa Ele já possuía, que juntada a outra coisa, seria então a coisa acumulada. Pois Jesus não teve nem a coisa, nem o acúmulo da coisa.

Entretanto, também está escrito na Palavra de Deus: “digno é o obreiro do seu salário” e “não atarás a boca ao boi que debulha.” Jesus não pretendeu que os seus representantes aqui na terra, vivessem em extrema necessidade, porque Ele sabia que, nenhum de nós, teríamos a envergadura moral necessária para atravessar a existência, sem um travesseiro para dormir.  

Por causa disso, ele enfatizou o equilíbrio: os trabalhadores da messe são comparados a assalariados e a bois. Os assalariados vivem do seu salário e o boi vive do milho.

 Entre BMWs, mansões em Campos do Jordão, salário e milho, podemos encontrar um meio termo, já que os tempos, hoje, são outros. Um obreiro deve viver com dignidade e com a honra devida àquele que deixa tudo de lado, para gastar-se na obra de Deus. Pode ter conforto e pode ter uma vida próspera. Mas não nababesca.

 A qualquer tempo, não se justificará jamais enriquecer à custa do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Hoje tem-se estampado o produto obtido pela venda do Evangelho em revistas de grande circulação nacional. Como se isso fosse apenas normal. Exibe-se heliportos, piscinas aquecidas, suites em número suficiente para abrigar multidões, e granitos em quantidade tal que daria para revestir todos os túmulos que guardam os restos mortais da indigência do mundo. 

Os ricos deste país, que herdaram dos pais e avós suas fortunas, ou que trabalharam convencionalmente para obtê-las, não exibem os seus tesouros. Mas esses tais, como novos ricos, afrontam a nossa dignidade e jogam na lama o nome de Cristo quando, sem pejo, nem pudor, o associam a esse ganho espiritualmente ilícito: compre Jesus e leve para casa a solução para a sua conta bancária.  

O modelo capitalista de oferecer Jesus às multidões, mais parece se equivaler a um leilão eletrônico. Os meios de comunicação oferecem a coisa a ser leiloada, e o interessado parte para lá, ou envia uma oferta via WEB,  disposto a pagar o preço para arrematar o bem. 

Efésios 1:3 diz assim: “ Bendito o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo , que nos tem abençoado com toda sorte de bênçãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo.” Mas o que se oferece nesses lugares, é “toda sorte de bênçãos materiais nas regiões terrestres, em...”

 Cada um complete com a instituição que escolher. 

Reduzem-se as bênçãos espirituais, que alcançam a eternidade, às bênçãos materiais que morrem com a terceira idade. E tem gente que compra e gosta. Mas esses que compram e gostam, precisam saber que isso não está associado às promessas de Deus, para a igreja do Senhor Jesus.

 O Antigo Testamento promete bênçãos terrenas ao povo judeu, numa referência à nova terra que será governada pelo povo judeu. Mas aos gentios, que formariam a Igreja do Senhor, essa Igreja que hoje somos nós, é-nos prometido que o “servo não seria maior do que o seu Senhor” e que a posse das bênçãos celestiais serão nas regiões celestiais – em Cristo. 

O negócio que Deus tem conosco é “em Cristo”. Fora de Cristo, Deus não tem nada a tratar conosco.

 Há um cheiro forte de picaretagem no ar.  Mas para que uma picaretagem possa prosperar, tem que haver uma boa demanda. E vós todos, que em multidão demandais em busca de tesouros, que a traça e a ferrugem consomem, são os verdadeiros responsáveis por essa onda de enriquecimento espiritualmente ilícito que varre a terra. 

A terra precisa ser varrida de tudo que associe o nome de Cristo a ouro e prata, a pompas e circunstâncias, a cromados e carmins. Olhem para a Igreja Primitiva que está descrita em Atos dos Apóstolos, e que cobre um período de mais ou menos 30 anos, depois da ressurreição de Cristo. Ali está a Igreja mais próxima do coração de Deus. A Igreja do coração de Deus é totalmente Cristo. Tudo o que foi acrescentado, além de Cristo, não é a Igreja. 

E sabendo disso –  você já sabe- o que se poderá fazer com isso?   A resposta começa na Bíblia: “ errais não conhecendo as escrituras e nem o poder de Deus.” Comece conhecendo as Escrituras e em seguida, como resultado do conhecimento das escrituras, lhe será também desvendado o poder de Deus.

 A resposta começa aí. Como termina, Deus vai dirigir cada um, segundo o seu propósito para com a vida de cada um. 

Quem tem o conhecimento das Escrituras, e tem o poder de Deus, bem pode ter em sua casa, uma igreja reunida, nos moldes primitivos, como Priscila e Áquila tiveram em Corinto, enquanto faziam tendas para sobreviver. Isso é a Igreja: a reunião dos chamados para fora do mundo, edificados conjuntamente como o Corpo, tendo como Cabeça, o próprio Cristo. E se isso lhe parecer complicado demais, pelo menos escolha congregar em um lugar aonde “importa que Cristo cresça e o homem diminua.” 

Faça o “teste dos nove fora”: Fora com tudo que fôr prata, ouro, carmim e pompa, fora com tudo o que fôr exclusividade de um grupo de nicolaítas, fora com tudo que se constitua em uma organização. Uma organização se move em função de um organograma, uma pirâmide organizacional, onde as ordens são baixadas do topo da pirâmide para a base, e os que estão na base são uma assistência muda, sem a oportunidade de expressar o Cristo que nEles habita. 

Isso é cristianismo? Não! Cristianismo é um organismo com uma vida: a vida de Cristo, distribuida dentro de cada um dos membros do seu corpo, os quais funcionam em harmonia, desempenhando o dom que Deus lhes deu, em favor da edificação do seu Corpo, que é a Igreja.

Você tem um dom, ainda que não saiba disso. A Bíblia diz que, a cada um de nós foi dado um dom. Você está exercendo o seu dom, o seu talento, ou está esperando chegar diante de Deus e ser repreeendido como o servo infiel que escondeu o seu talento? Se no lugar em que você congrega, não lhe dão espaço para o uso do seu talento, se no lugar em que você congrega, só lhe ensinam a arte da mendicância, saiba que há mais da parte de Deus, para você. E se você não buscar essa parte, será considerado servo infiel. 

“Errais não conhecendo as Escrituras e nem o poder de Deus.” 

Hoje é domingo e domingo não pede cachimbo, não pede churrasco, não pede lasanha, pede comunhão com Deus. Não por ser um dia pré estabelecido para isso, mas porque hoje você tem tempo para meditar nisso. 

Que Deus abençoe a todos com espírito de sabedoria e revelação.


Ana Ribas




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PARECE MAS NÃO É.
ANA MARIA RIBAS.






Parece que a vida não se move. Parece que esse é mais um sábado entre milhões de outros, embora neste, especificamente, uma chuvinha insistente esteja caindo lá fora, e fazendo tudo de um cinza ainda mais monótono. Parece que somos criaturas milenares, que nos movemos em círculos de uma extrema amplidão. Mas em círculos. É lícito dizer assim: “amanhece o dia em Corinto, em São Paulo, em Nova York, em Americana, em Atenas.” Não é preciso que as mulheres e os homens do Brasil se mirem no exemplo daquelas mulheres e daqueles homens de Atenas. Podemos nos mirar no próprio espelho, e escolher imitar hoje a pessoa que fomos ontem. 
 Parece que a vida não se move. Mas a imagem no espelho já se moveu. Segundo uma teoria científica, que não tive a boa vontade de guardar, somos hoje uma cópia daquilo que fomos ontem, fisicamente falando. Mas nem precisamos dessa teoria para saber disso: basta uma olhadela implacável no espelho. Os que já passaram dos “enta” anos, saberão que, a cada dia, a fotocópia está mais comprometida, e nem temos a quem reclamar pela má qualidade.


 As linhas e borrões na fotocópia são culpa do foto sol. O sol que traz vida para a natureza, vai marcando a sua trajetória em nossas caras. Estragando a obra prima de Deus. Esse é o preço que ele nos cobra por tamanha fidelidade. Quanto mais se exige do seu bronze, mais ele cobra pela exigência. 


Eu sempre fui branquinha e sempre gostei de ser branquinha. Lagartear ao sol nunca foi o meu negócio. Mas mesmo assim, a qualidade da cópia de hoje,  já não me agrada. Os textos do meu rosto estão perdendo a nitidez exatamente naquelas partes mais interessantes de serem lidas. Eu tinha, por exemplo grandes olhos abertos para o mundo,  como os faróis da Avenida Paulista. Hoje eles são apenas espantados. Eu tinha os contornos da mandíbula bem demarcados, como as curvas da estrada de Santos: já não tenho. Não, da forma irretocável, como os tinha. 


 Eu tinha e eu tenho. A vida é feita desses dois opostos que se opõem. O que eu tenho por fora é diferente do que eu tinha por fora. Em compensação, o que eu tinha por dentro também é diferente do que eu tenho por dentro. Que se não fosse, já seria desgraceira por demais. 


 Parece que a vida não se move. Mas assim como o universo está em expansão, estamos nós, em permanente estado de movimentação: as células de fora e as células de dentro. 


 A máquina pode estar apresentando alguns sinais de debilidade, que, não sabemos, ocupados que estamos com tudo o que é visível. 


Um dia, eu ouvi um homem dizer, com a felicidade estampada na cara boa e gorda: “ o doutor disse que eu posso ir pescar no Mato Grosso, que eu tenho no mínimo, mais dez anos de vida.” Ele tinha 80 e na semana seguinte estava morto. 
 Parece que a vida não se move, mas estamos viajando a cento e sete mil quilômetros por hora, na espaçonave terra. E a cada dia, corremos um grande risco: o risco de viver. 


 Deveríamos amanhecer lembrando a Deus o que está escrito em sua Palavra. 


 Lembrando a Deus? Deus precisa ser lembrado de alguma coisa? Pois se foi Ele quem disse, eu vou contrariar? Deus disse assim: “Fazei-me lembrado, diz o Senhor.” 


 Pois nessa manhã eu quero lembrar a Deus: “as suas misericórdias são a causa de não sermos consumidos. Elas se renovam a cada manhã.” 


 Senhor, renove a sua misericórdia sobre nós, nesta manhã, para que nessa viagem amalucada, a cento e sete mil quilômetros por hora, nossas células não comecem a se reproduzir enlouquecidamente, nosso coração bata todo compenetrado, nossos vasos sanguíneos não virem bexiga, nossa bexiga não se torne intersticial, nossos olhos não vejam outras cataratas que não aquelas do Iguaçu, e principalmente, que a nossa mente se incline para o concreto, porque só de abstratos é feita uma vida muito dolorida. 


 Nesta manhã de chuva e sábado, eu quero lhe pedir a leveza de um bolo fôfo de fubá, o morninho de um chá de camomila e a companhia do seu Espírito processado e disponível,  que me conduz, me delimita, me contorna, me conforta,  e me faz caminhar por uma avenida repleta de lírios brancos, sem sair desta, que é a minha casa. 


 Dessa maneira, Senhor, apenas dessa maneira, eu poderei experimentar, sem sofrimento, a existência de uma mulher xerocadíssima, em estado de susto, com a vocação castíssima de um anjo que emprestando-me as suas asas, me permita voar. Porque existem momentos, Senhor, existem momentos, em que viajar a cento e sete mil quilômetros por hora é pouco. 


Eu quero mais. 


Ana Ribas




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LONGE TÃO PERTO.
ANA MARIA RIBAS. 






Neste princípio de tarde,  quero elucidar a avaliação que algumas pessoas queridas fazem de mim. Tem-se dito que sou uma mulher que fala de Deus com uma paixão arrebatadora, que tem uma fé inabalável, que se gasta a serviço da obra de Deus e que quer fazer discípulos para Jesus aqui no Recanto. 

 Fico comovida com essas afirmações mas algumas delas, infelizmente não correspondem à realidade. Sou apenas uma cristã normal. E o que é uma cristã normal? A meu ver é aquela que compreendendo a grandeza do Evangelho, propaga o Evangelho, por todos os meios possíveis, e principalmente com a própria vida. Como os meus textos falam da minha vida, dos sentimentos que coleciono, da maneira “sui generis” como vejo o mundo, então, logicamente, Deus tem que estar entranhado em tudo o que escrevo, porque Ele é parte integrante da minha vida.

Como gostaria de ter dentro de mim essa paixão incomum que me atribuem. Uma paixão arrebatadora sempre culmina com uma entrega incondicional: pensamentos, sentimentos, desejos, afetos, posses, tudo deve ser entregue nas mãos de Deus, quando esse Deus nos arrebata de paixão. 

Vocês me crêem assim? Pois estou longe disso. Mas procuro estar mais perto. Todos os dias, eu procuro estar hoje mais apaixonada pelo meu Deus do que ontem, mas ao anoitecer, ainda me reconheço prostituída com aqueles, com  aquelas, e  com “aquilos” que não mereciam a minha paixão. Sou uma eterna devedora para com o imensurável amor de Deus,  esse sim apaixonante e arrebatador, a ponto de morrer por mim. Mas eu, eu sou apenas de uma “normalidade” que me incomoda. 

Preocupa-me que me pensem grande. Porque ser dessa ínfima normalidade  é esse "grande "que, equivocadamente estão vendo em mim. É impossível não ser essa mínima que sou, quando se tem uma visão adequada da grande obra do Evangelho, na vida dos homens. Os que me vêm desse jeito ampliado,  precisam apenas conhecer melhor a Deus e a Jesus Cristo. 

O conhecimento de Deus, normalmente começa sendo objetivo, e acontece em decorrência de uma vontade. Essa vontade vem pelo chamado. Esse chamado não é o seu nome pronunciado por Deus, pelos anjos, ou pelos homens, mas por um vazio interior que berra e que exige resposta. Quando bate o vazio, é o chamado. Tem gente que não espera pelo vazio e vem antes. Mas os que esperam pelo vazio são preenchidos de maneira mais satisfatória. 

Depois, vem o conhecimento experimental, subjetivo. Pois se Jesus começa a se meter na sua vida, e chega uma hora em que você não sabe mais aonde Jesus termina, e aonde você começa, isso não é uma forma de paixão, mas de co-habitação. 


Habitamos juntos, escrevemos juntos, sofremos juntos, nos alegramos juntos. Contudo, bom seria que essa fosse a realidade experimentada por mim, todos os dias. Não é. Há dias em que sei exatamente aonde eu começo: eu começo quando sou egoísta, exigente, sem afeição natural, sem amor. Aonde eu termino só  pela graça de Deus! Nessas horas, não posso merecer a avaliação que tem sido feita de mim. Só posso merecer a  misericórdia de Deus. 

Mas não quero falar de mim, quero falar de você. De você que pensa de mim mais do que convém, porque lhe falta o conhecimento experimental da pessoa de Jesus.

-Em conhecendo o que Ele é – o Verbo que era Deus; 
- o que Ele deixou de ser  – sendo Deus fez-se homem, e o mais desprezado de todos os homens; 
- para nos resgatar- veio a esse mundo para realizar por nós redenção eterna; 
- a morte não pode retê-lo – provando que o seu sacrifício foi aceito por Deus como propiciação pelos nossos pecados;
- desceu do céu como unigênito de Deus – e agora é o primogênito, garantindo que Deus nos tem hoje como seus muitos filhos; 
-estendeu para nós todas as bênçãos espirituais, nas regiões celestiais em Cristo- tudo o que é dEle é nosso também, porque temos a posição de filhos;
- foi entronizado à direita do Pai – mas nos enviou o Espírito processado por sua humanidade, morte, e ressurreição -o qual torna realidade para nós todas as coisas espirituais - afim de que não ficássemos órfãos; 
- Por esse Espírito Ele habita em nós e nós habitamos nEle, havendo uma mútua habitação. 
 - Criou uma nova raça - na cruz ele deu um fim em Adão, para fazer surgir o novo homem - em Cristo:


PELO QUAL NÃO HÁ MAIS GREGO, NEM JUDEU, CIRCUNCISÃO E INCIRCUNSIÇÃO, BÁBARO, CITA, SERVO, ESCRAVO, LIVRE; PORÉM, CRISTO É TUDO EM TODOS." COLOSSENSES 3:11. 


Esta é a essência do Evangelho: Deus se fez homem, para que nós, nos façamos Deus, porém sem a divindade. A divindade é só dele, mas a natureza de Deus, vive em nós porque somos filhos seus. Deus é o único que tem a vida inerente em si mesmo e essa qualidade de ter vida em si mesmo, foi-nos concedida como parte das bênçãos espirituais, nas regiões celestiais. 

 O processo já começou: ao vir ao mundo, Jesus introduziu a divindade dentro da humanidade; ao ressuscitar, e nos dispensar a sua vida, Jesus levou a parte humana de Maria para dentro da divindade. Assim hoje: há um homem na glória. E no futuro: haverão muitos homens na glória. 

Isso não é grande? Isso não é diferente do pequeno Cristo que alguns tem pregado por aí? Pois tal é o mais puro Evangelho de Deus para os homens. 


O Evangelho é: Cristo, como o Espírito, sendo trabalhado para dentro de cada um de nós, dia após dia, até que sejamos conformados à imagem do Filho Primogênito de Deus. Nesse dia, haverá também a redenção do corpo e tal qual Ele é seremos nós.

Espero ter contribuido para evangelizar adequadamente algumas vidas. Que hoje não estou sendo escritora, estou sendo ensinadora.  Uma ensinadora que, neste momento, está orando por você. 

 Deus abençoe a cada um com Espírito de sabedoria e revelação. Amém!




Ana Ribas




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JUMENTO TEM MEDO DE MULTIDÃO. 
ANA MARIA RIBAS. 






Quando aceito, alegremente, que meu negócio é mesmo escrever, Deus olhou para a minha capacidade de submissão e decidiu que aquilo estava fácil demais. Resolveu remexer. Deliberou-se de novo, que o meu negócio não será só escrever e ler - será também falar. Mas todo mundo não fala? Fala! Eu também falo, mas Deus parece me querer falando um pouco mais. 


Porque tenho boca, e tenho palavras que me vêem à boca. E tenho idéias, que não me surgem do nada, mas por inspiração divina. E conheço o Senhor Jesus, e a sua Palavra. E tenho um testemunho para contar ao mundo, porque sou uma mulher de dores, e as dores falam com o coração do mundo. 


Mas, em quinze dias, ou talvez vinte dias, nesses poucos dias, em que fiquei muda, por motivos que os leitores fiéis já sabem, nesses quinze ou vinte dias, algo mudou dentro de mim. 


Eu que já pegava o microfone sem tremer, eu que parecia ter vindo ao mundo também para falar, de repente, daqui do conforto da minha escrivaninha, só escrevinhando, percebi com alegria que não me queria mais falando. Que só me queria escrevinhando, tão bom é escrever: escrevo de pijama, de pantufas, de pegnoir, descalça, de chinelo, e se bobear, posso escrever até do jeito em que nasci. Embora desse jeito nunca tenha experimentado. 


Meu Deus, eu não entendo Deus. Sei que Deus não é para ser entendido, mas justamente agora? Agora que estava feliz, em sendo apenas escritora, começam a chegar convites para eu ser de novo narradora? E eu que tenho com Deus um pacto de viver para Ele, posso negar-lhe de contar ao seu povo, o testemunho do que ele fez em minha vida? Não posso! 


Bem, na verdade, esclareço aos meus pares: não são tantos convites assim. Falando desse jeito há de se pensar erroneamente que seriam uma dúzia de convites. Não são. Divida por dois e você terá seis. Depois divida por mais dois, e o número exato será esse de que vos falo: três. Fui amenizando, aos poucos, a sua expectativa, para diminuir o impacto da decepção. 


São apenas três, sendo que um dos três, veio de outra cidade. Olha que international! Deus fez com que me viesse um convite de outra cidade! Isso é tão significativo. Significa que Deus levou o meu nome, nas asas do vento, até outra cidade. E trouxe nas asas do telefone, o convite, para o qual, meio no susto, acabei dizendo sim. 


Se vocês me vissem! Eu fiquei de uma delicadeza impossível. Desliguei o aparelho, coloquei as mãos cruzadas no colo, olhei em volta e, por alguns segundos, meus pés nem tocaram o chão dessa terra áspera. Eu só suspirei.


E depois do suspiro, que acabo de lhes contar, suspirando de novo, como se esse suspiro fosse aquele, e não este, tenho que parar de enrolar e contar o resto: o primeiro convite, eu deixei em aberto. 


O que significa deixar um convite em aberto? Significa: “nem sim, nem não”. Pedi à Irmã Marina, que - honrosamente- me convidou, - pedi à irmã Marina, que procurasse outra pessoa mais preparada, e caso não encontrasse essa outra pessoa mais preparada , então, o negócio seria com esta mal preparada que vos escreve. 


“Vai que é tua, Tafaroa.” Com toda a reverência que me acompanha, nessa vã tentativa de ser engraçada. Foi o jeito que achei de fazer prova com Deus.


Só que hoje eu não estou engraçada, estou amplificada. Vejo horizontes onde só há paredes, aqui na frente desta branquinha, em que me encontro, escrevendo para vocês. 


Porque deixei em aberto o primeiro convite é uma coisa que não estou deglutindo bem. Penso saber explicar, e a explicação seria essa: foi o primeiro convite, e o primeiro bem poderia ser um equívoco do homem. Eu não podia crer que era Deus me chamando, através da Irmã Marina. Não de novo. 


Eu sei que Deus não comete equívocos, mas como saber se Deus é Deus mesmo? Pois para que não me sobrasse nenhuma dúvida, Deus caprichou: em sequência, chegaram-me os outros dois convites. Como se eu fosse uma pregadora conhecida. Que não sou. Portanto, sendo uma desconhecida, tenho que admitir que três convites em sequência, querem dizer assim: EU SOU O QUE SOU!


Mas continuo deixando em aberto o primeiro convite. E por que, Ana Maria e por que? Ah, tá bom, vocês me pressionam tanto, que eu confesso: porque tenho medo. O medo que acompanha qualquer situação nova, que possa ameaçar a minha preciosa imagem velha. 


Isso tem um nome:preservação da imagem. O homem se respeita tanto, e se tem em tão alta conta, que foge da demonstração de qualquer tipo de fraqueza que não se coadune com a sua imagem ideal. No meu caso, a imagem de uma mulher inteligente e segura; Ha! Ha! Ha! 


A minha fraqueza vem do fato de que fui convidada por uma grande denominação, com muitos membros e muitas expectativas, para um culto de encerramento de missões. E eu penso que para algo dessa dimensão, vai me faltar envergadura. Não sou evangelista, sou ensinadora. E só sei ensinar como um mestre ensina os seus pupilos: sem pompas. 


Esse é um dos motivos. 


Mas esse é o motivo que encontrei para me enganar. O verdadeiro é: sou uma mulher de pouca fé. 


Contudo, essa pouca fé, menorzinha do que um grão de mostarda, não me impede a convicção interior de que, se Deus quer-me usar naquele púlpito, no próximo domingo - não se achará mais ninguém para pregar naquele púlpito, no próximo domingo. E aí, “se não tem tu, vai tu mesmo.” 


Irei. E irei, consciente de que, a escolha soberana de Deus é o segundo “tu” e não o primeiro. Mas - outra vez?  pergunto, eu. 


Outra vez – respondo eu. A vontade de Deus prevalece nos homens e mulheres que se submetem a Ele, e dessa maneira, Deus elege os fracos, para neles revelar o Senhor que é forte, que é Maravilhoso, que é Conselheiro, que é Deus forte, que é Pai da Eternidade e que é Príncipe da Paz. Jesus é! 


Uma pergunta eu me faço. Três convites significam: outros virão? Devo preparar-me, psicologicamente, para acumular essa outra função? Porque se me gasto toda, nessa difícil tarefa de querer o que já não quero, e depois acabo querendo para me amoldar à vontade de Deus- se me gasto toda, querendo o que Deus parece querer por mim, - e depois que quero, Deus decide não querer mais – o que é isso senão um jeito de ser tratada com a cruz de Cristo? 


Estou procurando pistas que me levem à próxima instrução, e me deparo com esta que vou compartilhar agora, com vocês. 


Somos todos Sherlock Holmes!


Antes que os convites viessem – e começaram a chegar antes de ontem, à tarde, todos em sequência - chegou-me um comentário, via escrivaninha, que diz assim: “ Percebi que sem o pequeno jumento, Jesus não entraria em Jerusalém.”


Fiquei pensativa com esse jeito de mandar notícias. Porque conheço quando as notícias são da terra, e conheço quando as notícias são do céu. E essa veio do céu. Está postado em “comentários”, recheada de versículos bíblicos, para quem quiser conferir. Vai lá: “ Eu ontem fui demitida.” 


Aquela que foi demitida é o pequeno jumento. 


E depois, esse homem de Deus, que é meu leitor, esse homem que percebeu que sem o pequeno jumento, Jesus não entraria em Jerusalém, continuou a sua fala, no imperativo, para mim:
-“Vá em frente”. 
-“Sim, irei em frente.” Eu daqui lhe digo.
E ele afirma, sabendo das coisas: 
-“A porta da parábola está se abrindo.”
E eu, de cá, lhe respondo: 
-“Amém, passarei por ela.” 
E depois, ainda me exorta:
-“É só mais um passo de fé.” 
- “Amém, amém. Darei esse passo.” 


Darei esse passo mesmo sem entender, porque Deus não existe para ser entendido, existe para ser obedecido. Mas confesso para todo o Brasil: o pequeno jumento tem medo de uma grande multidão. 


Uma grande multidão de 100 pessoas. 




Acabei de receber um telefonema, informando-me que não se achou mais ninguém para pregar, neste domingo. Amém! Que seja feita a vontade de Deus em minha vida, e que Ele seja grande nesta irmã menor. Ana Ribas




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 PIMENTA NÃO É REFRESCO.
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI. 






Estou lançando oficialmente a campanha: “Pimenta não é Refresco.” E se quero conquistar adeptos,  tenho que me dedicar a uma viva reflexão, cuja fim seja fazer dos  humanos, seres menos humanos e mais divinos. 




 Haverá um dia em que pimenta seja refresco, não sendo aquele tradicional “no zóio dos otro”? Pois quando eu vinha descendo a rua, veio-me o sentimento. Sentimento! Eu penso sentimento, como um princípio de resolução. Sou extremamente simpática e acolhedora com os meus  sentimentos. Com os bons. Embora já saiba, que neste mundo há somente um Único que é bom.    




 O desafio imenso de hoje: fazer com que a pimenta seja refresco em nossos próprios olhos. Impossível! Isso exigiria de mim a consciência cósmica de um iluminado. E eu, eu que só tenho a minha própria, não posso lançar-me, salomônicamente,  a esse desafio, apenas descendo a rua, e olhando o mundo à minha volta. Mesmo com grandes olhos de espanto, que é a minha marca registrada de olhar e ver. 




 Eu entendo a pimenta como uma situação extremamente ruim, a qual os seres humanos evitam a todo custo para si, e não se importam, nem um pouco, quando acontece com o outro. Com o outro pode.  Não é assim? Mas isso é o princípio da maldade! Meu Deus, acabei de descobrir o princípio da maldade! Toda maldade tem por base essa premissa. E diante de tantas modulações de maldade que direi eu?




 A última da qual eu soube, pelas manchetes, deixou-me tão aflita: “ pai e madrasta, matam dois filhos adolescentes e esquartejam os corpos.” Antes, porém, torturaram os dois meninos, a ponto de fazê-los registrar em uma carta, o desejo de habitar  um mundo menos ruim. Um mundo onde pimenta no “zóio dos otro” não fosse refresco. 




 Penso nesses meninos, e me pergunto: Senhor meu Deus, como podemos prosseguir, indiferentes, sendo humanos? Eu sei que não sou apenas humana,  sou filha do Deus vivo, feita à imagem e semelhança de Deus. Mas o que fazemos nós, os filhos do Deus vivo, com a sua imagem e semelhança,  quando nos confrontamos com o que fazem os filhos do capeta, à sua imagem e semelhança ( do capeta)?




  Não fazemos nada! Nem guardamos mais a capacidade da indignação, do choro, dos lamentos e  dos ais.  Mas guardamos intacta a letra da última música de Adriana Calcanhoto. 




 A vida segue e nós seguimos  sendo apenas humanos. 




 Com igual tristeza, constato, que  nem preciso ligar a televisão para perceber que a humanidade continua preparando diariamente, para os outros seres humanos, a sua poção infernal apimentadíssima.  E que ela atinge toda a criatura, humana ou não. Por isso é que a Bíblia diz: “ toda criação geme e chora aguardando o dia da redenção.” 




 Senão, vejamos: estou na academia, fazendo o meu sacrifício de cada dia. Não fui lá para ver, mas, de repente, ver se tornou inevitável: dentro do páteo,  vejo um velhote maldoso espancando  o cavalo manco que lhe puxa a carroça. A carroça vem carregada de achas de lenha para aquecer a piscina térmica. As achas pesam toneladas. E o cavalo mal aguenta sem arriar. Pois esse velho tinhoso,  ao qual devoto o mais profundo desprezo, joga pimenta nos olhos do cavalo quando lhe oferece quarenta chibatadas no lombo, ignorando o esforço que o cavalo faz.




 Eu odeio a maldade que esse homem comete, e fui falar com ele. De nada adiantaram os meus argumentos, se ele tem o dele. E o argumento dele é assim: “ dona, a a vida do meu cavalo, é melhor do que a minha.” E passou a desfiar sobre mim um rosário de lamentações, enquanto o animal, arriando, esperava que o velho lhe tirasse,  dos costados, as achas de lenha. 




Logo percebi que a pimenta do velho asqueroso se voltara contra mim, como uma baba grossa. Daquelas quiabentas. Todas as vezes que ele me avista, surra o animal. Ele gostaria de me surrar, aburguesada que sou para os padrões da sua  miséria, mas como não pode,  a pimenta nos olhos do animal vai lhe servindo de refresco.




  Eu poderia comprar esse animal, mas o que faria com ele, na sala da minha casa? Não posso trocar o Ivo por um cavalo manco!  E o que faria com os outros cavalos? E os outros? E mais os outros? 




 Nessas horas, sinto que se instalou uma tristeza milenar dentro de mim e que essa tristeza queria ter um milésimo de poder: poder esganar o velho, poder libertar o cavalo, e poder  instaurar o novo céu e a nova terra, prometidos por Deus para nós,  aonde o leão e a áspide brincarão com o desmamado de peito, e nenhum mal se lhes fará. 




 E por falar em fazer, eu me pergunto, ainda que não seja da minha conta, eu mal me pergunto: o que fará Deus, com aqueles  que  exercitam, a cada dia, uma  forma nova de praticar a maldade, como se isso fosse apenas uma manobra de surf? 




 Pratica-se, o mal por esporte e, pensa-se que não haverá o dia de um juízo?   


O que  fará Deus com os que desmatam a Amazônia, sem ouvir o gemido das árvores? 




 O que  fará Deus com os que nada fazem a respeito do que não lhes diz respeito? Como esses que convivem pacificamente, com a maldade do vizinho, e tem por ela uma tolerância próxima de um princípio religioso ou social: “eu cuido da minha vida e ele cuida da dele.” O que Deus fará? 




 Eu não aguento esperar pelo que Deus fará amanhã.  Eu falo hoje, eu choro hoje, eu berro hoje, eu esperneio hoje, eu me meto aonde não sou chamada, hoje, ontem, e amanhã, enquanto vida tiver. 




 Mas o mundo precisa de muito mais pessoas para engrossar o batalhão dos que se rebelam contra toda “liberdade” arbitrária, arrogante e bárbara.  Mesmo que isso signifique encrenca com o pai, com a mãe, com os irmãos, com a família, com os vizinhos, com os políticos, com o sistema, com o mundo. Que gente ruim há em todas as camadas sociais, nas melhores e nas piores famílias: Ninguém está livre da desgraça de abrigar uma cobra no seio. Mas Deus pode nos livrar. E que Ele nos livre então das cobras que ainda não nasceram.




Contra estes filhotes do demônio que já estão em circulação pelo mundo, só há uma solução: unamo-nos contra eles. Vamos todos aderir à campanha do “Pimenta não é Refresco”




 Não se gasta quase nada, aderindo à ela: Só a vida toda. 




Ana Ribas




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SE O MEU FUSKA FALASSE.
ANA MARIA RIBAS. 






Andam abusando do direito de escrever no painel traseiro de carrinhos e carrões. 


Abusam tanto, que eu me divirto tanto. Ou me aborreço muitíssimo.   


Quando avisto de longe, um carro, com uma fraseologia ambulante, acelero para chegar mais perto: - “fala carro, que eu lhe escuto como um ser falante.” Que você não é, mas convencionaram que fosse.

 E os carros, esses dizem coisas que os seus donos gostariam de dizer, mas não encontraram espaço em outro lugar. Gente que ainda não entrou na era do www. Tão fácil: um clic e tem-se um blog circulando na WEB. E com ele o direito de dizer o que se sabe, o que se pensa, o que se quer. Mas existe ser movente que ainda prefere o vidro traseiro do carro: uma resumição só. 

Dia após dia, mês após mês, ano após ano, há  gente dizendo a mesma coisa, e há  gente lendo a mesma coisa. Com uma desvantagem: lemos e não podemos opinar, compartilhar ou discordar. Fiquei mais de ano, com um vizinho confirmando, todos os dias,  que   “batatinha quando nasce esparrama pelo chão” e a batatinha nunca cresceu e nunca parou de esparramar-se, até o dia em que ele mudou-se daqui e foi esparramar batatas em outro arraial.  Singelo, não? 

Mas há situações mais graves. Por exemplo: o que significa um adesivo com os dizeres: “Propriedade exclusiva do Senhor Jesus.” Significa que o Senhor Jesus é o dono do carro, ou é o dono da vida  de quem possui o carro?

Se fôr da vida, seria melhor escrever no coração. Se fôr do carro,  a coerência exigiria que se entregasse  a chave, para toda e qualquer pessoa, que do veículo, necessitasse.  Um vizinho doente - sem carro para se locomover até o hospital? Poderia usar esse - que é propriedade exclusiva do Senhor Jesus. Um mendigo cansado, carregando seus trapos em direção ao sul? Teria todo o direito de pedir que o levassem até a cidade mais próxima,  utilizando-se da propriedade exclusiva do Senhor Jesus. Simples  assim.

   Porque é isso que faria Jesus. Onde já se viu Jesus negando a um discípulo precisado,  o direito ao uso do seu jumentinho, se jumentinho Ele tivesse possuído? Não possuiu. Para a entrada triunfal em Jerusalém, tomou um  emprestado,  e o devolveu, depois, ao verdadeiro dono.

Andam abusando do direito de escrever sobre Jesus no painel traseiro de carrinhos e carrões. Uma frase muito em moda: “Deus é fiel”. Essa é a escolha de nove entre dez modelos de carros novos.  Como se a fidelidade de Jesus dependesse da conta bancária do cidadão que pôde adquirir a máquina. E com tal, sub-entende-se que aquele que só pôde comprar um Uno velhinho,  não pôde contar com a fidelidade de Jesus. Que essa é prerrogativa de quem tem modelos mais modernos e sofisticados. 

A fraseologia dos religiosos, deixa-me com suor nas axilas, tão agitada me torno. Fico como se tivesse cumprido o percurso da São Silvestre, mil vezes, com a língua de fora, sem olhar para trás. Meu Deus, para onde irei eu, tendo que guardar comigo o que penso, nesse pensar que é meu próprio, e que é tão solitário? Para:

 www.anamariaribasbernardelli.com

Felizmente, temos também a fraseologia dos  apenas humanos. Esses não misturam alhos com bugalhos. Só por isso, já contam com a minha compreensão. Um exemplo: “ Eu amo meu marido.” Ou “Eu amo minha mulher.”

 Posso compreender, mas não posso deixar de comentar: olha só que patetice! Pois se a sujeita tem um homem como marido, e se esse marido a tem  como  mulher, seria por algum outro motivo que não o amor? O que mais deveria unir um homem e uma mulher: a conta bancária? os filhos? o comodismo? afinal, por quais motivos um ser humano precisa sair por aí anunciando que ama o parceiro, se isso deveria ser o óbvio ululante? Talvez porque não seja. 

Outro dia, eu reconheci um homem inocente e puro, pela fraseologia  do seu carro. As letras bordadas no painel diziam o seguinte: “ A FORÇA DA TUA INVEJA É A VELOCIDADE DO MEU SUCESSO.” 

Esse foi curioso. Olhem os detalhes: ele viajava a 60 km por hora, e o carro estava usando toda a força dos seu cavalos de força: era um fusquinha hum mil novecentos e bolinha, caindo aos pedaços. 

Mas enquanto os pedaços não caiam, o homem puro passeava com a mulher e os filhos, todos puramente assentadinhos e espremidinhos, como sardinhas em lata. Eu passei por eles, com a minha máquina, e enxerguei, só no banco traseiro, quatro pares de olhinhos que descobriam o mundo em alta velocidade. Contando mais dois, nos bancos da frente, temos seis: seis pessoas que me pareciam haver acabado de adquirir o direito de locomover-se, como se estivessem ao redor da mesa da cozinha: sentados. A paisagem apenas passando, em slow motion, e a emoção mais acelerada do que o motor daquele que, um dia, fora chamado de carro. 

 Esse tão puro do qual lhes falo,  morador da roça que era,  usava chapéu. E o vizinho dele, só tem uma carroça e é invejoso. Então, já se sabe a lógica da frase escolhida: “a força da tua inveja, é a velocidade do meu sucesso.” 


Fácil de ler, digerir e engolir: “Vai seu Zé, ser sucesso na vida com a força da inveja do seu Mané.”

Cheguei em casa, e escrevi a frase no mural de avisos, para não esquecer. Porque ali me nasceu essa crônica. Quatro dias depois, finalmente, Ivo, distraído como ele só, ou ocupado como sempre foi,  veio perguntar o que significava aquilo que estava escrito em nosso mural de recados. E que me fazia rir, toda vez que passava por ali. 

Nada não, Ivo. Significa apenas isso: Se eu fosse adepta do fraseologismo ambulante, as frases do meu carro diriam assim: 

1- Propriedade exclusiva minha, porque comprei com o dinheiro do Ivo.  
2- Deus é fiel com carrão, com carrinho, com carroça, com bicicleta, ou a pé.
3- Se eu amo, ou não amo meu marido, é problema meu. Cuide do seu.
4- Sua inveja, não me fede, nem me cheira: pode invejar à vontade. 

Mas isso é porque sou revolucionária, reacionária, sublevadora, retrógada e porque não acompanho a modernidade dos meus pares. 

Faz parte do chamado de mulher das cavernas. Das cavernas de Elias.   




* Foto produzida  pelo Alemão. Obrigada, alemão. 


Ana Ribas




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