sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Duas dúzias de mim




Sempre que vou viajar, acontece-me algo muito estranho. Na véspera, terminando de arrumar as malas, quando embalo as coisas para dormir, à espera da minha volta, o meu entusiasmo pela viagem diminui e dá lugar a um sentimento que se parece com um adeus definitivo.

Viajar para mim é uma espécie de morte, a morte das coisas que ficam, a morte da paisagem que vejo da janela do meu quarto, a morte da rotina de cada dia, a morte dos meus hábitos, a morte dos meus animais, a morte das pequenas coisas com as quais preencho a vida e gasto o meu tempo.

Antes mesmo de ir, já fui. Já fui quando me esvazio gradativamente das realidades que me preenchem e por já ter ido, antes mesmo de ir, a saudade bate forte no peito e a nostalgia me domina. Se há algo sobrenatural que sonho receber um dia, quando deixar este mundo é a capacidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, liberta da impossibilidade da matéria que me obriga à permanência em apenas um. Trata-se de um atributo tão imenso que sempre que o desejo peço perdão a Deus por esse querer absurdo que está acima da minha capacidade de comum mortal.

Tenho pois essa digressão emocional que rouba a minha alegria às vésperas de uma viagem. Antes não. As semanas que antecedem a viagem trazem-me um presságio de esperança. Fico feliz quando me programo para uma viagem. A programação é motivo de celebração. Imagino-me lá e a imagem do lá enche-me de expectativa. Lá é que será bom. Lá haverá um jeito de olhar para o céu e ver só o sol, só as nuvens, só a grandeza de Deus. Lá, ao acordar, poderei usufruir da paz sem guerra. Lá, se eu não dormir, não lutarei contra a insônia, nem tentarei abduzir o sono, tão grande será o descanso de mim comigo. Além disso, há esse outro isso: agrada-me a idéia de usufruir de uma mobilidade fictícia – porque afinal, quem é livre?- mas a mim parece-me que sim, que sou livre e que posso ir e vir, embora naquele momento interesse-me mais o ir do que o vir. Na preparação de uma viagem, na idéia que apenas se insinua, bem à distância, sinto-me como devem sentir-se os passarinhos quando migram para outro continente.

Porém, quando se aproxima o dia da partida, sinto saudades dos momentos de permanência acostumada. Também sinto que as coisas terão saudades de mim. As coisas. Coisas que latem, coisas que miam, coisas que andam pelo telhado e na calada da noite vêm buscar comida na minha sacada, coisas que voam e pedem alpiste, coisas que eu alimento e que me alimentam, coisas que me servem, coisas às quais eu sirvo, coisas que se movem e que não se movem, mas são feitas da mesma matéria com as quais Deus nos criou: os átomos. Será que os átomos sabem o que é saudade? Eu creio que sim. Eu creio que um chinelo velho jogado na lata do lixo sente saudades do pé que o transportou. Acho que é por isso que certas pessoas vão acumulando coisas e não conseguem desfazer-se de nada. Porque sentem o que o chinelo sente. Graças a Deus, eu dou o chinelo para outra pessoa antes que ele fique muito velho e ai o problema passa a ser de outra pessoa. Essa é a forma que encontrei para não me apegar a muitas coisas. Reciclo, redireciono, passo pra frente e procuro esquecer.

Eu entendo perfeitamente pessoas que não gostam de mudanças. Eu acho que também não gosto. Pensando bem sou avessa a mudanças. Uma simples mudancinha de uma semana me deixa assim, toda melancólica. Mas nem por isso deixo de mudar. Eu entendo perfeitamente as pessoas que não gostam de viajar. Mas nem por isso deixo de viajar. Eu entendo perfeitamente que a vida é um exercício de desapego. Já comecei a fazer o dever de casa há alguns anos. Faço esse exercício de maneira suave, mas ininterrupta. Estou me desapegando de coisas que devem deixar de pertencer-me antes que eu mesma não me pertença mais. Tenho pavor de pensar em deixar para as minhas filhas uma porção de velharias cheirando a mofo, cujo valor seja apenas sentimental. Afinal, nenhum filho merece uma herança atávica feita de objetos que se perpetuaram na espécie familiar. Já comecei a sondagem: discretamente vou descobrindo o que deve ficar para quem, e o que não deve ficar para ninguém. Se a coisa mais difícil do mundo é encontrar um dono para as coisas que o defunto deixa no armário, tudo bem: tentarei fazer isso pelas minhas meninas antes de virar defunta.

Porque eu também já fiz a coleta seletiva deixada pela minha avó, pelos meus pais, e pelo meu filho. Porque eu também já morri um pouco a cada vez que me desfiz daquilo que durante anos, ficou guardado no mesmo armário. Coisas. Coisinhas. Caixas. Caixinhas. Todas com a cara do dono, pedindo respeito e exigindo consideração. A consideração que se deve ter com os seres vivos e que, às vezes, não temos.

Eu odeio todas as espécies de morte, todas as separações, todas as interrupções, todos os afastamentos, todas as ausências, todos os processos que nos obrigam a escolher entre este ou aquele, entre isso ou aquilo. Eu quero este e quero aquele, quero isso e quero aquilo. Cabe tudo dentro do meu coração. Mas que pena: não cabe dentro das convenções sociais, não cabe dentro do esquema doméstico, não cabe dentro do código civil, não cabe sequer nas leis da física. Uma pessoa é uma só, não pode ser duas. Uma pessoa é uma só, não se divide. Uma pessoa é uma só, mas juro que dentro de mim tem lugar para mais duas dúzias de mim.

































Seres Moventes

Viracopos é um laboratório riquíssimo de observação antroposófica, uma estação onde se pode observar de perto o comportamento dos iguais diferentes.
Somos todos iguais diferentes, portadores de uma humanidade rasa que adora se mover. O homem é um ser inquieto, está sempre em movimento.
Em direito civil há os chamados seres moventes. Obviamente ser movente é tudo o que se move, embora em direito civil seja um termo que se aplique apenas aos burros, cavalos e coisas tais que possuam 4 patas.
Nisso somos todos iguais: poeirinha cósmica diluída no oceano da matéria sem raízes que nos imobilizem ao chão. Somos diferentes na singularidade com que escolhemos o nosso destino, no comportamento determinado pela cultura, pelo temperamento, pelas preferências estéticas, escolhas sutis que revelam a nossa individualidade através do jeito de falar, de andar, de vestir, de nos conduzir pela vida afora.
Ou pelas plataformas de embarque adentro. Viracopos e todos os grandes aeroportos do mundo funcionam como uma vitrine que expõe todo tipo de seres moventes. A proximidade favorece a exposição. O fluxo estagnado determina a observação. Todo mundo sentadinho lado a lado, num salão apertado, com poucos banheiros, ou em fila indiana à espera de alguma coisa, todo mundo à mercê de regulamentos cuja lógica nos escapa, cuja segurança nada nos assegura, todo mundo com a disposição de alunos disciplinados e, ao mesmo tempo, displicentes, famintos, sedentos, fisiologicamente necessitados, alheios ao espetáculo que proporcionamos, uns aos outros, na interatividade forçada a que nos submetemos enquanto esperamos a hora de nos mover, porque seres moventes somos.
Da última vez que me movi, entrei na fila dos famintos e dos fisiologicamente necessitados uma vez, e depois me sentei observando uma coisa nova que acontece em Viracopos: entre as poltronas da área de embarque foram dispostos alguns assentos de tamanho grande com os seguintes dizeres : “Reservado para pessoas obesas.”
Pessoas obesas existem em todos os lugares, de acordo com a observação comum. Mas uma coisa é observar os obesos e outra coisa é estar habitando um corpo obeso. Do ponto de vista das pessoas não obesas, é fácil determinar quem é obeso e é uma expressão de gentileza lhes destinar poltronas mais largas e confortáveis.
Mas do ponto de vista das pessoas obesas, obeso é a mãe. Obeso é a mãe de todo aquele que ousar sugerir que o obeso seja obeso. Ocorre que o conceito de obesidade é algo subjetivo e só a OMS tem parâmetros científicos para determinar quem cruzou a linha da obesidade e quem está chegando lá. O resto fica no senso comum que varia segundo a interpretação sensorial de cada um e que, por isso mesmo, tende a ser cruel com o outro e complacente consigo.
Por isso, embora o salão de embarque estivesse repleto de pessoas obesas, eu não vi nenhuma que assim se considerasse, e que estivesse disposta a ocupar os tronos sem cetro e sem majestade do rei Momo, instalados a cada fileira, porque seria pagar um mico muito grande fora do carnaval.
Resultado da ação social: salão lotado, pessoas em pé, e todas as poltronas de gordo, vazias.
Gordo é sempre o outro. Gordo é a senhora sua mãe. Gordo é a sogra. Gordo é o chefe. Gordo é o filho do patrão. Gorda é a perua da vizinha. Gordo é o filho da mãe que teve a infeliz idéia de escancarar que aquele assento foi pensado para os gordos.
Se a ANAC está tão preocupada com o bem estar dos gordos, deveria obrigar a aviação civil a oferecer em seus aviões uma fileira de poltronas só para os gordos.
Eu não sei se você já se moveu ao lado de um gordo. Eu já. Sobra banha e falta assento e aquilo que sobra, com certeza, acaba ultrapassando a tênue linha que divide as duas poltronas onde se concentram os respectivos traseiros dos seres que se movem. Não há nada a fazer. A não ser lamentar o azar e pedir a Deus que a aeronave chegue logo ao destino.
Viracopos é assim: um circo onde qualquer um pode participar do espetáculo. Se você não quiser ser o artista pode ser espectador, pode ver, pode ouvir, pode racionalizar, pode se divertir, pode indignar-se, encorajar-se, pode fazer suposições, só não pode ausentar-ser. Não há como ausentar-se do recinto. Somos forçados a uma convivência pacífica de duração variável no campo de concentração em que os seres moventes ficam retidos como seres de 4 patas, até que a aeronave decole com aqueles que escolheram mover-se naquele dia e hora. Sim, porque o horário marcado com dias de antecedência é apenas para os seres moventes respeitarem. As empresas aéreas não o respeitam nunca. Contudo, temos que admitir: por conta da diversidade dos seres moventes, às vezes, essa maratona é divertida.
Nessa ocasião, além de observar o comportamento dos gordos, também consolidei o aprendizado em relação aos seres moventes do sexo feminino que usam Viracopos como plataforma de lançamento.
Foi assim: esse ser movente que vos escreve estava sentada ao lado de dois seres moventes do sexo masculino que, por suposição, eram amigos, mas também poderiam ser parentes. Inimigos não eram porque o papo rolava animado. Em Viracopos a gente supõe, mas nunca tem certeza. Para ter certeza seria preciso cometer uma indiscrição. Claro que nenhum ser movente, em perfeito estado de juízo e adequação social, sucumbe a essa curiosidade. Estávamos, pois, os três seres moventes nesse clima de dedução civilizada, lado a lado, como se estivéssemos sentados na sala de casa, cruzando e descruzando as respectivas patas. Ou melhor, as respectivas pernas. Estranhos e íntimos. Tão perto e tão longe. Tão impessoal e tão causal. Tão casual e tão formal. Impossível não observar o mundo pela mesma perspectiva, impossível não ouvir, impossível não entender, impossível não acompanhar o raciocínio dos seres moventes que estão colados a nós. A certa altura, a vontade é abandonar a postura impávido colosso, cantar o hino nacional sem essa estrofe, pedir licença, e intrometer-se no diálogo para oferecer a nossa modesta visão sobre o assunto. Qualquer assunto. Que de assunto a gente entende.
Claro que não nos intrometemos. Mas claro que foi assim, nessa participação silenciosa e involuntária, que aconteceu o que acontece sempre em Viracopos: um ser movente do sexo feminino entrou no ângulo da visão coletiva. Mas esse não era um ser movente comum, era de arrastar quarteirão, só pelo prazer de admirar uma coisa diferente que se movia do nada para lugar algum. Na verdade, esse era um ser movente delivery que poderia ser despachado para qualquer lugar do Brasil e do exterior. Imagine um mulherão de hum metro e oitenta centímetros, fora o salto, apertada numa saia de 50 centímetros, pernão musculoso de jogador de futebol, rabo de cavalo tordilho, peito de chester, e bunda de passista de escola de samba, e você obterá a visão da garanhona que prendeu a atenção dos comuns mortais que, naquela noite, se moviam.
Obviamente, os dois seres moventes que estavam ao meu lado também ficaram seduzidos pela aparição salomônica. Assombrados. Atordoados. Visivelmente embabascados. Após dois minutos de silêncio dedicados à babação explícita, o ser movente mais velho olhou para o ser movente mais novo, e fez a pergunta que não queria calar: - " Cara, o que você faria com um mulherão desse?” O ser movente mais novo apressou-se a esclarecer o que não faria: - “Deus me livre! Abraçar uma mulher dessa deve dar uma puta sensação de abraçar um homem.” Detalhe: o ser movente que fez a avaliação era pequeno, magro, franzino, desprovido de músculos, mas com muito cérebro.
Ambos os seres moventes riram e este ser movente que vos escreve também riu. Mas riu por dentro. Porque em Viracopos o ser movente que está sozinho só pode rir por dentro. É terminantemente proibido rir por fora. Porque é assim que deve ser. Porque é assim que os seres moventes devem se comportar: heroicamente silenciosos, esfingicamente surdos, convenientemente mudos. Comporto-me então, mas depois venho aqui e conto tudo.

domingo, 27 de março de 2011

A fila nossa de cada dia


Nem é tão ruim quanto parece. Às vezes, a gente exagera nos medos, nas superstições, nas imagens pré concebidas e fica odiando aquele momento de uma ameaça tão grave como nos parece o direito de freqüentar a fila das pessoas com mais de 60 anos. Nem é tão grave assim. O problema é que acontece de repente. Precisaríamos de mais tempo do que uma noite para nos acostumarmos com a idéia. Em um dia, não se pode entrar na fila curtinha, tem que encarar a fila grandona. A fila dos ocupados. A fila dos apressados. A fila dos que precisam correr muito para vencer as obrigações. No outro dia, logo no outro dia, pronto: acaba de ser instaurado um novo tempo e você pode sim fazer parte daquele pequeno grupo de pessoas que, a despeito do privilégio, adora uma fila. Todo aposentado adora uma fila! Não se pensou nisso quando se instituiu a lei que estabelece essa gentileza. Não se pensou que aposentado tem tempo para tudo, até para a fila. Não se pensou que depois da fila, o aposentado vai para casa e não tem mais nada para fazer até a próxima fila. Não se previu que quem precisa executar serviços com agilidade é exatamente o trabalhador que tem compromisso com horário, que bate o ponto, que se divide entre estudar, produzir, trabalhar, e outras coisinhas mais embutidas pelo meio. Não é o caso dos aposentados. Aposentado é aquele sujeito que se diverte na fila, que faz amizades na fila, que conversa na fila, que troca gentilezas na fila, que paquera na fila, que fala mal do governo na fila, que acha uma babaquice esse negócio de ter fila especial porque ele, na verdade, tem saúde, tem energia, tem disposição e - principalmente - não tem mais nada para fazer naquele dia comprido que começa animado numa fila. É certo que há filas e filas. Há filas toleráveis e há filas execráveis. Fila de banco é a preferida porque tem ar condicionado e tem cadeiras para sentar. Mas o aposentado não senta. Quem gostaria de sentar – e não pode- é o trabalhador que está caindo pelas tabelas de cansaço. A noite foi curta, o filho chorou, a mulher teve cólica menstrual, o fantasma do desemprego assombrou, o limite da conta extrapolou todas as medidas, e o coitado, além de não dormir, ainda teve que acordar pontualmente no mesmo horário, enquanto o aposentado ainda dormia. Enquanto a fila nem existia. Isso me parece uma tremenda injustiça. Isso me parece um atentado contra o bom senso. Isso me parece um legalismo sem precedentes na história da humanidade. Vamos combinar uma coisa: ninguém merece uma fila. E o trabalhador, menos ainda, porque o tempo dele é muitíssimo mais curto do que o tempo daquele que não trabalha mais. A partir dessa premissa, todo estabelecimento deveria ter competência para evitar filas. Enquanto isso não acontece, a exceção para filas especiais deveria existir para as pessoas fisicamente incapacitadas, fossem elas velhas ou não tão velhas. Mas há filas e filas, em todos os lugares. Cada uma delas tem uma característica própria que lhe confere um adjetivo especial. Fila no caixa do supermercado é desagradabilíssima. Fila do SUS ninguém merece. Fila para qualquer tipo de diversão é uma tremenda heresia, afinal o cidadão saiu para espairecer e não para cumprir uma obrigação. Fila em restaurante para um prato de comida é uma humilhação. Fila para usar o banheiro é uma temerosidade. O sujeito agüenta até onde agüenta, e no vigésimo passinho para a frente pode começar a anunciar ao seu nariz que não está agüentando mais. Essas coisas acontecem até nas melhores famílias. Eu me lembro de que, no curso primário, um colega pediu ao professor para usar o banheiro. Naquele tempo, o professor precisava autorizar para que o aluno pudesse usar o banheiro. O idiota do professor não autorizou, o burro do aluno obedeceu, e minutos depois, a sala toda rescendia a lírios do campo. Todos nós esperávamos ansiosamente por aquele momento, o momento em que um professor idiota seria ridicularizado por um aluno burro. Todos nós, crianças, sabíamos que o negócio ia acabar aonde acabou. Menos o professor que era a autoridade máxima. Aliás, as autoridades máximas não são muito eficientes para atender as necessidades do povo. Eu também me lembro, bem mais recentemente, de uma fila para um banheiro improvisado, que vi na televisão, durante o carnaval. A fila era imensa e o repórter -esse ser que não deve ter necessidade nenhuma, de coisa alguma, em tempo algum- ficava esperando para flagrar o sujeito que fazia xixi no poste. Achei uma tremenda injustiça. Afinal, se as autoridades não disponibilizam banheiro em numero suficiente, o cidadão que necessita de um xixi não pode ser responsabilizado por quebrar o protocolo. No aeroporto de Viracopos, em Campinas, há apenas dois banheiros femininos na sala de embarque. Um é para portadoras de necessidades especiais e o outro é para portadoras de necessidades físicas. Afinal para que você iria ao banheiro se não fosse por necessidade física? E ai, em Viracopos, acontece uma coisa estranha: o banheiro das mulheres com necessidades especiais, com portas maiores para cadeirantes, fica vazio porque graças a Deus estatisticamente há poucas mulheres nessa condição. Em compensação, o banheiro das pessoas com necessidades físicas – todas as demais- fica o tempo todo congestionado e a fila avança para o meio do salão numa solene demonstração de burrice mansa e coletiva. Como é possível que, tendo apenas dois banheiros, um deles possa ficar obsoleto por falta de clientela? Da ultima vez que estive na fila, foi me dando um nervoso tão grande, e uma urgência de igual tamanho, que tive que tomar uma atitude. Fiz um arranjo que me pareceu justo: encaminhei as mães com crianças, e as senhoras idosas – entre as quais me inclui- para o banheiro das pessoas com necessidades especiais e só isso já foi o suficiente para aliviar o congestionamento do tráfego, do intestino, e da bexiga. Esvaziou-se tudo ao mesmo tempo. Via de regra, o brasileiro que faz xixi é de uma passividade que me irrita. O brasileiro que viaja é de uma inércia que me consome. O brasileiro que se submete mansamente a todo tipo de arranjo que tenha a tarja de socialmente correto não tem capacidade para discernir um comportamento de manada. O efeito manada é assim: onde passa uma boiada, passa o boi. Todos os bois juntos fazem a boiada, mas aquele boi que fica sozinho tem mais chance de escapar do corredor que leva todos para o abate. É só uma questão de inteligência. Onde há consenso quase sempre há burrice. A fila das pessoas com necessidades especiais nem é tão ruim quanto parece e, convenhamos, tem mordomia. No começo você fica um tanto quanto embaraçado, mas depois acostuma. Acostuma-se rapidamente com tudo o que é bom. E acostuma-se tanto que podemos até gostar. Afinal, se a carteira de identidade nos concede esse privilégio por que não usá-lo? Se preciso responder, respondo. Por um único motivo: nem tudo o que é socialmente correto é moralmente aceitável ou possível de ser seguido à risca. Desconfiar dos privilégios pessoais e individuais, assim como desconfiamos dos privilégios de classes é demonstração de civilidade e bom senso. Essa é a parte bonita da história. Mas seria hipocrisia não destacar o oposto: o exercício da transgressão, sempre que a regra contraria a lógica, é uma qualidade dos seres inteligentes. E dos necessitados. Ambos merecem se não o aplauso, pelo menos, a tolerância.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sogro rico e porco gordo

A vida pode nos ensinar muitas coisas. Mas a vida sozinha ensina apenas o cumprimento de um ritual diário que passamos a executar de maneira quase automática. Para assimilar novos conceitos precisamos ter espírito investigativo e capacidade de observação. Olho clínico. Se aliado a esse entendimento houver um acréscimo emocional e espiritual, ganhamos sabedoria e isso é uma das aquisições que fazem uma vida comprida valer a pena.

Contudo, esse tipo de aquisição custa-nos alguma coisa. E esse custo nos isenta de uma vida leve. Ninguém que tenha adquirido sabedoria vive para si, ou se alegra somente com as suas alegrias, ou se entristece somente com as suas tristezas, mas aquele que adquiriu sabedoria olha para o conjunto da criação de Deus, seja o homem, os animais ou o cosmos, e se percebe como parte integrante de um todo. Essa percepção faz dele um ser em permanente estado de perplexidade. Não há mais como ser feliz de maneira egoística e nem há como ser infeliz de maneira isolada. Seja na alegria ou na tristeza, o homem que adquiriu sabedoria reparte com o mundo os seus sentimentos, e o seu ganho intelectual, e ambos se refletem numa vida de fraternidade universal e cósmica.

Contudo o grosso da humanidade vive como se os desmandos do mundo não a atingissem. Há uma alienação generalizada que dissemina a indiferença. Não existe uma identificação com a espécie. Até os bichos, em certa medida são mais fraternos. Tenho observado o comportamento dos animais e há um traço comum entre eles: quando bem alimentados, quando não há uma demanda própria da cadeia alimentar, os animais apresentam civilidade e até demonstram afetividade com os da mesma espécie.

O homem não. O homem pode estar alimentado, pode ter tudo quanto necessita, que ainda assim a compulsão pelo acúmulo de bens falará mais alto. O homem tem dificuldade para repartir as suas posses até com a própria prole. Alguns condenam os filhos a uma vida financeira medíocre, sob a alegação de que não morreram para distribuir a herança e se esquecem de que, por esse raciocínio torto, a própria morte pode significar um bilhete premiado para a sua descendência. Dessa maneira, não há amor filial que resista a um cálculo matemático na beira do caixão. E quem pensar o contrário estará sendo ingênuo.

Imagine uma pessoa cujo pai tenha muito dinheiro. Imagine que essa pessoa tenha uma vida de privações: o que recebe por mês mal dá para viver. No final do mês, sobram dias e falta dinheiro. Imagine quantos sonhos de consumo vão-se acumulando sem a menor possibilidade de realização. Um dia- e esse dia fatalmente chega - o pai milionário morre, e o filho pobre está a um passo de botar a mão na dinheirama toda. Por mais que ame o pai, e sofra pela separação da morte, a compensação financeira que receberá com o espólio do falecido, modulará essa dor. Para baixo.

Não tem jeito. O homem é carne e a carne, quando tentada, não fica totalmente isenta do pecado. Um pecado chama outro pecado, assim como um abismo chama outro abismo.

Não por acaso, há um ditado popular que diz assim: “ sogro rico e porco gordo só dá lucro quando morre.” Ora, todo sogro tem uma relação dupla com o casal que se forma: por um lado, é sogro, por outro é pai. E se o genro só vai ter lucro quando o sogro morrer, consequentemente, a filha, e os netos, também só lucrarão quando o pai e o avô partir desta para melhor. Bingo. Com a morte do sogro rico, o genro pobre terá muita dificuldade para disfarçar a alegria, e a filha pobre, e os netos pobres, terão muita dificuldade para se concentrarem na tristeza. Entre uma lágrima e outra, o barulhinho do vil metal vai tilintar no pensamento.

Não dá nem para censurar a família. Esse tipo de pai e avô faz por merecer esse tipo de sentimento.

Não há justificativa de ordem emocional que avalize esse comportamento egoísta. A vida é curta para todos. Privar um filho de viver melhor, privar um neto de ter uma boa casa, privar uma família de ter um bom carro, e uma renda mensal compatível com as necessidades básicas, condená-los a viver de maneira resumida até que morra, sob a alegação de que ainda não morreu, é desumano e cruel, além de ser irracional.

Quem distribui felicidade depois da morte, se priva de compartilhar alegria em vida. Isso é burrice.

Infelizmente, esse comportamento de asno acontece com muita freqüência na espécie humana. A espécie humana é a única que submete os filhos a uma degradação chamada espólio. Espólio do falecido. Olha que tarja interessante! O nome bonito do espólio é herança. O nome feio é despojo, resto. O resto do Falecido. Quando um pai morre sem prover para o futuro dos filhos, o que ele deixa no final da caminhada, é uma guerra que culmina com a distribuição do despojo, do resto. Não raro, os irmãos acabam estremecidos ao final do processo. A avidez há tanto reprimida eclode, como urubu na carniça, bem na hora em que a família deveria estar unida para celebrar a dor da separação. O pai nem esfriou no caixão e os filhos já se movem em direção à posse do despojo. Não raro, os advogados ficam com uma boa parte daquilo que foi amealhado. Nas grandes fortunas, o que se gasta com advogados, daria muito bem para ser empregado melhorando a vida dos filhos décadas antes do falecimento.

A espécie humana é muito burra. Hoje estou escrevendo para os burros e para os não tão burros. Que me perdoem os sábios. Quem tiver orelhas, que abaixe as orelhas. Quem tiver ouvidos, que ouça. Se o mundo é um pasto e nós somos animais, espera-se, pelo menos, que sejamos racionais.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

De onze em onze.

Viajar pelo sul e sudeste do Brasil tornou-se um exercício matemático para todos os viajantes que administram o seu dinheiro com responsabilidade. Antes de tudo você precisa decidir se vai de carro, de ônibus, ou de avião. A primeira consulta começa sempre pelos sites das empresas aéreas que, de vez em quando, dão um refresco e oferecem tarifas realmente promocionais. Como não é todo dia que isso acontece, o mais comum é continuar pesquisando nas empresas de ônibus. Se quiser conforto, esqueça o ônibus. Uma viagem de leito custa sempre o dobro da poltrona convencional. Sem chance. Sobra mesmo o velho e prático carro da família. Mas em termos de economia, é bom não se animar muito, se essa for a escolha. No Paraná pós Jaime Lerner, por exemplo, o número de pedágios que assolam as nossas rodovias parecem as pragas do Egito. Assim que você se livra de uma, já aparece a outra. Ou o outro. Entre Ponta Grossa e Curitiba, há pedágios que estão localizados a incríveis 20 km um do outro. Tudo bem. Você paga e sobrevive. Aí, começa a procura por um hotel de conceito econômico. Existem dois tipos de hotéis econômicos no Brasil. Existem aqueles que eram considerados 4 estrelas mas o insucesso financeiro e a falta de investimentos fez deles um produto em fase final de vida. Deteriorados, sucateados, esses hotéis parecem um depósito de ácaros e de velharias. Carpete vermelho e latão cromado são os itens mais luxuosos da decoração. Quem quer se hospedar num lugar assim? A alternativa são os hotéis das grandes redes hoteleiras internacionais que aportaram por aqui para suprir a lacuna que havia no segmento hoteleiro. Esses hotéis diferentemente dos primeiros, foram planejados para ser 3 estrelas e oferecer um estilo mais enxuto de hospedagem sem descuidar do conforto e da modernidade.

Só descuidam de uma coisa: da tarifa. O hotel econômico que foi pensado para atender um viajante que faz conta, mas quer conforto, acaba tornando-se muito caro quando se contabilizam os opcionais que ele oferece. O problema é que se considera opcional o que é fundamental. Café da manhã e garagem são itens opcionais. Mas como renunciar ao café da manhã quando ele é a refeição mais importante do dia? E como deixar o carro dormir na rua e correr o risco de acordar com ele só na lembrança? Não dá, né?

Semana passada nos hospedamos em Curitiba, num hotel Ibis da Rede Accor. Valor da diária: 110 reais. Valor do café da manhã: 11 reais. Valor da taxa de estacionamento: 11 reais. Total da diária para duas pessoas e 01 carro: 143 reais. Sem contar a taxa de ISS que eleva o total para incríveis 157 reais. Muito caro para um hotel de categoria econômica.

Fiquei pensando como enxugar essa quantia e descobri que se eu acordasse entre 4,30 e 6 horas da manhã, - horário em que acordo mesmo - poderia tomar o café madrugador que custa 5 reais e 50 centavos. Uma economia de 50% é uma economia considerável.
O café madrugador acompanha o conceito de um hotel desprovido de luxo e tem tudo o que o brasileiro comum costuma ter em sua mesa, no café da manhã. Bom, estou falando do brasileiro comum. Mas nem todos são comuns. Tem gente que come mortadela em casa, mas no hotel arrota presunto.
Enquanto tomava o meu café econômico madrugador, num imenso salão vazio de madrugadores, apareceu um casal. Vestindo trajes sociais, pareciam estar voltando de alguma festa. Ele de terno, ela de vestido longo. O fim de festa oferece sempre uma pálida miragem da produção do dia anterior. Estavam ambos destruídos, precisando urgente de uma boa manhã de sono. A mulher olhou para o buffet do café madrugador, sem nenhum entusiasmo. Parecia um ser muito exigente. O homem ainda arriscou perguntar: - “Não tá bom?” Ela respondeu: - “Não, prefiro esperar o café completo. Faltam outros tipos de frutas e croissant.”
Croissant para quem não sabe é o primo rico do pão francês.
No saguão do hotel, sentaram e esperaram. Meia hora depois, as portas se abriram para o café com croissant que o paladar requintado da madame exigia.
Conclusão: Tem homem que parece ter nascido num cacho. De banana. E tem mulher que tem cabeça só para carregar chapéu. E tem hotel que é fixado no número 11. No elevador estava escrito assim: “Festival de Sopa. Mais de 20 sabores. Preço por porção individual: 11 reais.”

Por que onze e não dez, ou quinze? Sabe- se lá porque. Mas de onze em onze, o brasileiro fica pobre e nem desconfia.

terça-feira, 27 de julho de 2010

A Argentina coloriu.

Cristina Kirchner fez a Argentina sair na frente ao aprovar a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. No Brasil de Lula ou de Dilma, deve ocorrer em breve. Só quero ver quando e como vai acontecer na Bolívia de Evo Morales e na Venezuela de Hugo Chavéz. Afinal o bloco de países sul americanos sempre caminha no mesmo compasso. Até parece que o ritmo da carruagem é determinado por um só cocheiro. Mas enquanto isso não acontece vamos conjecturar sobre o tema polêmico.
Em primeiro lugar, eu fico pensando que nenhum legislador deveria ser burro a ponto de fazer uma lei que fosse desnecessária. As leis são feitas para atender uma demanda legal e são cumpridas não apenas por força coercitiva mas pela eficácia dos seus objetivos. Ora, quando um estado decide aprovar a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o faz porque existem pessoas do mesmo sexo que querem casar-se entre si. Caso contrário, não seria necessária a criação da lei. Impedir que tal fato se legalize, como tentaram fazer os religiosos da Argentina, é querer tapar o sol com a peneira. Não se pode ter uma visão tão pequena a respeito de qualquer assunto apenas porque esse assunto contraria a nossa concepção de mundo.
Penso que essa lei tem a tendência de ser aprovada em todos os países porque afinal de contas, no mundo todo existem pessoas que decidiram optar sexualmente por pessoas do mesmo sexo. É um direito que lhes assiste. O estado não pode fazer ingerências sobre a sexualidade dos seus cidadãos e tem por obrigação zelar pelo cumprimento da lei máxima constitucional que determina que todas as pessoas são iguais perante a lei. Ora, entre essas pessoas, existem aquelas que são homossexuais. É dever do estado zelar pelos direitos desses também.
Essa lei, pois, já chega tarde. E chega para corrigir uma injustiça que tem sido cometida com todos aqueles que decidiram fazer uma opção sexual diferente da maioria. Não nos cabe aplicar aqui nenhum julgamento moral. O que acontece é que algumas pessoas aplicam um julgamento moral em situações nas quais só compete um direito constitucional. Toda a questão se resume nisso. O que os governantes devem fazer é tão somente reconhecer que todas as pessoas são iguais perante a lei e isso inclui o direito de casar, o direito de compartilhar, o direito de adotar, o direito de dividir um patrimônio, o direito de herança e o direito de ter assegurado esses direitos a despeito da opção sexual. Cabe ao Estado agilizar esse estado de direito e acabar logo com essa onipotência medieval que fere a lei como um todo. Chega a ser hilário que as pessoas queiram impedir que aconteça, de fato e de direito, o que já existe na prática desde que o mundo é mundo. O direito e a religião caminham em avenidas paralelas e estanques. Não dá para aplicar o mesmo ponto de vista em situações nas quais cabe apenas um cumprimento legal.
Em 1965, no Brasil de Castelo Branco, foi sancionada uma lei, em torno do Código Florestal, a qual determinava que todos os pequenos proprietários estavam obrigados a preservar um percentual de suas propriedades, mantendo uma reserva florestal. Como era de se esperar, os pequenos proprietários, que dispunham de poucos hectares, nunca cumpriram essa lei a ponto de se dizer que essa legislação tornou todos os brasileiros que comem arroz cúmplices de um crime ambiental, já que quase toda a produção desse grão foi semeada em reserva legal.
O que eu quero dizer com isso? Que a lei sancionada no Brasil em 1965, era uma lei que não feria nenhum princípio religioso, mas feria a necessidade básica de comer que todo brasileiro tem. Fica muito bonitinho manter uma reserva legal em todas as propriedades, desde que a nossa barriga esteja cheia de comida e não tenhamos fome. O pequeno proprietário viu que isso era impossível, foi lá, burlou a lei e plantou arroz. O brasileiro comeu, encheu o bucho, agradeceu e esqueceu. As autoridades assinaram a lei e deixaram para lá a fiscalização do seu cumprimento. E ficou tudo certo.
Aqui está o exemplo de uma lei que foi feita para ser esquecida. Do ponto de vista moral era corretíssima. Do ponto de vista material era escandalosa. Por isso não foi cumprida.
Na Argentina de Cristina Kirchner, uma lei foi aprovada pelo Congresso. Ela fere princípios religiosos, contraria dogmas estabelecidos, faz o povo da santa inquisição revirar na sepultura, mas atende ás necessidades que determinadas pessoas têm. Ocorre que, por este tempo, existem homossexuais na República Argentina. Se algum dia não houver, a lei cairá em desuso. Mas enquanto houver, ela se faz necessária.
É simples assim: as leis são feitas para atender demandas e são cumpridas quando o legislador entende que o espírito da lei repara uma lacuna e preenche um espaço legal. É o tempo que confere credibilidade a uma lei. O tempo, pois, dirá. Se houver homossexuais na república brasileira, essa mesma lei será sancionada aqui e durará enquanto houver necessidade. Se houver homossexuais na república venezuelana, essa lei será sancionada lá e permanecerá até que a sua prática se torne obsoleta.
Desculpem, mas não posso deixar de confessar: eu quero muito ver Hugo Chavéz diante das câmeras de TV, assinando essa lei. Nem me perguntem por quê.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

A mosca do Barack Obama

Barack Obama matou uma mosca durante uma entrevista à CNBC na Casa Branca. O assunto foi muito comentado pela mídia nacional e internacional que destacou a agilidade, a coragem e a pontaria perfeita do presidente americano na ação de aniquilar o pobre mosquito que ousou atravessar o seu caminho. O mundo soube e reagiu com espanto: questionou-se principalmente qual o motivo pelo qual o assunto foi tão amplamente divulgado. Em todo o planeta Terra soube-se que Obama matou uma mosca. Entre os comuns mortais as mais diversas reações foram registradas: houve quem encontrasse no fato motivos para admirar o presidente. A grande maioria inteligente optou por ridicularizar os canais de comunicação que deram manchete a um assunto de tão pequena importância. Uma pessoa entre tantas que defendem e amam os animais ousou protestar e registrar formalmente o seu protesto. Foi Bruce Friedrich, o porta voz do grupo PETA de defesa dos direitos dos animais, que declarou o seguinte: “apoiamos a compaixão mesmo em relação aos mais pequenos, estranhos e desagradáveis animais. Cremos que as pessoas, sempre que possam ter compaixão, devem ter, pelos animais.” Com tais palavras o grupo se manifestou formalmente pedindo a Barack Obama que tivesse uma atitude mais humana, da próxima vez que uma mosca se intrometesse no seu caminho.
Durma-se com um barulho desses! Eu que sou defensora dos animais, fiquei muito pensativa com o rumor que se instalou dentro de mim. Não que eu seja muito diferente dos “petas”. Não sou. A minha compaixão pelos animais chega ao cúmulo de salvar do afogamento toda e qualquer formiga que queira compartilhar o banho de chuveiro comigo sem o uso de bóia. Faço tudo o que posso para evitar que a formiga banhista morra afogada. Mas mato barata. Com muita pena do animal, porque sei que tudo o que vive quer viver, corro atrás da barata com um chinelo na mão e se eu levo a melhor, nessa luta de vida ou morte, sei que estou higienizando o planeta. Se ela leva a melhor, também não fico triste porque não gosto de matar nada que tenha vida, mesmo que não seja vida inteligente. Sempre fiz assim e achava que estava tudo bem até Barack Obama inventar de matar uma mosca na frente das câmeras de televisão. A atitude do grupo PETA me deixou embabascada. E agora? Como farei quando uma barata atravessar o meu caminho? Exerço compaixão e deixo que elas se proliferem no meu ninho? E quando os ratos souberem que no meu território existe asilo para todos os roedores da mesma espécie? Também terei que deixar? E se um daqueles roedores estiver infestado com o vírus da leptospirose? São questões a considerar. Que eu considero sabendo que nessa luta só há perdedores.
Na semana passada uma andorinha invadiu a minha varanda e pousou delicadamente no peitoral da sacada. Era uma tarde fria de domingo e a natureza estava triste. A andorinha parecia doente. Esboçou apenas uma leve reação quando a tomei nas mãos. Suas penas estavam se desprendendo do corpo com muita facilidade. Não tinha marcas visíveis de agressão. Sua doença era interna. Seus olhos miúdos se fechavam quando eu a aconchegava contra o peito. Ela toda pedia compaixão e não me neguei a exercê-la. Tremia muito pela temperatura baixa do ambiente e do próprio corpo. Eu a envolvi num pano e a coloquei dentro de uma caixa de sapatos. Mais tarde, depois que os meus gatos estavam presos, a levei para dentro de casa, a fim de evitar que o frio da madrugada a fizesse entrar em hipotermia. Fiz tudo o que pude mas não podia fazer muito. De manhã cedo, ela estava morta. Morreu sem dar um pio. Simplesmente encolheu o corpinho frágil e esperou silenciosamente a chegada da morte, com a coragem passiva dos seres que são mortais. Pensei que quando morrer, quero morrer como aquela andorinha: sem oferecer resistência. A morte é um processo natural na vida. Precisamos aprender a morrer. Eu só não sei quando vou aprender a matar aceitando que está tudo bem. Não está tudo bem. Eu mato, mas sei que tudo o que vive quer viver.