quarta-feira, 10 de setembro de 2008


ESCREVO E NÃO ASSINO.

Na juventude, as amigas me pediam para escrever cartas de amor. Eu escrevia as cartas, e elas ficavam com os amores, que, depois da minha carta- dá licença? - as amavam ainda mais.

Como o negócio dava certo, elas voltavam: Mais cartas. E mais amor. E eu sempre na coxia, observando de longe o amor -que era meu em palavras, - materializar-se em vida, para elas.

Depois, como quem vai à costureira encomendar um vestido, passaram-me a encomendar discursos: orador da turma. Eu dava o sangue para escrever o discurso, e o orador, além de não dar nada, ficava com os aplausos. Bem, justiça seja feita, ele enfrentava o microfone, e eu era toda tímida.

Os anos foram passando, e eu sempre escrevinhando. Casei-me e o Ivo admitiu-se em um clube de serviço. E eu, distraidamente, fui, com ele. Aí danou-se de vez: Tornei-me escrevente exclusiva de homenageadas, a serviço de homenageantes. Que repartiam entre si os louvores.

Até o dia em que me pediram para homenagear uma pessoa, cujo texto se me tornou quase impossível de nascer: veio em dores de parto, daquelas bem cruciais, como um filho arrancado a fórceps. Não via na cidadã em questão, nada que merecesse ser alvo de uma homenagem. Mas tinha que fazê-lo, porque convencionara-se ser essa a minha função: escriba a serviço do útil e do fútil. Mais do fútil, do que do útil.

Minha velha Remigton estava no auge. E o cesto de lixo muito em moda; era uma moda necessária. Depois de uma tarde inteira de tentativas, o cesto de lixo abarrotado, esparramando pelo chão, com certa indignação, resolvi que, ao levantar-me daquela cadeira, também me levantaria com o pedido de afastamento definitivo, irrevogável e peremptório. Sem volta. Foi o que fiz até a data de hoje.

Nunca me livrei das mazelas de ter que escrever o que não quero, o que não gosto, o que não estou a fim, o que não me diz respeito. Muito raramente, digo não; quando abusam demais, ou quando não degluto o tema, seja por desconhecimento, ou por discordância.

Tenho em meu computador uma pasta repleta de textos encomendados, desde cartas de amor, de despedida, de assunção de chefia, de remissão de chefia, de protesto, de artigos para jornal, até “defesa de processos” administrativos internos, que nunca me disseram respeito, mas que, acabo assumindo na função de ajudar: -“é só umas poucas linhas,” dizem-me.

Para escrever essas poucas linhas, tenho que me inteirar da história, e como uma história puxa outra, depois vem a réplica, e em seguida, a tréplica.

Da última vez, a interessada foi convocada a comparecer a uma reunião, levando o advogado: que era eu! Tenho essa facilidade de encarar a linguagem que o momento pede. Tenho porque é dom de Deus. E por ser dom de Deus, só não tenho sido advogada do diabo. De resto, quase sempre aceito a função. Essa função estritamente solitária, cansativa e sem nenhum reconhecimento público, nem mesmo do interessado. Quando pegam da minha mão o texto pronto, ninguém imagina a chateação e o trabalho que me deu. Ou não! Tudo depende do tempo, do assunto, do momento, e da disponibilidade. Já me vi escrevendo texto às 23 horas, porque no outro dia, às 8 horas da manhã, o interessado teria uma posse. E não seria por falta de discurso que o amigo não tomaria posse. Escrevi.

No Antigo Testamento, haviam os escribas. Graças a eles, a Bíblia chegou até nós. Escrever é uma função altamente relevante e necessária. Os advogados deveriam saber escrever bem, e alguns não sabem. Perdem-se causas praticamente ganhas, por falta de argumentos e de fundamentação jurídica. Muito mais por falta de argumentos, do que de fundamentação jurídica.

Mas eu não sou advogada. Comecei e desisti. Amassei o tigre de papel que ameaçava a minha gratuidade literária com um só movimento, quando virei as costas para o curso – que pena!- na metade do segundo ano: era muita lei para mim. Fui para o curso de História. Mas não fiquei livre dos papéis e da burocracia. E, por incrível que pareça, já me surpreendi buscando nos meus velhos livros de direito, as palavras que me faltaram na “defesa” das causas alheias.

Escrevo, e não assino, mas sob protesto. Se não houver outro jeito, tudo bem: continuarei escrevendo e não assinando, porque se Deus deu-me o dom de escrever, - dando a mim e não a outros- , não seria para que eu escrevesse por aquele outro- que não recebeu o dom que Ele deu, de graça, para mim?

Na dúvida, e sabendo que Deus é fino, não quero correr o risco de perder a bênção: Escrevo sim!

O meu ofício é escrever: como o tempo escreve na árvore, e não assina o nome, eu escrevo, e faço de conta que não escrevi. Só reclamo um pouco, mas Deus perdoa.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

DEUS CAMINHA NA CONTRA MÃO.




A Bíblia tem histórias, circunstâncias e declarações que nos dão um grande trabalho para acomodar dentro delas, as nossas vontades e as nossas necessidades como ser humano, providos de intelecto, pretensões, anseios e aspirações.


Há certa hora, em que a Bíblia vai por um caminho tão árduo que nós, seres redondos, completos, acabados, temos que abrir uma brecha em nossas proposições para conseguir encaixar o que eu penso, com o que Deus pensa, para poder amoldar o que eu pretendo com o que Deus pretende, para poder adequar o meu sentido de grandeza com a indigência que ele me oferece em termos de realização pessoal.


Desamoldar conceitos não é tarefa fácil. O sistema nos educa e nos prepara para o sucesso pessoal, profissional, social e faz um pacote com todas essas coisas com o rótulo de “Felicidade.” No conceito humanístico, a ascensão social do indivíduo está intimamente ligada à idéia de felicidade, mas a Bíblia nos oferece outra metodologia para ensinar o caminho que leva à felicidade.

Para compreender a Bíblia, e por inferência, a mente de Deus, não podemos pinçar um único versículo, capítulo ou livro, sem correr o risco de fazer daquele texto um pretexto. Temos que ler a Bíblia toda e depender ainda do Espírito de sabedoria e revelação. Mas, para provar uma pitada dessa conexão ilógica, sem fazer disso um modelo, mas uma “isca” que nos leve a buscar essa compreensão, vamos escolher esse versículo que Paulo escreveu em sua carta aos coríntios:

“ Se enlouquecemos, é para Deus; se conservamos o juízo é para vós.” 2 Cor. 5:13.

Este é o ponto. Conservar o juízo ou enlouquecer. Uma escolha deveras inusitada. Você quer ser reconhecido como um exímio cidadão exemplar, ou como um alienado? como um louco ou como um sábio? como um forte ou como um vil? A Bíblia deixa claro que tipo de escolha Deus faz:

“ Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; Deus escolheu as coisas vis deste mundo e as desprezíveis e as que não são, para aniquilar as que são; para que ninguém se glorie perante Ele.” 1 Cor. 1:28-29.

Deus escolhe os loucos, os fracos, os vis, os desprezíveis, os que não são, e os usa para aniquilar os que são. Alguém aí se habilita para o serviço de Deus? Alguém aí quer se inscrever no “O Aprendiz” para a função de ser auxiliar direto do Maior? Daquele que não chega de helicóptero porque voa nas asas do vento, daquele que não apenas ordena aos homens, mas ao mar, daquele que não tem casa na praia, no campo, na montanha, mas é dono de todos os mares, todos os campos e todas as montanhas? As inscrições estão sempre abertas... mas essa inscrição não é você quem faz, ela simplesmente se faz. Um dia, sem que saiba como, você pode ser inscrito.

Sem dúvida, o Evangelho age de forma revolucionária, positiva e arrasadora sobre a vida de tantos quantos são designados a viver de maneira pluridimensional, com os pés na terra e a cabeça no céu, o divino permeando o humano e prevalecendo sobre todas as possibilidades, sobre todos os arrazoados ideológicos, sobre todos os conceitos religiosos estéreis.

Caminhar com Deus é caminhar a favor da humanidade, mas na contra mão do mundo. Isso significa exatamente o que significa: quando todo mundo caminha por uma mão, Deus caminha pela outra. Imagine uma auto-estrada, cheia de veículos transitando de maneira ordenada. Pois quando você vir um carro blindado sobrevindo diretamente em sua direção, sobre a sua vida, sobre os seus projetos, sobre os seus sonhos pessoais, ali vai Deus ao volante. Não para esmagar, mas para convidar você a abdicar da companhia da maioria dos comuns mortais, e trilhar o caminho inverso em companhia dele.


Deus é um susto só.

Por isso a Bíblia é repleta de personagens que nos comovem. Sentimos pena dos personagens bíblicos quando os vemos como homens, simples mortais que foram. E sentimos fascinação, quando os vemos como seres que transcenderam a lógica natural e viveram de forma sobrenatural.

Elias. Meditando sobre a vida de Elias, os milagres que realizou, as situações que vivenciou, os desdobramentos psicológicos que sofreu, aprendemos que a comissão divina sempre causa um rebuliço na condição humana. Elias bateu de frente com os reis Acabe, Acazias e Jeorão. Gente da pesada. Bateu de frente com a idolatria, com a feitiçaria, com toda uma nação que abandonara ao Deus vivo, para comprometer-se com o pecado. Por último, Elias bateu de frente com a rainha Jezabel. Mas lembram-se do carro blindado? Elias foi o carro blindado e Deus estava nele.

Elias ordenou a seca como juízo, e a seca veio sobre a terra. O que não o isentou de estar sofrendo as penalidades desse mesmo juízo, porque ainda pertencia à terra, ainda era de carne e sangue. Ele também teve sede. Para matar sua sede, Deus lhe deu o obscuro ribeiro de Querite. Bebeu do riacho, em Querite, quando toda a água que abastecia as tribos de Israel vinha do Rio Jordão. Mas o Jordão secou para Israel e o ribeiro de Querite , a leste do Jordão, fluiu para Elias. Um fio de água. Essa água matou a sede de Elias.

A caçada contra a sua vida começou. Mas quem procuraria Elias, a leste do Jordão, se ali não existia água? Os homens sempre reagem com a lógica natural e por causa dessa lógica natural, Elias viveu de forma sobrenatural, sem ser incomodado: bebeu água do riacho de Querite e foi alimentado pelos corvos. Uma vida extraordinária.

Quando Deus determina a direção para a vida, Ele também concede o suprimento a essa vida. Que não necessariamente será caviar, filé mignon ou uísque escocês. Pode ser comida trazida por corvo e água do riacho. Quando se está exatamente no lugar que Deus determina, executando o serviço que ele necessita, desempenhando a missão que ele defini, com certeza, o socorro não falta . Não falta a comida na hora da fome, a água na hora da sede, o conforto na hora da dor. Deus não nos isenta de dores, mas passa conosco cada uma delas, e dá o seu jeito que nem sempre é o nosso jeito.

O extraordinário não está na presença de Deus em forma de socorro, mas no socorro de Deus em formato não padronizado, em conceitos não convencionais. O suprimento não vem em bandejas de ouro por mãos de anjos, mas na boca de corvos.

As “frescuras” humanas jamais conseguirão engolir esse fato. O Deus que criou a fauna toda, a passarada toda, os seres angelicais, todas as criaturas, não envia um homem, mas envia um corvo. Elias comeu do que o corvo lhe deu. Elias comeu na mão do corvo.

Seca o ribeiro, a água acaba, o corvo some. Vai voar em outras paragens menos “elisianas”. Mas Elias continua lá, esperando a ordem. Ele acabou de aprender a submeter-se ao governo revolucionário do céu.

“ Então veio a ele a Palavra do Senhor: Levanta-te, vai a Sarepta que pertence a Sidom e habita ali. Ordenei a uma mulher viúva que ali te sustente. Então, ele se levantou e foi a Sarepta.” 1 Reis 17:9

Corvos e viúvas. Deus consolida de novo a lógica divina que passa a milhares de quilômetros da lógica humana. Não faltou pão, não faltou água, não faltou suprimento para Elias, para a viúva e para o seu filho, Três pessoas se beneficiam da mesma graça, do mesmo poder. Porque a graça de Deus é comunicante, porque a bênção de Deus é para todo aquele que não retém, que não se apossa, que não se assenhoreia dela, antes a administra com liberalidade, com generosidade, com prontidão. Foi a viúva quem alimentou Elias, ou foi Elias quem alimentou a viúva? Foi Deus!

E enquanto isso, a poderosa nação de Israel amargava um extenso período de seca e de fome. Faltou comida para os que “conservaram o juízo” mas não faltou comida para os “loucos”, para os que “perderam o juízo.” Faltou direção para os que andavam pela auto pista, mas não faltou caminho para aquele que enveredou pela contra mão do mundo.


Elias é só um exemplo, mas a bíblia tem outros vários. Ser um personagem bíblico na medida de Deus, equivale a cair na desgraça dos homens, equivale a ser excluído do sistema humano mundial, “riscado do mapa”.

Quais os riscos de se inventariar por esse caminho novo? Todos! Quem se arrisca, permanece dividido entre o arrazoado humano e o imponderável divino. Vive-se a meio caminho, suspenso entre o céu e a terra. E ainda se continua humano, pequeno, desconectado. Ainda se experimenta dor, frustração, angústia, amargura e medo. É um caminho árduo, íngreme e sem volta. Mas é o único caminho possível para aqueles que foram chamados e obedecem a esse chamado, não maneira passiva, mas de maneira corajosa. Porque a obediência é o que a obediência faz. E obedecer continua sendo “melhor do que sacrificar.”

terça-feira, 2 de outubro de 2007

CHE GUEVARA - O HOMEM E O MITO

Descobriram que Che Guevara foi gente. Proclamado tanto tempo como louco, como visionário, como santo, agora descobriram que ele foi gente. E ao descobrir que foi gente, estão esquecendo que o mundo cria e projeta aquilo que lhe convém. Podemos até atribuir a aura mitológica à máquina da propaganda marxista. Mas o buraco é mais embaixo.

Desde muito antes que o marxismo existisse, os homens já tinham Che. Criamos símbolos e precisamos deles para viver. Precisamos do mito, da fantasia, dos nossos Ulisses com os seus cavalos de pau, adaptados aos tempos em que vivemos. A simples lembrança de que, em algum lugar, existe um livre pensador valente, que afronta os poderosos, que vence os gigantes, que derruba Golias, que aniquila invasores, que contraria o sistema, que defende as idéias de igualitarismo que não conseguimos exteriorizar, mas que estão latentes dentro de nós, faz nascer o mito.

O mito é construído pelo sentimento coletivo de que estamos todos subindo um rio caudaloso, nadando contra a correnteza, resistindo à morte, embora estejamos apenas assentados à sua margem, observando-o passar com a bandeira de um mundo ideal. Os sonhos humanísticos são os melhores sonhos, os mais nobres. Mas eles podem ser como esse rio furioso pedindo passagem dentro de nossa geografia interior, buscando espaço para instalar a sua topografia a qualquer preço. Esses sonhos custam caro, e cedo descobrimos que não temos a moeda de compra. A moeda de compra de um mundo ideal não se faz com conhecimento empírico. Não é porque observamos que existe a injustiça que conseguimos implantar a justiça. Somos amadores quando se trata de estabelecer parâmetros para a nossa constituição de justiça social. Somos como a criança cuja mãe pede para compartilhar um brinquedo com o amigo e ela aceita, mas depois, vendo-se privada da posse vai lá e toma. Relativizamos o absoluto, adaptamos às nossas conveniências, legislamos em causa própria. Cedo descobrimos que defender essa justiça pode ser tão perigoso e tão fatal quanto nadar contra a correnteza de um rio furioso dentro de nós. O inimigo dorme ao lado. Então nos sentimos impotentes.

Che representou para os jovens de sua geração, a vitória contra a fraqueza existencial, o símbolo da resistência subjetiva, a possibilidade representativa de engajar-se em causas nobres, de esquivar-se à inércia dos que não fazem história. Agora se sabe que Che foi tudo, além disso ou menos do que isso, dependendo da órbita da visão.

Che foi homem e como todo homem, teve um lado escuro que só agora está vindo à tona. A quem interessa resgatar em sua biografia o mais sombrio dessa humanidade, é a pergunta que eu me faço agora, como sempre me perguntei a quem podia interessar o glamour e a fantasia com que enfeitaram a sua biografia de guerrilheiro.

Che não foi um homem comum, nem no claro e nem no escuro. O lado claro se manifestou na renúncia individual, na disposição de abdicar da própria vida. Convenhamos que ninguém estuda medicina durante 6 longos anos para não exercer essa função. Algo aconteceu no meio do caminho da vida desse jovem, que o impulsionou a abandonar os seus próprios ideais.

Ontem, meu marido recebeu um convite para uma festa em homenagem ao Dia do Médico. E no verso do convite, feito dobradura, apareciam as palavras: “ Vestibular, Passar pela Faculdade, Provas, Plantões, Residência. Você achou que depois de todo esse esforço, iríamos deixar essa data passar em branco?” Pois aqui, creio, cabe a analogia. Che deixou a vida passar em branco. Comprou, mas não aproveitou. Pagou o preço e jogou fora. Cumpriu a prova mas não recebeu o prêmio. Venceu a maratona mas não pegou a medalha. O lado acadêmico, altruísta, nobre, o conhecimento científico adquirido para salvar vidas, passou em branco. Em algum lugar do caminho, Che perdeu o sonho individual para ganhar o coletivo.

Ocorre que os sonhos coletivos são perigosos porque o coletivo traz consigo uma carga atávica de bestialidade que emerge do individual. O inconsciente coletivo tem uma tendência para a bestialidade, para a baderna. Todo homem, individualmente, tem dentro de si tanto o bem quanto o mal. Somos uma vaso para conter um tesouro, mas de vez em quando emerge a fera. De vez em quando, confinamos o tesouro a um cantinho escuro do nosso coração e deixamos que a fera se instale tranquilamente em grandes espaços.

Quando se toma para si a missão de mudar o mundo, e de realizar os sonhos da coletividade, também se toma parte da bestialidade que existe no individual. Camadas e mais camadas vão se sobrepondo sobre a alma, enquanto “um abismo chama outro abismo.” O mito não resiste ao comando exterior da voz que clama do abismo. Ele faz qualquer coisa para continuar sendo mito, para continuar sendo símbolo de credibilidade corajosa, para continuar sendo “deus”. Ele mata sem piedade. Ele mata sem necessidade. Ele mata porque “está vivo e sedento de sangue” ( Segundo a revista Veja, foram palavra de Che em carta à esposa). Ele mata porque “nossa luta é uma luta até a morte” ( da mesma fonte). Ele mata porque “o ódio intransigente ao inimigo converte o combatente em uma efetiva, seletiva e fria máquina de matar. Nossos soldados tem de ser assim” ( idem). Ele mata porque é o representante da bestialidade de toda a raça humana acumulada.

Mas Che matou por algo mais. Ele matou e se deixou matar porque em algum lugar do caminho, o tesouro se perdeu e a fera se instalou de maneira amplificada dentro dele. A fera ocupou o trono do seu coração. Essa fera ronda os homens. Ela existe desde o jardim do Éden e o objetivo dessa força, cuja capacidade de persuasão não se pode subestimar, é “roubar, matar e destruir.” Não podemos imaginar os artifícios que ela usa para nos seduzir. Mas um deles, certamente é a glória dos homens. A glória dos homens constrói pacientemente um Chê, fazendo-o crer que é imprescindível para a libertação da humanidade, sugerindo que os fins justificam os meios.

Che deixou um rastro de destruição e depois foi destruído. Mas a humanidade contemporânea não pode eximir-se totalmente dessa culpa. Até porque ela continua matando Che. Continuamos matando Che sempre que o imortalizamos em tatuagens, e estampas de biquínis. Continuamos matando Che quando estampamos o pôster na parede e quando repetimos como num mantra “Há que endurecer-se mas sem jamais perder a ternura.” Continuamos matando Che quando sentimos ternura diante da estampa de bom moço. A mídia fez de Che um lindo garoto propaganda que defendia a soberania de sua Pátria e lutava pelos povos subdesenvolvidos. Agora querem reverter a propaganda contra o garoto. Querem que compremos o “cheiro de rim fervido” pela falta de banho. Essa é a fragrância cheguevariana do momento. Experimente e leve pra casa, é grátis.

Quero que você reflita que esse fedor é nada perto da podridão acumulada pelos séculos dos séculos. Quero que você coloque em prática a “vigilância epistêmica” que Stephen Kenitz, cronista da mesma revista, recomenda. “Vigilância epistêmica” é para mim um termo novo, mas segundo Kenitz é “a preocupação que todos nós devíamos ter com tudo o que lemos, ouvimos e aprendemos de outros seres humanos, para não sermos enganados.” Apliquemos a tal “vigilância epistêmica” ao que se diz de Che, até porque fica muito difícil mensurar o subjetivo de um personagem que já morreu, baseando-se na aura e na “des-aura” que se controi em torno da sua história.

Ninguém é tão bom quanto se pensa, nem tão ruim quanto se imagina. Entre a imaginação e a realidade existem as pertinências subjetivas à personalidade humana, características tão íntimas, que só Deus conhece. Coração continua sendo terra que ninguém pisa.

Che não foi um inocente útil, foi um culpado inútil. Todo ser pensante que exerce a sua capacidade de interpretação filosófica, já viu isso há muito tempo. Sempre soubemos que, como guerrilheiro, ele foi homem endurecido e sem ternura. Antes que os seus atos de bestialidade fossem divulgados, já sabíamos que não há guerrilheiro sem guerra e sem os atos de selvageria que acompanham essa guerra. Mas hoje devemos saber que Che precisa morrer. Deixemos o homem em paz permitindo que morra o mito. E que essa morte nos ensine alguma coisa mais profunda e eterna do que as verdades e mentiras da sua história.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

CARTA PARA UM AMIGO ESCRITOR.

Airton:
Não há nenhum caminho mais curto para tocar o coração de uma pessoa do que chamá-la pelo nome. O nome encerra a idéia. Quando alguém nos chama pelo nome, tem o caminho e a porta. E já que você passou pela porta e entrou, percorra agora, junto comigo, algumas avenidas milenares.
A figura de linguagem que você citou faz parte da natureza do escritor. O escritor sente tudo em tamanho amplificado. Se tivesse que qualificá-lo, eu diria, sem medo de errar, pelas duas vezes em que estive em contato com os seus textos, que o Airton é uma pessoa de intensa cerebração ( de cérebro), de amplos e variados conhecimentos, de interesses ecléticos, e um domínio excepcional da palavra. Junte-se a isso a sensibilidade exacerbada e temos aí, no mínimo, um escritor.
A riqueza que você viu é derivada da dor. A minha e a dos outros. Não concebo um escritor que não tenha experimentado a dor. Todos os demais sentimentos são desejáveis, mas a dor é imprescindível. A dor nos identifica e nos aproxima. A inspiração no passado deriva daí. Não creio que seja com a finalidade de aprender, mas de suportar.
Estive em Corinto e as ruínas me contaram que, um dia, todas as angústias existenciais acabarão. Naquele lugar eu vi. Vi como poucos seres humanos conseguem ver. Sou uma pessoa de paisagens, mas a geografia humana me atrai muito mais do que a topografia. Caminhando por entre aquelas ruínas, senti falta das pessoas que viveram ali. Senti falta da brincadeira das crianças e do labor dos adultos. Senti falta dos velhos sentados nas portas, distribuindo sabedoria, apoiados sobre os bordões. Sobre os bordões se encontra a síntese da existência. Um bordão é uma bengala. Uma bengala é um apoio. O apoio só pode vir do Alto. Há uma fase na vida, em que o apoio só pode vir daí.
Estive em Corinto e as ruínas me contaram.Quantas coisas as ruínas me contaram! Aquelas ruas por onde passavam as riquezas da Grécia antiga, também abrigaram os sonhos dos homens. Para onde foram os homens de Corinto? Os escombros das edificações estão ali. Mas as pessoas passaram. Para onde foram? Para onde foram os sonhos, as perplexidades, os problemas, as angústias e os medos?Eles vieram todos para nós. Atravessaram os séculos e aportaram em nós. Depositaram sobre os nossos ombros uma carga atávica. Alguns, recusam-se a levá-la. Rejeitam o legado, fecham os olhos para o que existe de mais profundo. Outros, voluntariamente, oferecem os ombros para carregá-lo.Faço parte desse último grupo.
Em algumas manhãs, eu acordo e digo para mim mesma: “amanhece o dia em Corinto.” Essa frase, de alguma maneira, me conforta e eu cobro alento para prosseguir. Portanto, sinto decepcioná-lo, mas creio que existe sim, uma postura nostálgica nessa inspiração. Os personagens do passado me ensinam a viver, mas o que mais gosto de aprender com eles está em outra esfera. Na esfera de uma vida mais ampla, além desta dimensão.
Sou apaixonada pelo antigo porque o antigo me remete ao Alpha e o Ômega. Deus é antigo e é novo, é ancestral e é futurista. Como não tenho acesso ao futuro, circulo pelo passado, na esperança de encontrar algum vestígio que me remeta diretamente ao futuro. Não ao futuro imediato, mas ao futuro apocalíptico e eterno.
Assisti a um filme onde o personagem principal ensinava a um jovem. Era um sábio. E ele dizia: felicidade é a jornada e não o destino. Mas o homem é um ser de destino. Ele tem dentro de si a ansiedade dos que almejam chegar. Há muitas necessidades dentro de nós, mas nesse momento, quero identificar duas que considero fundamentais: para viver, precisamos pertencer; e para morrer, precisamos ser destinados. Se pertencemos, nos inserimos, fazemos parte de um grupo social, nos identificamos, e isso nos faz feliz, nesta vida. Mas se não nos destinarmos, perdemos a última finalidade.
Eu quero ser destinada. Para mim, ser destinada é mais importante do que pertencer. O destino é meu lugar de permanência. Pertencer é efêmero.
Um dia, há muitos anos atrás, eu queria uma casa. E aí, como boa marqueteira, criei uma idéia muito feliz para convencer o Ivo a construir a nossa casa. Eu disse a ele: “morar é verbo definitivo.” E de tal maneira arredondei a idéia que nos pareceu a coisa mais excelente a ser feita. Ele comprou a idéia e eu ganhei a casa, do jeito que queria.
Mas aonde morar seria um verbo definitivo?Certamente, não neste mundo. E de que maneira eu descobri isso? Da pior forma possível! Não há nada definitivo neste mundo. Tudo aqui tem o selo do provisório. Desde então, pertencer passou a ser uma necessidade menor. Meu marido, às vezes, diz em tom de brincadeira,( e eu sei que toda brincadeira tem um fundo de verdade), que eu deveria ter sido monja porque gosto de viver isolada. E talvez eu viva mesmo em um monastério particular, ainda que circule pelo mundo dos vivos.
Para descontrair, para que você não pense que sou profundamente nostálgica ( só um pouco) quero manifestar a minha alegria por ter encontrado o Recanto das Letras. Um lugar onde eu olho em volta para não dizer mais: “sou só eu, cadê os outros?” Se o mundo fosse um grande galinheiro, eu diria que o Recanto é uma incubadora de pintos, alguns maiores, outros menores, alguns com pena, outros sem pena, alguns resolutos, outros titubeantes, mas todos profundamente assustados, perplexos e alarmados com o mundo dos homens. Há uma indignação que nos é comum e a palavra nos liberta. Nessa incubadora existem aqueles cujas asas maiores oferecem abrigo. Um lugar quentinho, para nos abrigarmos do medo. E para lá corremos todos. Aqui há um pouco de riso e alegria, mas há também suspiros e ais. Por isso, creio que seria mais apropriado definir o Recanto como a UTI de um grande hospital , repleta de agonizados e agonizantes. Não tem jeito, a palavra corta, fere, machuca e só salva e liberta quando é liberada. Nesse sentido, agonizamos, para nos salvar uns aos outros.
Às vezes, uma frase nos salva. Quando meu filho completou 5 anos fizemos para ele uma festa de aniversário. Nessa festa, ele ganhou muitos presentes. E entre eles, um marcou a minha vida. Não pelo presente, mas pela frase que acompanhou o presente. Um menino o presenteara com um par de meias. E ele, na inocência de uma criança, abraçou o coleguinha e disse para mim: “olha, mãe, ele me trouxe um par de meias.” Foi só isso mas a entonação de voz fez o outro perceber o sentimento de pena. Então, para se defender, o que trouxera a meia disse: “É só um par de meias, mas tem um cabidinho.”
As meias estavam em um cabide. Até hoje, procuro nas meias um cabidinho. E sempre encontro. Seja nas situações, ou nas pessoas. Mas isso, só se consegue pertencendo. Pertencer é relacional, destinar é muito solitário.
Obrigada por analisar o meu perfil. Fernando Pessoa também foi analisado. E quando o material para análise estava muito amplo, ele não coube em si e precisou se desmembrar em outros personagens.
Espero que, de alguma forma, a riqueza que existe em mim, se misture à sua riqueza, e a minha miséria, e a sua miséria, saiam mais diluídas desse contato. Sei que assim será porque já está sendo assim.
Em tempo: não sei o que é uma mulher schubertiana. Mas Schubert além de gênio, não era meio louco? Acho que sei o que é uma mulher schubertiana. Sim, devo sê-lo. E que seja para a honra e glória do meu Deus.
Um abraço, é bom estar com vocês.
Ana Maria.

domingo, 30 de setembro de 2007

NÃO BASTA SER MÃE...

A Sandra telefonou pedindo orientação sobre alimentos funcionais, para quem faz exercício físico ou para quem quer mais saúde.
Também me pediu, pela milésima vez, a receita do meu pão integral, que eu escrevo num papel, bem bonitinho, e ela perde em seguida. Ou mando num e-mail e fica esquecido no meio das mensagens que recebe.
Não basta ser mãe, tem que ser nutricionista, orientadora física, cozinheira, médica, psicóloga, e tantas outras funções mais. Mãe agüenta. Mãe pesquisa na internet, pesquisa em livros, aprende primeiro e oferece tudo mastigado para o filho se atualizar. E para você que me acompanha por aqui , vai de brinde. Vamos lá:
1 – O exercício físico só queima gorduras depois dos primeiros 20 a 25 minutos de caminhada vigorosa. Antes disso, o combustível é a glicose. Quando acabam essas reservas de glicose, para o cérebro não apagar, e você não cair durinha, o organismo vai buscar combustível nas reservas de gordura. Aí vão embora os pneuzinhos.
2- A caminhada precisa ser vigorosa, do tipo que, andando, você não consiga conversar normalmente. Não adianta andar a passos de tartaruga. Tudo bem é melhor que nada, e devagar também se chega lá. Mas se você quiser aperfeiçoar o seu exercício, e extrair dele o que houver de melhor, esqueça o papo. Esqueça aquela vizinha que caminha falando o tempo todo. A freqüência cardíaca tem que corresponder a 75% de sua freqüência cardíaca máxima. Para achar a freqüência cardíaca máxima, de acordo com a sua faixa etária, você subtrai a sua idade de 220 e aplica os 75%.
3- Antes do exercício, um pouco de carboidrato complexo para ter energia. Carboidrato complexo é aquele que vem dos grãos integrais. Esse é melhor do que o carboidrato simples, que é fornecido pela farinha branca, por exemplo. Por quê? Porque o carboidrato complexo demora mais para ser absorvido pelo corpo.
4) Sabe o que é metabolismo? Metabolismo é o processo pelo qual o seu corpo processa tudo quanto você come e direciona para os vários órgãos do corpo. Como o carboidrato simples é mais fácil de ser digerido, ele explode no corpo como uma bomba calórica. Sem saber o que fazer com tanta energia abrupta, o corpo armazena sob a forma de gordura, para ser usado oportunamente.
5) O carboidrato complexo por ser de digestão mais lenta, vai sendo assimilado aos poucos, para ser usado nas funções vitais: batimentos cardíacos, respiração, transpiração, digestão, excreção, etc. Isso significa maior sensação de saciedade, por muito mais tempo. Aí, o corpo vai usando devagarzinho, conforme a necessidade.
6) O que comer antes do treino? Antes do treino carboidrato, depois do treino proteínas. Uma barrinha de cereal antes, um copo de leite desnatado com achocolatado depois. Ou uma fatia de pão integral antes e um iogourt depois.
7) O que comer no almoço para evitar o sono que vem depois? Se não quiser ficar preguiçosa depois do almoço, bocejando, sem pique nenhum, evite os carboidratos simples: arroz branco, batata. Doce depois do almoço, nem pensar. Por quê isso causa sono? Porque aumenta abruptamente a taxa de glicemia no sangue. Isso faz o corpo desabar. Coma verduras ( fibras), arroz integral( carboidrato complexo), feijão e um pedaço de peixe, carne branca ou vermelha( proteínas). Mas vale uma observação: se você é daquelas que não consegue ficar sem doce, então coma imediatamente depois da refeição, porque o alto índice glicêmico do açúcar vai ficar mais diluído, na presença de outros nutrientes. Isso significa que, o doce depois da refeição, engorda menos, do que o doce sozinho, no meio da tarde, por exemplo.
8) Alimentos com alto índice glicêmico: batatas, cenouras cozidas, beterraba, mandioca, arroz branco, macarrão e seus parentes, pão branco, doces, frituras, tudo o que é gostoso. O alto índice glicêmico faz o efeito bomba calórica que já mencionei. Esse tipo de alimento aumenta a demanda por insulina e faz o Pâncreas trabalhar em dobro.
9) Nosso pâncreas tem uma reserva de insulina para produzir durante toda a vida. Se gastar demais hoje, vai faltar amanhã. Daí nem torcendo feito pano molhado vai sair alguma coisa. Resultado: Diabetes!
10) Alimentos com baixo índice glicêmico: arroz integral, macarrão integral, pão integral, lentilha, palmito, legumes sem cozimento ( por exemplo, a cenoura quando crua diminui muito o seu índice glicêmico), chuchu, brócolis, couve flor, enfim, tudo o que, na minha opinião, não é gostoso. Não dá para se ter tudo nesta vida, não é mesmo?
11) Gorduras do bem fazem falta, mas com moderação porque engorda. Gorduras do bem: óleo de canola, de milho, de girassol, nozes, azeitonas, castanhas de caju, e aquelas provenientes da sardinha e do salmão (ômega 3). Um pouquinho só, todos os dias. Acostume-se a não comprar alimentos industrializados, tipo bolacha, por exemplo. E se comprar, evite os que contenham gorduras trans. Essa é muito ruim.
12) Evite o sal. Ele fornece muito sódio e faz reter líquidos, aumentando a pressão arterial.
13) Evite embutidos: lingüiça, presunto, salame, salsicha, porque também tem altos índices de sódio.
14) Faça musculação para aumentar a sua taxa de metabolismo basal. O metabolismo basal é a taxa que corresponde à sua demanda calórica em repouso. Quando se tem músculos no corpo, (massa magra) a taxa é mais alta, porque os músculos continuam gastando energia mesmo em repouso e a demanda é maior. A gordura é massa gorda, e parece ser o que realmente é: uma lesma que não exige nada, fica ali, só ocupando um espaço inútil no corpo.
15) Fracione as suas refeições em 6 ou 7 porções durante o dia: café da manhã, lanche, almoço, café da tarde, lanche, jantar e ceia. Faça refeições menores, evidentemente. Porção de passarinho, não de baleia. Por quê? Para manter o seu metabolismo acelerado o dia todo. O maior gasto de caloria, para quem não é atleta, está no processo digestivo. O trabalho de mastigar, que começa na boca, passa pelo estômago triturando o alimento e depois é enviado para as várias células do corpo como nutrientes, através do sangue. Esse processo gasta boa parte das calorias que ingerimos. Se você acrescentar a isso exercícios físicos regularmente, vai aumentar a demanda ainda mais. E se, entre esses exercícios físicos, estiver incluída a musculação, fica perfeito.
16) Pense no metabolismo como um trabalhador braçal meio vagabundo. Se você der função para ele, ele trabalha. Se não der, ele dorme. Por isso, você deve manter o seu metabolismo trabalhando o dia todo, dando várias pequenas refeições para ele ter o que fazer.
17) Essas pequenas refeições devem ser de alimentos com baixo índice glicêmico para não realizar o efeito bomba que já foi explicado.
18) A minha aula acaba aqui. Sou leiga no assunto. Quem quiser saber mais deve consultar o médico, o nutricionista, o preparador físico, enfim... A maior vantagem é que você acabou de receber um resumo de tudo quanto venho pesquisando e colocando em prática há alguns anos. E a vantagem adicional é que não cobrei honorários.

O QUE SOBROU DE MIM

Ao telefone, ela me disse que não tinha importância, que entendia que eu era uma pessoa ocupada e por causa disso, não tinha tempo para recebê-la. Sua prontidão de espírito, deixou-me desolada. Eu não esperava essa reação e de repente, vi-me como nenhum ser humano gosta de se ver. Por causa desse sentimento, dei adeus à liberdade daquela tarde de terça feira. Abri a porta da minha casa, mesmo sem abrir o coração.

Ela viera de outra cidade, sem aviso. O que me incomodava não era a surpresa, era a lembrança. O saldo negativo de outras épocas. Eu a conhecia da sua infância. Crescera nesta rua, ao lado dos meus filhos. Já casada, começara a surtar. Tinha crises de ausência e de repente, embarcava numa viagem imaginária, sem data certa para voltar. Olhar fixo no infinito. Não comia, não tomava banho, não reagia. A família nos chamava para ajudar, mas sempre que chegávamos, como na crônica de Clarice Lispector, o trem já havia partido. A medicina parecia não poder fazer muita coisa. O marido, quando voltava do trabalho, dava banho nas crianças, fazia comida, cuidava da casa e do cachorro. Era um homem de poucas palavras, e olhava para tudo sem esboçar reação. Mas não me enganava. Eu sabia que ele não agüentaria muito tempo.

Quando o marido não agüenta, os pais agüentam. Pai e mãe agüentam tudo. E, um dia, como eu previra, a casa caiu, a paciência esgotou, o amor acabou, e ela foi “devolvida” à guarda dos pais, em outra cidade, e, rapidamente substituída.

Um dos filhos foi morar com a avó paterna, o outro a acompanhou.

Era dessa época, que não nos víamos mais. O que não me impedia de ver a outra, usufruindo tudo o que fora dela. Por isso, o sentimento dominante era de tristeza e frustração.

Enquanto eu refletia rapidamente no passado, sem saber ao certo como recebê-la no presente, ela entrou em meu escritório. Eu estava aqui, escrevendo um texto. Fazendo o que gosto, fazendo a crônica da minha vida. Renunciei ao meu fazer para recebê-la.

A figura era quase surreal: vestido preto transparente, em pleno calor tropical, pele muito queimada pelo sol. Dias e dias sob o sol, cortando cana, fizeram dela uma anciã precoce, a pele do rosto desidratada, a expressão vincada. Só os olhos ainda eram verdes. Verdes! Caminho fechado para o homem, mas aberto para Deus.

Percebi, em poucos minutos, que a psicose estava controlada, mas não debelada.
Que a vida fizera dela uma sobrevivente.
Que o poço era mais fundo.
Que a qualquer hora, ela viajaria de novo, para bem longe de todos nós.

Conversamos sobre coisas concretas: sua condição não podia ser esmiuçada e minha impotência precisava ficar camuflada.
Soube que a sua casa era tão precária que não tinha porta.
Que a porta estava caída, esperando para ser colocada no lugar.
Que o novo marido não tinha interesse em consertar a porta.
Que o filho caçula estava envolvido com drogas.
Que a irmã entregara o filho mais novo para o pai e a internara num sanatório, diversas vezes.
Que o menino sempre voltava, como voltam os cachorros sem dono.
Que a mãe continuava tendo crises epilépticas.
Que a última delas lhe custara uma queimadura no rosto.
Que Deus era o seu refúgio na terra dos homens.
Que eu não deveria mencionar a palavra “azar”, porque dava azar.

Entre uma lição e outra, - que eu assimilava, juro que assimilava, porque Deus usa os fracos para ensinar os fortes- perguntei-lhe porque estava casada com o atual marido, que me pareceu assim meio ruim de serviço. Ela me respondeu bem humorada: “nem todo mundo tem a sorte que você teve para conseguir um bom marido”. Como se um bom marido fosse uma mercadoria preciosa. Será que não é?

Foi a única comparação entre a sua e a minha vida. Mais não disse, e nem foi preciso. Escorreguei por entre os labirintos dessa mente, que ora passeava no claro, ora no escuro, evitando confrontações dolorosas.

Depois dessa derrapada, tudo foi lindo: aprumamos a conversa em direção à vertical do céu. Falamos de Deus e esse falar nos fez acreditar que um dia, tudo seria diferente.

Depois, mais tarde, servi o café. Caprichei na mesa, como merecem as visitas. Era muito, muito pouco.
Revirei minha bolsa e lhe dei uns trocados. Por azar não tinha quase nada, nem trocado e nem sem trocar. Continuava sendo pouco.
Em desespero de última hora, fiquei pensando no que poderia lhe entregar: ela me dera tudo por nada.
Então, procurei umas peças de roupa das minhas filhas, coloquei numa sacola plástica, entreguei para ela, e nos despedimos.
A sensação de muito pouco, ainda estava, incômoda, latejando, dentro de mim.

O ônibus não podia esperar.

Na porta, ela me abraçou e disse a frase que eu temia: “muito obrigada por tudo o que você fez por mim.” Não sei se esse "tudo" referia-se ao passado ou ao presente. De qualquer forma, dolorosamente eu soube que esse "tudo" fora nada.

Abraçamo-nos de novo, sem pressa, e dessa vez foi como se nos despedíssemos pela última vez na vida. Então, ela bateu o portão e se foi. Eu fiquei. Fiquei sem saber o que fazer, com o que sobrou de mim.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

É PRIMAVERA....

Neste ano, eu não sei o que fazer com a primavera. As flores e os perfumes que acompanham essa estação do ano, sempre me trouxeram uma perspectiva de renovação, de renascimento, de mistério e de milagre combinados. Os ciclos de vida me atraem, me comovem, me extasiam com as suas possibilidades mágicas. Nada se perde, tudo se transforma. Nessa época, as árvores estão floridas e os pássaros se exibem em cada galho, inclusive na árvore frondosa da frente de casa. Eu os via- a árvore e os pássaros - e os ouvia também , nessa sinfonia combinada, feita de cânticos, tons, cheiros e paisagem. Porque nessa paisagem viva, a árvore que aportou junto com a gente, que viu meus filhos crescerem e meus netos chegarem, essa também cantava. Diversas vezes fiquei confusa, prestando atenção às menores vibrações dessa reverberação de gorjeios. Mas, um dia, descobri, que tal qual uma orquestra sinfônica, cada elemento fazia a sua parte. A árvore emitia os graves, e as aves, os agudos. Na natureza, há uma combinação de causa e efeito que se revela do mais simples ao mais complexo. Sem a árvore, não haveria os pássaros, sem os pássaros não haveria a sinfonia de sons: portanto, a árvore cantava. Nesse mistério de faz de conta, que eu criei como verdade só para mim, a minha árvore cantava. E quando se cria uma verdade, ela existe de verdade. Pode não existir para os outros, mas existe para aquele que a criou. Por conta dessa circunstância mágica, sempre que, em horários pré estabelecidos se arranjava a apresentação, mal os primeiros sons começavam, eu me sentava apressadamente na varanda, determinada a não perder nenhum segundo desse espetáculo digno de anjos. Isso acontecia invariavelmente, no fim da tarde, quando as sombras crepusculares traziam a noite, e no início da manhã, quando as primeiras luzes inauguravam mais um dia. Mais tarde, bem mais tarde, quase madrugada, enquanto a casa dormia, eu me sentava de novo na varanda e respeitosamente, repartia com a natureza, o silêncio. O meu silêncio, feito de suspiros inaudíveis. Eles que agora dormiam, depois de me brindarem com tal sinfonia, não recebiam nada além do meu silêncio.
Sempre digo que repartir o silêncio é privilégio de poucos. Quando se tem um amigo, um amigo de verdade, a coisa mais importante a fazer é experimentar repartir o silêncio. Essa é a prova da verdadeira amizade. Uma amizade que passa pelo teste do silêncio, sobrevive para além dos momentos de alegria. Tive uma amiga, uma única amiga, que repartia comigo o silêncio. E tive a árvore da frente de casa, e os pássaros que em seus galhos dormiam . Eles também partilharam o meu silêncio feito de dor, saudades e lágrimas. Como testemunhas mudas, viram-me elevar os olhos para o alto, contar estrelas, e perscrutar a lua, em busca de um sinal do céu. É incrível como na hora da dor mais aguda, o céu pode falar. Mas hoje não quero falar do céu, hoje quero falar da árvore. E da primavera. E do Deus que chamou à existência árvores, aves, eu e a primavera.
Neste ano, com a primavera chegando, eu não sei o que fazer com ela. Quase no final do verão, o Ivo me disse, com voz grave, que a nossa árvore estava condenada. Embora linda e majestosa por fora, por dentro não tinha mais vida. Chorei muito. Chorei até abafar com soluços a voz da moto serra que, furiosa e implacável, rugia lá fora. Foi-se a minha árvore e com ela os meus pássaros. Foram-se os meus amigos e companheiros da madrugada. Foram-se os músicos celestiais que me traziam um pouquinho de alegria a cada anoitecer e a cada amanhecer. Mas não me foi a esperança, a fé e a certeza de que Deus tem cuidado de mim.
No outro dia, recebo a visita de três servas de Deus. Elas aparecem como se não fossem mensageiras do céu. Guardaram asas, por um momento. Com um violão na mão, pedem licença para louvar. O primeiro hino escolhido por elas, é uma passagem bíblica, cuja letra diz o seguinte: "porque há esperança para a árvore, pois mesmo cortada ainda se renovará e não cessarão os seus rebentos, se envelhecer na terra a sua raiz, e no chão morrer o seu tronco, ao cheiro das águas, ao cheiro das águas brotará; e dará ramos, como a planta nova, ao cheiro das águas".
Se Deus cuida das árvores, não cuidará de mim? Ele é fiel: mandou-me o cheiro das águas e me fez brotar de novo. Como a planta nova, os meus ramos estão aí.