Quem já deixou alguma vez de se entender consigo, saberá do que estou falando: Há uma parte em mim que mal conheço, sequer suspeito, de tão doida ela é. Há uma parte em mim habitando vastidões dentro de mim, que me faz duvidar de qualquer impossibilidade. Mais ou menos assim como quando a gente olha um ser e diz: não sei do que esse ser é capaz, melhor ficar longe dele. Só que o ser sou eu. Como pois vou ficar longe de mim?
Essa doida faz impulsivamente coisas que eu não faria e jamais diria. Escrever então, nem pensaria. No entanto, faço, falo e escrevo com tal coração forte e destemido, embora desconheça de onde me vem essa competência atrevida. Passado o momento loucura, volto a ser a mesma: cheia de culpa, de amor, de compreensão e doçura que me condenam e dizem: - sua doida, como você pode?
Mas mesmo essa doida que mal conheço, e que é capaz de coisas que não sei,- tome cuidado,-tem um certo ritmo que vem à tona em circunstâncias pré determinadas, o que equivale a dizer que a conheço vagamente.
Por exemplo: o ritmo de organização que me toma a cada vez que vou viajar. Esse, já sei que me aparece sempre na última semana que antecede a viagem.
Nos últimos dias resolvo arrumar gavetas e rasgar papéis. Eu adoro rasgar papéis, mas os que gostaria mesmo de rasgar, não posso, então rasgo tudo o que posso: contas antigas de luz, de água, de telefone, notas fiscais, correspondências que mal abro quanto recebo e coisas tais. Também nesses últimos dias, sou tomada pela urgência de resolver coisas que venho adiando há tempos: exames médicos. Às vésperas de uma viagem estou envolvida com exames médicos ou, pelo menos, agendando os exames para a minha volta. Também faz parte da organização verificar o bem estar dos animais: carteirinha de vacinação e aplicação de vermífugos, banho e tosa. Nunca viajo sem ir ao banco retirar o extrato da minha conta, o que equivale a dizer checar todos os débitos e os créditos antes da viagem, anotando tudo num caderninho. Os armários passam por uma revista minuciosa só porque vou viajar. As roupas que não uso há meses, experimento, para descobrir diante do espelho porque não as usei e lhes dar melhor destino. A faxina se estende para os demais cômodos da casa: examino se os vidros estão limpos e deixo tudo o que me parece necessário anotado numa lista para a minha funcionária se desincumbir, enquanto estou viajando.
O que me deixa perplexa é que essa não sou eu. Convivo numa boa com papéis que se acumulam nas gavetas, com exames médicos atrasados, com animais sem banho, com extratos não verificados e armários mais ou menos bagunçados. E se os vidros estão sujos eu fecho a cortina e não me descabelo. Mas basta marcar uma viagem para baixar em mim o espírito da Dita.
Antes de uma viagem, também sou tomada pela solidariedade: se alguém que conheço está sofrendo, não posso viajar sem antes telefonar ou visitar. E se o sofrimento é meu, tenho que agendar uma visita à pastora Taty antes de por o pé na estrada. Antes de por o pé na estrada também, sou tomada pelo desejo de me desfazer de coisas que não uso. Segundo o Silvio, meu professor de musculação em Maringá, essa prática se chama desapego. Seja lá o que for, é coisa demais para a minha cabeça que além dessa listinha, precisa desincumbir-se desta outra: manicure, pintura de cabelo, sobrancelha, e malas.
Eduardo Mascarenhas, psicanalista, escreveu um artigo, certa vez, no qual afirmou com muita propriedade, que pessoas organizadas por fora são bagunçadas por dentro. Na impossibilidade de arrumar o que vai por dentro, capricham na arrumação externa.
Pode ser. Às vésperas de uma viagem o meu padrão de pensamento que já não é dos melhores, perde todos os parâmetros de normalidade. Viajar me é doce demais, eu mal mereço. Sinto-me culpada – pasmem- por não estar em dois lugares ao mesmo tempo. Sinto pena dos animais que não me terão por perto. Sinto que a casa sofrerá a minha ausência: será uma casa sem dona. Sinto que tudo o que deixei de fazer, ficará à minha espera, aguardando a minha volta. É como se todas essas coisas se levantassem dentro de mim como uma objeção ao lazer do qual irei desfrutar apenas levemente, porque na verdade não desfruto em lugar algum. Mas para que nada me acuse de nada, faço às vésperas da ausência o que não fiz na presença, e se não dou conta, anoto numa agenda, para depois da volta, executar como prioridade máxima.
O que não consigo anotar na agenda é exatamente essa angústia de mim, essa vastidão imensa que não identifico no espelho, que me parece outra e não eu. Não sei descrever quem é essa. Não sei conviver com uma dama de ferro. Não posso suportar uma mulher tão metódica, eu que sou apenas regularmente organizada. Mas essa também sou eu. Eu com raiva do meu outro eu.
A raiva é recíproca: eu te odeio!