terça-feira, 7 de abril de 2009

O Fantástico Mundo Virtual

As histórias de crianças, e de contos de fadas, começam sempre com “era uma vez." Fico revirando em minhas mãos a expressão “era uma vez.” Noto que o verbo “ser” está no passado, para não causar falsas expectativas. A expressão “uma vez” também modifica a palavra “era” o que por si só já quer dizer: “era” mas não é mais, foi só aquela vez.

Com isso estamos passando a seguinte mensagem: não me pergunte onde está a Branca de Neve. Branca de Neve “já era” e “já era” só “uma vez.” Não haverá duas vezes. Não haverá reprise. Por isso, os personagens das grandes histórias infantis são imortais, só existiram uma vez: pelo fantástico que acompanha o seu caráter de excepcionalidade.

Mas nós existimos muitas vezes. O ser humano comum encontra-se em todos os lugares, em todas as eras, no presente, no passado e no futuro. O mundo está repleto de Joãozinho e Maria, não aqueles da fábula infantil, mas aqueles da construção civil, da lanchonete, da panificadora, do cabeleireiro, da fábrica de calçados. Cada Maria e cada João são únicos para uma pequena parcela da humanidade: para os pais, para os avôs, para os irmãos, para os amigos, para aqueles que fazem parte do seu pequeno universo, para aqueles que os conhecem como uma entidade personificada. Para esses não há outro igual àquele, mas para o mundo, são anônimos.

E hoje quero falar de anonimato e do bem que ele nos faz. O anonimato nos permite um mínimo de individualidade necessária para que um homem possa usar um palito de dentes sem ser fotografado, para que uma mulher possa sair com a meia desfiada de um restaurante, sem ser notícia nos jornais. O anonimato nos permite um mínimo de individualidade necessária para que um ser seja ele mesmo.

Mas o anonimato que nos preserva a individualidade, traz consigo o distanciamento. As pessoas vivem um paradoxo: querem conservar a individualidade, mas também anseiam por uma construção coletiva que as faça um personagem como aqueles das histórias infantis. De preferência os bons personagens, aqueles que inspirem bons sentimentos. Por um lado, queremos que o mundo contorne a nossa forma, por outro lado, não queremos expor o nosso recheio. Por um lado, queremos ser anônimos, por outro lado, queremos ser conhecidos. Por um lado, queremos ser únicos, por outro lado, queremos pertencer. Por um lado, queremos a realidade interna, por outro lado, precisamos da vida mais ampla que comporta o mundo.

E aí, no meio desse conflito existencial permanente entre ser e pertencer, aparece a WEB, a era virtual com todas as suas potencialidades mágicas que permite ao homem conservar a sua individualidade e criar novas extensões dentro de um fantástico mundo de faz de conta. A internet parece ter sido pensada sob medida para atender ao ser e ao pertencer. Porque o mundo de fantasia que ela proporciona é uma via de mão dupla que não invalida o anonimato. Durante o dia, Joãozinho é aquele trabalhador da construção civil que sobe a massa no andaime e vê o mundo das alturas. Naquele momento, Joãozinho é. Naquele momento, Joãozinho existe em toda a sua individualidade que sonha, sem poder estar em seus sonhos. Mas à noite, na casa modesta, diante da rede internacional de computadores, Joãozinho está. Por algumas horas, ele deixa de ser para estar. A simples visão do mundo, durante o dia, proporcionou-lhe o “insigth” para o personagem da noite. Joãozinho interage com a entidade do outro lado da tela, como um piloto de Boing e a única diferença entre ele e o comandante é que não há na mão o manche do avião, mas o mouse do computador que lhe permite a viagem.

A internet está repleta de pessoas solitárias e mal resolvidas, porque em certa medida, mal resolvidos todos somos. A internet com suas salas de bate-papo e clubes de relacionamento tornou-se o mundo imaginário que atende todos os tipos de fantasias. Homens gordos, carecas e barrigudos, batendo na casa do meio século, transformam-se como num passe de mágica, em jovens galãs de cinema, à procura da sua cara metade. Do outro lado da telinha, a cara metade encalhada e sem glamour torna-se uma disputada donzela. Se na juventude o cidadão teve simpatia por algum movimento socialista, sem nunca ter tido coragem para enfrentar a ditadura militar, na internet ele “vira” rapidamente um ativista em prol dos direitos humanos. Se na vida real falta dinheiro para o lanche, na internet sobra dinheiro para o banquete. Se no dia a dia ele vai para o trabalho usando o transporte coletivo, na internet ele se vinga sendo o dono do transporte coletivo. Se na vida diária ele conserta carros, na internet ele é o dono de uma frota de carros.

O curioso é que não falta fé para esses personagens. Assim como não faltam adeptos para um guru, ou clientela para um charlatão, também não falta gente disposta a acreditar nos personagens imaginários que existem no mundo virtual. Verdade seja dita: aquele que engana é feito sob medida para o enganado. As relações virtuais são um serviço de utilidade pública não institucionalizada, onde cada louco encontra o seu “ terapeuta” sem enfrentar a fila do SUS ou o divã do analista.

Há histórias e mais histórias que mesclam o mundo real ao virtual e acabam bem. Algumas nos divertem muitíssimo. Vou contar uma delas: Lia, minha amiga, estava se relacionando há um bom tempo, pela internet com um cidadão de Portugal. Numa dessas noites intermináveis diante do pc, estava presente uma amiga mais esperta, mais centrada, mais lúcida, com aquele olhar de quem enxerga por fora. Essa amiga observando o cidadão pela cam, advertiu: “ Lia esse cara é gay!” Mas imagine se uma mulher apaixonada ia querer escutar que o seu príncipe encantado das "europas" era gay. A proposta foi imediatamente rechaçada sob forte protesto. Passaram-se os dias. Uma noite, tempos depois, essa mesma amiga estava presente e Lia precisou ir ao banheiro. Uma vontade imperiosa de ir ao banheiro a fez pedir para a amiga: “tecla aqui no meu lugar.” A amiga foi logo escrevendo: “tu é gay que eu sei.” E do lado de lá, o cidadão português retrucou: “faz tempo que queria contar-te mas não tinha coragem.” Pode rir, a piada é boa e é real. Aconteceu mesmo.

Final da história: Lia hoje é camareira em Portugal, e trabalha para um casal de gays portugueses dos quais um deles é o cidadão em questão. Lia perdeu o amor e ganhou um amigo e um patrão. Ganha muito bem e namora um português muito macho. Nunca mais voltou para o Brasil. E se voltar será muito bem acompanhada. Mas aonde Lia encontrou o seu amor? Na vida real.

Nem sempre as histórias virtuais têm esse final feliz. Até porque, se pensarmos bem, não há como ter final, se na realidade nunca houve um começo: as histórias virtuais, quase sempre, ficam pelo meio, elas não se resolvem, elas giram em torno do imaginário de cada um. A internet é a versão moderna do “era uma vez.” A internet é a novela que a Globo não ofereceu. A internet é a produção independente onde cada pessoa escolhe o papel que quer desempenhar.

No verbalismo puro e simples, sempre existiu e sempre existirá a necessidade de aproximar os seres humanos oferecendo-lhes a nossa versão de vida. No verbalismo sempre existirá a necessidade de colocar forma no caos mesmo que seja através da mentira criativa. No verbalismo sempre haverá a tendência para “enfeitar o pavão”. Nesse sentido a internet é mágica e cumpre à perfeição o seu papel de re-inventariar os sonhos. Apesar de todos os pesadelos.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009


EU FIQUEI.


Alguns dirão que o verão ainda está em curso. Mas eu digo que não, que o verão acaba quando recomeçam as aulas de mais um ano escolar. Carnaval não é propriamente verão, é a saidera. É o pregoeiro anunciando que a coisa agora é pra valer. Que a moleza acabou. Tudo bem que depois vem a chamada Semana Santa que, para falar a verdade, de santa só conferimos a ela o nome e a boa intenção. A intenção de malhar o Judas, de atribuir a ele todos os pecados que cometemos durante o ano, e que no calendário das expiações, faz com que o novo ano seja sempre velho, sempre o mesmo ano comprido. Mas, enfim, o que quero dizer mesmo é que o verão já foi, já era, já se despediu. E que ele vá com Deus e leve consigo o seu calorzão.

Eu fico muito feliz quando termina o verão e vem o outono. Da mesma forma como fico feliz quando termina o inverno e vem a primavera. Fico feliz porque me desobrigo de fazer coisas que pertencem ao verão, e que todo mundo faz, mas eu não tenho a mínima vontade de fazer. Ir à praia, por exemplo. Durante anos da minha vida eu tive que ir, mas hoje, não tenho mais. Hoje, no máximo só tenho que ouvir a clássica pergunta: “vocês não vão descer para a praia, não?” Essa pergunta ainda me incomoda. Ainda conservo o registro de que verão é praia, com ou sem vontade. Então, quando a pergunta vem, meu cérebro se coloca em estado de alerta e só descansa quando, meia hora depois, eu o convenço de que não há mais necessidade de cumprir o protocolo oficial que a Prefeitura Municipal de Balneário Camboriu instituiu para este verão. Finalmente estou alforriada de ter que deitar naquela areia grossa e contrair bicho geográfico, estou livre de ter que pegar um bronze, e de quebra, levar para casa uma melanose solar, estou liberta da necessidade mórbida de apresentar um atestado oficial de veraneio “bronzeplus” ao retornar de mais uma temporada.

Hoje eu contemplo o sol pela janela de casa. E não lhe dou a mínima chance de encostar-se a mim, mais do que alguns minutos por dia. Sempre de passagem. Eu e o sol nunca nos entendemos bem, graças a Deus. Nunca entendi qual o sabor de lagartear sob um calor de mais de 40 graus. Nunca fiz questão de garantir o meu lugar na areia depois das 10 horas da manhã. Ir à praia, eu até que ia: para bater o ponto. Uma hora depois de ter batido o cartão, eu fazia o caminho de regresso. No rosto, estampada, estava a suprema felicidade de ter cumprido a obrigação do dia. E de poder, enfim, curtir a brisa do mar, da sacada. De preferência, com um livro na mão, para descansar a vista daquele marzão comprido. E vice versa. Até o próximo dia. Até o próximo verão. Até que tudo acabasse como, efetivamente, acabou.

Também fico feliz quando termina o inverno e vem a primavera, mas não por idênticos motivos. Eu amo o inverno e amo a sensação de aconchego que ele me proporciona. Inverno é a alforria ao contrário. No inverno pode-se dizer: “prefiro ficar em casa porque está frio.” Todo mundo entende. Inverno é chocolate quente numa mão e livro na outra. Inverno é pipoca, filme, e cobertor. Mas depois do inverno vem a primavera. A primavera, sem sombra de dúvida, é a estação que mais combina com o meu estado de existir. Primavera é renovação. É o período em que a natureza se exibe como um pavão, e eu fico acreditando que tudo nessa vida tem a possibilidade de nascer de novo, de se enfeitar outra vez, de ser melhor do que já foi.

Eu acredito na primavera como acredito em Deus. Eu vejo na primavera a mão de Deus me oferecendo rosas, lírios, bougainvílleas de todas as cores, cravos e begônias. Primavera é a estação do equilíbrio que eu persigo tanto e nunca alcanço. Primavera é o rio que corre no meio do jardim. Primavera é jardim. E eu sou a borboleta que finalmente tem um encontro com as flores. Até o próximo verão.

Feliz outono para todos, para os bronzeados e para os desbotados, para os que foram e para os que não foram, para os que surfaram e para os que ficaram. Eu fiquei.

sábado, 24 de janeiro de 2009

NEM SEMPRE....

“Nem sempre as palavras expressam o desejo do nosso coração. Nem sempre o que dizemos representa o que sentimos. Nem sempre o que pedimos é para ser atendido. Nem sempre o que não pedimos é para ser esquecido. Nem sempre o que vivemos é para ser compreendido. Nem sempre o que não vivemos é para nunca ser vivido. Nem sempre somos tão exatos quanto a matemática. Nem sempre somos tão simples quanto um mais um. Nem sempre somos tão complexos quanto parecemos. Nem sempre somos tão nobres quanto a vida pede. Nem sempre somos tão magnânimos quanto a circunstância exige. Nem sempre somos tão santos quanto Deus nos pede e nem tão devassos quanto o mundo sugere. Nem sempre somos tão invulneraveis quanto requer a demanda. Nem sempre estamos imunes à dor e ao amor. Nem sempre recebemos informações detalhadas do plano “B”. Nem sempre a nossa força nos permite nadar contra a correnteza. Nem sempre sempre aprendemos como naufragar em estilo olímpico. Nem sempre conseguimos sentir dor sem gemer. Nem sempre vestimos Prada quando estamos nús. Nem sempre estamos nús quando vestimos Prada. Nem sempre o riso representa alegria. Nem sempre o choro introduz a tristeza. Nem sempre um discurso encerra uma etapa. Nem sempre a elegância do gesto acompanha o seu efeito. Nem sempre estamos convencidos do que fazemos, quando o fazemos. Nem sempre sempre podemos fazer o que queremos. Nem sempre sabemos como morrer quando a vida acaba. Nem sempre a vida só acaba quando a morte chega. Nem sempre viver é fácil. E quando viver não é fácil fica difícil. Fica difícil renunciar ao que não vivemos. Fica difícil acreditar que hoje é sábado e o sol não brilhará mais."

quarta-feira, 19 de novembro de 2008


Perdidos e achados.

A solidão pode ser tão desamparada quanto um cachorro que brinca no parque com uma bota velha. A solidão do cachorro, da bota e dos seres humanos é sempre desamparada. Até mesmo no supermercado, a solidão é uma condição desamparada.

Vê-se lá uma mulher com um carrinho cheio de compras, arroz feijão, óleo, macarrão, carne e pão, mas a condição desamparada não revela a fartura, revela a fome.

O alimento não impede a solidão. As pessoas em volta também não impedem a solidão. Nem mesmo o amor mais profundo impede a solidão. Há um estado de ser só, que se manifesta como um horrível dever. O dever de casa, e o dever da escola, e o dever do trabalho, e o dever do culto, e o dever de existir no mundo, todos eles comportando um único maior dever – o dever de existir de maneira solitária.

Então, foi assim: ela passou por mim e eu estava lendo o rótulo de um alimento. Ela fingiu que não me viu e eu fingi que não a vi. Numa conclusão precipitada alguns poderão dizer: “fingimento”. Outros mais benevolentes dirão: “ dissimulação.” Mas não. Nem fingimento, nem dissimulação, apenas respeito por outro ser idêntico. Da forma como um ser deficiente de qualquer eficiência respeita outro ser deficiente da mesma deficiência.

Há que se respeitar a solidão de outro ser solitário com a reverência dos que conhecem a solidão mais profunda. Poderíamos ter-nos cumprimentado da forma como fazem os seres repletos de vida coletiva. Mas o que faríamos com nossas frases sem miolo, ôcas, vazias de significado? Seríamos apenas sociais. E os seres portadores da síndrome da solidão mais profunda não podem ser resumidos a uma condição meramente social. As palavras para nós precisam ter sangue, e ter gemidos, e ter dores, e ter ais. Porque assim vivemos.

Por causa disso, eu a deixei ir embora, lentamente, empurrando o carrinho pesado da sua solidão. Fui para a fila do pão. Encontrei Reinildes que não sofre da síndrome e, com ela estabeleci a mínima compreensão. Que me resultou em grande aprendizado: aprendi que se pode comprar pão francês e conservá-lo no freezer. Que bastam 15 minutos fora do freezer para que o pão fique fresco como novo, reassumindo a sua crocância original.

Nem sempre a solidão é um bom negócio: conversando a gente aprende e se entende. Mas para quem sofre da síndrome da solidão mais profunda, a comunicação só se faz no laço. Ou na fila da padaria. Que lindo deve ser Olivier Anquier fazendo pão com aqueles olhos verdes que parecem sinalizar um caminho aberto para vida. Mas ainda prefiro Albert Camus com os seus olhos tristes.

Dali voltando para casa, com um saco de pão que dará para alimentar a casa toda, a semana toda, encontrei o cão. Meu Deus, que foi aquilo! Um cão brincando no parque com uma bota velha.

Eu não aguento um cão que brinca com uma bota velha. É demais para mim porque são duas coisas que me enternecem muitíssimo: os cães e as botas velhas. Ele estava diluido no verde do gramado e a bota estava pendurada na sua boca. O carro já estava parado e juro que nem fui eu quem parei: foi um ato falho. Os iguais procuram os iguais sem perceber que estão parando diante dos iguais. Olhei em volta e não havia ninguém. Por que não? Por que eu não poderia estabelecer com o cão e com a bota um papo altamente filosófico, digno da solidão de uma tarde de sábado, em véspera do dia de finados?

Eu tinha a solidão, uma sacola cheia de pães e todo o tempo do mundo: uma tarde comprida. O cão tinha a ele mesmo com a sua barriga vazia e uma bota que ele carregava de um lado para o outro como o seu tesouro.

Então desci e o contato se estabeleceu. Precariamente a princípio. Ele entendeu que eu poderia querer a bota em troca do pão, e deu um pouco de trabalho para que compreendesse que não, que eu não lhe tomaria a bota, e ainda assim lhe daria o pão. Que ele poderia ficar com os três: comigo, com a bota, e com o pão. É incrivelmente triste, como até no reino dos animais mais animais, existe o entendimento de que se eu lhe dou alguma coisa é porque vou exigir algo em troca daquela coisa.

A troca que eu queria era só a partilha de um breve momento. Eu não lhe exigiria muito e nem poderia lhe dar muito. Seria apenas um momento mágico: um parque vazio, eu, um cão, e uma bota velha.

Nem houve tempo de filosofar com a bota. O cão com sua natureza assustada de coisa viva, de coisa que tem rabo, foi tomado por um amor desmesurado que não lhe cabia no peito: ele latia. Que não lhe cabia nas pernas: ele tropeçava. Que não lhe cabia nele todo: ele pulava em mim. Mas não largava a bota velha. Esperei pacientemente que lhe passasse aquele breve momento de lucidez desamparada. Que doía. E então ele latia. E então eu esperava. E então ele tropeçava. E então eu sorria. E então ele pulou em mim e eu lhe ofereci o pão. No momento em que viu o pão, ele viu a vida. Comeu e matou a fome, mas a felicidade se lhe perdeu pelo vão dos dentes.

Um cão sem fome, teve reflexo imediato na solidão de uma bota velha. As coisas acontecem de forma reflexiva, as coisas em sua imensa grandeza. As coisas pequenas são circunscritas, mas as coisas em sua imensa grandeza, são como uma pedrinha atirada na superfície do lago: elas mexem com o lago todo. E depois que a pedrinha já atingiu o fundo do lago, ainda é possível ver na superfície as ondas. As ondas em círculos amplificados. Até que tudo fique estranhamente quieto e a vida volte a ser ainda mais silenciosa ali estão as ondas - as ondas em círculos amplificados.

Lembrei-me da máquina que estava na bolsa e tirei a foto. A foto mal tirada, escura como o dia escuro, que registra o momento, mas não registra a crueza do sentimento. Sentimentos são invisíveis, as fotos não revelam sentimentos. Apenas o olhar pode nos trair, e revelar o que se quer deixar oculto, mas o sorriso está ali para disfarçar e então uma coisa confunde a outra e nesse mundo de confusões ficamos todos devidamente confundidos. Que para isso também nascemos: para não ser exageradamente óbvios.

Olhei os dentes dele, do cão: eram branquíssimos, novos, sem tártaro - um cãozinho menino ainda. Que terá muitos dias de solidão pela frente. Muitos dias sem pão e sem bota. Mas com uma vantagem, em relação a nós os humanos muito humanos: o cão não tem consciência do quanto a vida pode ser comprida. E cruel.

O que pensei depois não pode ser contado em palavras. Porque o que pensei depois, não depende de descrição, mas de elucidação. E elucidar é muito mais do que escrever.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Andam abusando do direito de escrever no painel traseiro de carrinhos e carrões.



Andam abusando do direito de escrever no painel traseiro de carrinhos e carrões. Abusam tanto, que eu me divirto tanto. Ou me aborreço muitíssimo. Quando avisto de longe, um carro, com uma fraseologia ambulante, acelero para chegar mais perto: - “fala carro, que eu lhe escuto como um ser falante.” Que você não é, mas convencionaram que fosse.

E os carros, esses dizem coisas que os seus donos gostariam de dizer, mas não encontraram espaço em outro lugar. Gente que ainda não entrou na era do www. Tão fácil: um clic e tem-se um blog circulando na WEB. E com ele o direito de dizer o que se sabe, o que se pensa, o que se quer. Mas existe ser movente que ainda prefere o vidro traseiro do carro: uma resumição só.

Dia após dia, mês após mês, ano após ano, há gente dizendo a mesma coisa, e há gente lendo a mesma coisa. Com uma desvantagem: lemos e não podemos opinar, compartilhar ou discordar. Fiquei mais de ano, com um vizinho confirmando, todos os dias, que “batatinha quando nasce esparrama pelo chão” e a batatinha nunca cresceu e nunca parou de esparramar-se, até o dia em que ele mudou-se daqui e foi esparramar batatas em outro arraial. Singelo, não?

Mas há situações mais graves. Por exemplo: o que significa um adesivo com os dizeres: “Propriedade exclusiva do Senhor Jesus.” Significa que o Senhor Jesus é o dono do carro, ou é o dono da vida de quem possui o carro?

Se fôr da vida, seria melhor escrever no coração. Se fôr do carro, a coerência exigiria que se entregasse a chave, para toda e qualquer pessoa, que do veículo, necessitasse. Um vizinho doente - sem carro para se locomover até o hospital? Poderia usar esse - que é propriedade exclusiva do Senhor Jesus. Um mendigo cansado, carregando seus trapos em direção ao sul? Teria todo o direito de pedir que o levassem até a cidade mais próxima, utilizando-se da propriedade exclusiva do Senhor Jesus. Simples assim.

Porque é isso que faria Jesus. Onde já se viu Jesus negando a um discípulo precisado, o direito ao uso do seu jumentinho, se jumentinho Ele tivesse possuído? Não possuiu. Para a entrada triunfal em Jerusalém, tomou um emprestado, e o devolveu, depois, ao verdadeiro dono.

Andam abusando do direito de escrever sobre Jesus no painel traseiro de carrinhos e carrões. Uma frase muito em moda: “Deus é fiel”. Essa é a escolha de nove entre dez modelos de carros novos. Como se a fidelidade de Jesus dependesse da conta bancária do cidadão que pôde adquirir a máquina. E com tal, sub-entende-se que aquele que só pôde comprar um Uno velhinho, não pôde contar com a fidelidade de Jesus. Que essa é prerrogativa de quem tem modelos mais modernos e sofisticados.

A fraseologia dos religiosos, deixa-me com suor nas axilas, tão agitada me torno. Fico como se tivesse cumprido o percurso da São Silvestre, mil vezes, com a língua de fora, sem olhar para trás. Meu Deus, para onde irei eu, tendo que guardar comigo o que penso, nesse pensar que é meu próprio, e que é tão solitário? Para:

www.anamariaribasbernardelli.com

Felizmente, temos também a fraseologia dos apenas humanos. Esses não misturam alhos com bugalhos. Só por isso, já contam com a minha compreensão. Um exemplo: “ Eu amo meu marido.” Ou “Eu amo minha mulher.”

Posso compreender, mas não posso deixar de comentar: olha só que patetice! Pois se a sujeita tem um homem como marido, e se esse marido a tem como mulher, seria por algum outro motivo que não o amor? O que mais deveria unir um homem e uma mulher: a conta bancária? os filhos? o comodismo? afinal, por quais motivos um ser humano precisa sair por aí anunciando que ama o parceiro, se isso deveria ser o óbvio ululante? Talvez porque não seja.

Outro dia, eu reconheci um homem inocente e puro, pela fraseologia do seu carro. As letras bordadas no painel diziam o seguinte: “ A FORÇA DA TUA INVEJA É A VELOCIDADE DO MEU SUCESSO.”

Esse foi curioso. Olhem os detalhes: ele viajava a 60 km por hora, e o carro estava usando toda a força dos seu cavalos de força: era um fusquinha hum mil novecentos e bolinha, caindo aos pedaços.

Mas enquanto os pedaços não caiam, o homem puro passeava com a mulher e os filhos, todos puramente assentadinhos e espremidinhos, como sardinhas em lata. Eu passei por eles, com a minha máquina, e enxerguei, só no banco traseiro, quatro pares de olhinhos que descobriam o mundo em alta velocidade. Contando mais dois, nos bancos da frente, temos seis: seis pessoas que me pareciam haver acabado de adquirir o direito de locomover-se, como se estivessem ao redor da mesa da cozinha: sentados. A paisagem apenas passando, em slow motion, e a emoção mais acelerada do que o motor daquele que, um dia, fora chamado de carro.

Esse tão puro do qual lhes falo, morador da roça que era, usava chapéu. E o vizinho dele, só tem uma carroça e é invejoso. Então, já se sabe a lógica da frase escolhida: “a força da tua inveja, é a velocidade do meu sucesso.” Fácil de ler, digerir e engolir: “Vai seu Zé, ser sucesso na vida com a força da inveja do seu Mané.”

Cheguei em casa, e escrevi a frase no mural de avisos, para não esquecer. Porque ali me nasceu essa crônica. Quatro dias depois, finalmente, Ivo, distraído como ele só, ou ocupado como sempre foi, veio perguntar o que significava aquilo que estava escrito em nosso mural de recados. E que me fazia rir, toda vez que passava por ali.

Nada não, Ivo. Significa apenas isso: Se eu fosse adepta do fraseologismo ambulante, as frases do meu carro diriam assim:

1- Propriedade exclusiva minha, porque comprei com o dinheiro do Ivo.
2- Deus é fiel com carrão, com carrinho, com carroça, com bicicleta, ou a pé.
3- Se eu amo, ou não amo meu marido, é problema meu. Cuide do seu.
4- Sua inveja, não me fede, nem me cheira: pode invejar à vontade.

Mas isso é porque sou revolucionária, reacionária, sublevadora, retrógada e porque não acompanho a modernidade dos meus pares.

Faz parte do chamado de mulher das cavernas. Das cavernas de Elias.


* Foto produzida pelo Alemão. Obrigada, alemão.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

SEU PROBLEMA, MEU PROBLEMA.




Como saber jamais o que se passa no coração de uma jovem de 15 anos, que pede-me ajuda para um mal que não conheço. As palavras tão poucas, tão doloridas e tão pungentes, se revelam como cacos em minha mão, à espera de que eu componha, com eles, um mosaico colorido. Mas só há cinza nesses cacos: “um grande problema, uma grande luta, a vida é injusta, estou sofrendo muito.” E para meu desespero, estes outros: “leio todos os dias o seu diário, te admiro muito, preciso de apenas uma palavra de uma pessoa como você, se puder me ajude. Me responda?”

Sem nem saber seu nome, foi o que fiz ainda ontem. Mas acho que não fiz bem feito, porque não dormi direito: faltou-me a paz. Acho que você não merece que eu lhe responda com poucas palavras, você merece uma crônica inteira. Hoje, meus queridos, dêem-me licença: dane-se o mundo literário. Farei aqui o que Jesus faria ali: deixarei os 99 leitores no deserto e irei em busca da leitora perdida.

Que aos 15 anos, é hora de uma mocinha começar a encontrar-se consigo mesma, e não é hora de perder-se de si mesma. Como não sei em que avenida ela se perdeu, irei buscá-la exatamente aonde eu me encontrava, quando tinha a mesma idade.

Meus tempos de anos 15 foram tão minguados, e nem assim impediram-me o sonho. A empresa do meu pai acabara de falir, e eu trabalhava para ajudar a colocar em casa o arroz e o feijão. Carne quase nunca havia. A mistura era banana. Uma delícia banana com arroz e feijão, você já experimentou? Até hoje, ainda promovo o reencontro desses dois sabores que me são tão familiares: o doce temperando o salgado, e os dois combinando de me iludir, com uma viagem imaginária ao oriente. Um dia, inventei que aquele era um prato das Índias. E foi assim que descobri as Índias sem sair do Brasil.

Dinheiro, pois, não havia para a viagem, mas para o sonho sobrava. Eu tinha longos cabelos negros, extremo bom gosto e nenhum recurso para andar “na moda”. Mas tentava: comprava o tecido nas falecidas Casas Buri e minha mãe costurava. Aos 15 anos, ganhei de presente de aniversário, da minha avó, uma quantia em dinheiro que dava para comprar um pedaço de pano e confeccionar um vestido. Comprei um bem psicodélico, com ondas em várias tonalidades de azuis e rosas. Resultou num tubinho em forma de “A”, com mangas boca de sino e gola Mao, arrematada por um lacinho que fechava o decote.

Ainda me vejo nele, porque gostava de me ver em qualquer trapinho. A extrema pobreza não impedia que eu gostasse da vida e que a vida gostasse de mim. O riso era fácil. Mas o corpo me era um problema: eu não sabia andar com a graça e a leveza de uma gazela. Meu andar sempre teve algo de um soldado a caminho da guerra. E aqui, faço uma pausa para me lembrar da amiga Lúcia Miranda: era ondulante como um rio que serpenteia, colina abaixo. Eu queria tanto ser esse rio ondulante, mas era um soldado a caminho da guerra, montanha acima. O quadril não quebrava.

Por onde andará Lúcia Miranda? Aquele andar salvou Lúcia Miranda da mesmice a que a maioria de nós, nos submetemos. Aqui ficamos e aqui envelhecemos. Lúcia correu o mundo com o seu rio ondulante. Será que ainda serpenteia?
Deixemos Lúcia para lá.
Trabalhar foi algo de que nunca gostei. A bem da verdade, não encontrei nenhum trabalho, nesta vida, que me merecesse por completo. Mas se tinha que trabalhar, que remédio? Trabalhava! Meu irmão, quando casou, disse para mim: “agora, vou ter a minha própria casa e você se vire por aqui.” Ele me falou assim mesmo, e assim mesmo teve que ser. Passei a acumular duas funções, em dois trabalhos diferentes: detestava os dois!

Nas questões sentimentais, era de uma incompatibilidade total com o sexo oposto: fui ter o meu primeiro namorado aos 17 anos. Aos 15, eu apenas sonhava com o meu príncipe encantado, mas ele nunca vinha. Vinha para todas, menos para mim. Meu primeiro amor, foi uma mistura de namorado com amigo: a coisa empacava e não se resolvia. Nunca nos beijamos. Muitos anos depois, relendo uma de suas cartas, vim a entender porquê: a sua opção sexual era outra, mas ele não assumia, funcionário do BB que era e, naquela época, não podia. Meu Deus, eu era tão ingênua, nem sequer pressentia.

Minha sensibilidade me levava a certos extremos: chorava como se um rio brotasse repentinamente de mim, e gargalhava com a solidez do relincho de um cavalo, que também vinha de mim. Era mesmo de extremos. Eu acho que era feliz.

Eu tinha 15 anos! Você faz idéia do que é ter 15 anos? Ter 15 anos é para gastar do jeito que se quiser. E, nesta manhã, venho encarecidamente lhe pedir: não escolha gastar os seus 15 anos na pré história da humanidade. Não há mais tantos perigos ameaçando a terra. Jesus já veio ao mundo. Não há dores, não há ameaças, não há lutas, que Ele não possa curar, defender e vencer : Ele é o Senhor!

Para que Ele se torne esse Senhor que pode tudo, precisa apenas que você lhe outorgue o poder de poder tudo. Uma procuração com amplos e irrestritos poderes.

Há duas maneiras de conhecer Jesus: uma é o Jesus histórico, objetivo, que se conhece do lado de fora. Esse não lhe servirá para muita coisa. Mas a outra maneira é interior, subjetiva e mais profunda. É um conhecimento experimental, revolucionário, que sacode estruturas combalidas, e as coloca no devido lugar.

E como experimentar esse Jesus? No seu caso, experimentando como remédio: em pequenas doses, até à cura. Em doses maiores, depois da cura. Jesus é um remédio que, em doses pequenas, cura o doente, e em doses maiores promove a saúde para sempre, amém. Busque-o, da maneira simples como buscou a mim: falando com Ele.

Não leia apenas o meu diário: leia a Bíblia. É na Bíblia que busco inspiração para escrever, portanto, vá direto à fonte. Ouça Jesus falando pelas palavras Sagradas. Quando oramos, nós falamos com Deus; quando lemos a Bíblia, Deus fala conosco.

A natureza também fala por Deus. Você tem um bichinho de estimação? Tenha! Às vezes tudo que me sobra para tocar em Deus, de maneira palpável, é o abraço e a lambida das minhas cachorras. Que quando me falta o amor em concretude, essas nunca me faltam. Pode faltar-me o Ivo, pode faltar-me o Paulo, pode faltar-me a Sandra, pode faltar-me a Silvia, mas o abraço das minhas cachorras está sempre disponível, para mim, no fundo do quintal. E eu aproveito, e também abraço e lambo. Tudo o que existe no mundo é um resumo de Deus! Sabendo disso, você saberá também, que todos os resumos são horizontes amplificados, que a sua própria mão é capaz de alcançar. Não se escandalize se eu lhe disser o que está escrito na Bíblia, e que poucos souberam ler: "Sua presença enche a terra." Toque-o nesta manhã, da forma como Ele se apresentar diante de você. Jesus é o general de guerra, é o advogado, é o médico, é o procurador, é o remédio, é o consolo, é a cura. Tudo é Ele!

Aqui estou apenas enfunando uma vela, e colocando diante de você um barquinho, que pode lhe conduzir a novos rumos, a novas terras. Na proa vai Jesus, mas você é o remador. Siga o rumo que Ele lhe derminar. Apenas não esqueça, que para se chegar a algum lugar, você terá que remar. Reme, então! "Jesus está no barco/e você é o remador/lá na frente está Jesus/ Ele é o condutor."

sábado, 13 de setembro de 2008

NÃO REVIRE A LATA.



Não sei se a descoberta é óbvia, se é sutil, se é apenas adivinhada, em um daqueles momentos de pura revolta, que pode acontecer numa tão segunda feira pela manhã. Eu só sei que a descoberta me veio em cintilância de revelação. Um dia, como brilha um cristal partido, ela brilhou. E eu sorri e disse: mas então é isso? Mas “isso” é muito perigoso.
E no entanto, perigoso ou não, a descoberta me foi tão clara como o sol do meio dia. Que continua brilhando, para mais claro ir se fazendo. O peso da responsabilidade de saber, eximiu-me da culpa de não compartilhar porque dentro de mim havia um chamado para proteger o mundo: revelar poderia ser danoso demais à humanidade e eu era a mãe do mundo, a mãe que continha um grande segredo.
Eu pensava que era adulta, mas ainda era criança.
Hoje cresci e decidi compartilhar com vocês que o trabalho é uma maldição. Uma maldição que foi impetrada contra nós lá no Jardim do Éden e que continua nos arrostando pela vida afora como uma escravatura celestial: “ No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra; porque dela foste tomado, porquanto és pó e em pó te tornarás.” GN 3: 19.
O trabalho é uma maldição e Deus quer que você corra atrás da bênção. É na bênção que está a libertação de tanto trabalho. Porque na lei da escravatura, estava escrito - apenas - que o homem deveria trabalhar em troca do pão que alimenta, mas esse mesmo homem, ampliando a maldição, determinou que alimentar-se só de pão seria pouco: então passou a trabalhar ainda mais para alimentar-se de carros, de fazendas, de casas, de iates, de viagens, e de tudo o que reluz como ouro. A sedução enganosa do ouro fez do preço da maldição uma carga excessivamente pesada. Mas tem gente que gosta. Tem gente que sucumbe ao peso e morre.
Quando eu era operária, que tédio me davam as que se ufanavam de sê-lo.As que exerciam com glória o seu destino de mouras. Eu era apenas conformada.
E conformada mesmo, tornei-me chefe de tribo. Fui chefe de tribo durante 20 anos e nos meus dias de chefia, ninguém morreu de tanto trabalhar, ninguém fez hora extra, ninguém ouviu de mim uma convocação para que se doassem integralmente à maldição do trabalho. Que integralmente só Deus nos merece. O mesmo Deus que nos amaldiçoou com a bênção do trabalho, na esperança de que em vendo a maldição todos os dias, o buscássemos em todas as horas.
Quando eu era chefe de tribo, houve dias em que alguns escravos vinham trabalhar, com vontade de trabalhar- que esse mal é recorrente e necessário. Pois se Deus nos impetrou a ordem para trabalhar, que se trabalhe então, segundo a ordem de Deus. Mas houve outros, que, nesses mesmos dias em que aqueles trabalhavam, esses outros fingiam trabalhar – que esse mal também é recorrente e necessário. Pois se Deus nos criou com a capacidade de sonhar infinitos azuis, que se sonhe então, segundo a capacidade que Deus nos deu, de sonhar infinitos azuis, enquanto se trabalha.
Os que estão em dias de ordem e progresso, não devem atrapalhar aqueles que estão em dias de sonhos secretos. Não há antagonismo nas duas proposições quando se sabe que ambas estão latentes dentro do homem. O equilíbrio é azul.
O equilíbrio é assim como uma gangorra que sobe e desce, e mantém o vai-e-vém da máquina em pleno funcionamento. Que não se exija do homem que ele seja super-homem e tudo estará bem. Que não se exija do homem um diálogo marxista quando o que ele quer é apenas cumprir a sua trajetória acostumada.
Dessa maneira fui chefe de tribo durante 20 anos: não exigindo nada que a humanidade não pudesse conceder e ainda assim recebendo tudo o que seria possível receber. Nunca coloquei um CGC como prioridade em minha vida de chefe de tribo. Minha prioridade sempre foi cada um dos membros da tribo. Nunca permiti que um aniversariante tomasse o rumo entediante do trabalho no dia mágico do seu aniversário. Onde já se viu um aniversariante ser presenteado com a maldição do trabalho, bem no dia abençoado em que veio ao mundo? Nunca adverti o ser humano por ele ser humano. A bem da verdade, em 20 anos de trabalho, fiz isso uma única vez. E arrependo-me profundamente de tê-lo feito. Sempre segui o que meu coração mandava fazer diante de mulheres que vinham trabalhar com filhos doentes e cólicas menstruais dolorosas. E voltavam para casa, na mesma hora. A diretoria era um lugar de encontros apenas necessários; o coração era o lugar dos encontros definitivos.
E havia oração no início de cada dia, e havia a leitura da Palavra, e aquela oração e aquela Palavra, nos fazia lembrar que temos um único Pai e que somos todos irmãos. Isso coibia qualquer pensamento abusivo. Pois se Deus nos via, como esconderíamos dos homens aquilo que Deus já sabia?
Deixei aquele lugar depois de 20 anos, sem oferecer a ninguém a mediocridade dos que governam para o exercício do autoritarismo. Livrei-me do peso da impostura, porque entre meus pares, nem autoridade - na acepção humana da palavra - precisei ser: cada um tornou-se responsável por aquilo que cativara no outro, e o amor de Deus encarregou-se de elucidar brandamente o nosso destino.
Outros vieram depois de mim. E nesse depois de mim, todos os paradigmas que Deus me orientou a criar ali, foram desprezados, como se despreza um pão bolorento. Criou-se a teoria de que toda ação deve ser investigada à exaustão. Procurando bem, sempre se encontra alguma coisa cujo destino seja a lata do lixo. Quem tem fome de porcaria, que revire a lata. Quem tem vocação para cão, que fareje o mundo. Mas quem tem sede de Deus, que olhe para o Alto. É simples assim.
Ah, administradores do Brasil e da minha terra, e do mundo: uma só coisa tenho a vos dizer - bobos sois! E no futuro, nada sereis. E enquanto todos vós caminhais para o nada, Deus segue sendo tudo.